quinta-feira, 7 de junho de 2012

Diário de um ficcionista

Neste final de tarde, o Vidigal parece o morro místico de uma saga de romances fantásticos. Sento-me na garupa de um mototáxi e galgamos as pedras escorregadias de chuva, serpenteando por entre carros e pessoas, até entrarmos na rua 3. Silvo o meu assobio de identificação e Gonçalo vem abrir-me a porta. Tem barba de islamita ou de hippie e prepara-me um café. Veste uma t-shirt ruça, onde o boneco verde dos Bolicaos, com barba de vários dias, diz: "Tou de férias."

Metemos a conversa em dia e ele pega no violão. Toca música que compôs para letras em que colaborámos: "Vagão Rosa", "Sem sorte nem Nova Iorque", "Namoradinha Farrapa." O outro habitante da casa acorda de uma sesta. André, alemão de Woslfburg que contraria o cliché da falta de sentido de humor dos germânicos, esfrega os olhos e serve-se de café. Ficamos a conversar sobre a crise na Europa, sobre o jogo de futebol em que se enfrentarão os nossos países, no Campeonato Europeu, este fim-de-semana. Falamos de disparates, histórias de cama, o tempo que fará nos próximos dias.



Este é o meu clube de cavalheiros. Não precisamos de conhaque ou de salas exclusivas. Todos calçam havaianas e há quem mije de porta aberta. André saiu num artigo da Veja Rio, por ter produzido o primeiro mapa do Vidigal (ver aqui). Gonçalo anda obsessivo com as aulas de violão, as suas unhas mostram a dedicação ao estudo, o sorriso desvela a felicidade de andar a fazer aquilo que mais ama.

Digo-lhe que o entendo, foi assim com o meu romance. A malta é pobre mas a malta diverte-se. Antes pobres que de rodillas.

Cantamos "Nem  às paredes confesso" e André mostra-nos uma música alemã, dos anos 20, que rapidamente Gonçalo dedilha no violão. Três europeus tocam e cantam músicas tradicionais dos seus países num apartamento da favela do Vidigal com vista para o oceano (embora nesse dia, na varanda, não se visse mais que uma muralha de nuvens e as luzes desfocadas na noite do morro).

Três europeus que deram o salto mas que não se esquecem de onde vieram.

André conta-nos que a música é sobre um "pequeno grande cacto" e começamos a rir. Na varanda, vejo passar um cesto preso numa corda e, assobiando a música do cacto, levanto-me e indago o que se passa. Alguém entrega compras à vizinha de cima. Ela sobe os víveres no cesto. Cheira a humidade na folhagem e a regresso. Já se pode ver o mar e centenas de casas na encosta iluminam o morro, dão-lhe uma silhueta.



Despeço-me dos meus amigos e começo a descer. Em menos de três horas estarei numa festa de aniversário, de uma bonita e delicada escritora, descendente de europeus de leste. Irei oferecer-lhe quatro pequenos cadernos, de cores diferentes. Falarei sobre emigração, com o seu irmão, coreógrafo que vive em Paris, e escutarei atento o marido da escritora contar a história de um cantor francês (brega e muito popular), que entrou em depressão, durante umas filmagens na Amazônia, porque ninguém o reconhecia . Conversarei com um poeta que toma ayahuasca e que escreve com força e ternura e verdade. Tudo isto numa varanda com mar ao fundo e navios fazendo fila para entrar no porto, colossos piscando como vagalumes a caminho da fortuna extractiva do Brasil.

Os amigos, o cenário, as histórias. O vinho, a maconha, uma mão pegando na minha. O elevador, o táxi amarelo de janelas abertas, os beijos, a Lagoa.

Quem disse que a vida não pode aspirar a ser arte?

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