sábado, 5 de outubro de 2013

Crónica antiga sobre a Implantação da República





Cem anos de esperança

Estás na rua tão cedo que te lembras das manhãs de aulas, quando os estores subiam inclementes na janela e a tua mãe assegurava que não sairias de casa com ramelas. Mas é feriado e és adulto e vais trabalhar. Estás numa praça com bandeiras do teu país e, como os miúdos que esperam a carrinha da escola, imaginas-te a viajar no tempo cem anos. Estarias na rua, de espingarda na mão, ou ficarias em casa, preocupado com a preservação do teu corpo? Serias um revolucionário ou um comodista? 


Daqui a nada, vais ouvir um amolador noutro sítio deserto da cidade. Perceberás então que os feriados são muito mais generosos para os miúdos que, ainda na cama, ouvem a flauta solitária sem a melancolia do passado que oprime os adultos. 

Neste feriado haverá políticos e bandas filarmónicas e comparações entre aquilo que somos e aquilo que fomos. Num jornal, encontras mesmo uma foto dos “Vencidos da vida” – Eça, Ramalho, Junqueiro etc. – e um texto desse poeta açoriano que estoirou os miolos num jardim: “Se não reconhecermos e confessarmos os nossos erros passados, como podemos aspirar a uma emenda sincera e definitiva?” 

No final da manhã já encontras famílias na rua, crianças aprumadas como embrulhos de Natal, miúdos mais interessados num Happy Meal do que atormentados pelos erros dos pais, avós e bisavós. Serão um dia revolucionários ou comodistas? Não conheces nada do futuro. Mas sabes que, em vez da pistola de Antero de Quental, ainda preferes a placa do jardim onde o poeta se matou. Dizia: “Esperança”. 

domingo, 29 de setembro de 2013

Easy living


O céu molhado e o cão sonhando no sofá. Vozes chegadas de um campo de algodão, negras, defumadas e embedidas em whisky atravessam a onda média da rádio como sereias preguiçosas. Grandes esperanças e beijinhos de domingo. Acende o lume parao chá, marca a página do livro, deixa-te ficar aí, sem que percebas sequer que te admiro. E, porque em dias assim, sou mais homem romântico do que poeta com recursos, plagio e digo, podes ficar, "De nada mais preciso/para a minha ilusão do Paraíso".


quinta-feira, 19 de setembro de 2013

"Vai roubar para a estrada"




Uma família chega a um café de Albufeira na confusão de agosto, o pai olha os preços inflacionados pelo verão e diz: "Vão mas é roubar para a estrada".

O reformado acaba a sopa do jantar e, diante da notícia sobre o aumento dos impostos, ordena ao primeiro-ministro na TV: "E se fosses roubar para a estrada, pá?".

O condutor, mandado parar por excesso de velocidade, entra no carro depois de assinar a multa e, quando o polícia vira costas, diz entredentes: "Vai roubar para a estrada" - o que, de certa maneira, é desnecessário, uma vez que o polícia já está a roubar na estrada,

Sem conseguir encontrar a origem desta expressão portuguesa, pus-me a pensar em qual seria o seu sentido inicial. Foi-me sugerido que a frase se referia aos tempos em que bandidos atacavam diligências. Contrapus que Portugal não era o Texas no século XIX.

É verdade que, tendo em conta as portagens ou os preços nas estações de serviço, se poderia deduzir que seria coisa de concessionárias de autoestradas e postos de gasolina, mas esse género de furto é demasiado recente para ter originado uma expressão tão antiga. O fulgor próspero do asfalto e pastéis de nata com preços trufados são coisa das últimas décadas.

É verdade que certo tipo de prostitutas trabalha na estrada, mas o que fazem é mais um serviço à causa dos camionistas do que um assalto com direito a "final feliz".

E seria esticar a corda se dissesse que o carjacking começou um dia quando, farta de ser roubada entre paredes, uma vítima sugeriu "E se fosses antes roubar para a estrada" - não só o meliante obedeceu, como descobriu uma nova prática de crime com nome estrangeiro.

Mais do que a origem, afinal, importa o golpe que a frase aplica no destinatário. No fundo, quer dizer "Sai-me da frente, põe-te a milhas, na alheta, baza, vai morrer longe, porque aquilo que fazes não tem lugar no sítio onde eu vivo". E verte desprezo, espirra indignação, anuncia o vigoroso desejo de que, roubando na estrada, aquele bandido não só esteja longe de nós como, afortunadamente, seja atropelado por um caminionista que se distraiu com a coxa grossa de uma mulher da vida. 

ps - nas próximas edições, a expressão brasileira "E daí?" e a portuguesa "Foi pro maneta."

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Conde de Monte Risco



Não sei se ando demasiado afastado dos mecanismos de vingança para pensar desta maneira, mas julgo que já ninguém risca carros – com uma chave (a namorada despeitada), com um prego (o aluno chumbado), com uma garrafa partida (o despedido bêbedo). Talvez a distância das salas de aula, das relações psicóticas e de patrões abusivos não me permitam ver que, por todo o mundo, ainda há quem apure, com requinte e malícia, o ancestral engenho humano da vingança.

O castigo de uma pintura arranhada vai muito além dos danos na chapa e das despesas subsequentes. Primeiro, há o momento de ultraje. Mas a punição maior prolonga-se. Não são os riscos – é aquilo que sugerem. De cada vez que alguém entrar naquele carro ou passar por ele na rua, poderá questionar-se que acto vil, do proprietário, terá feito alguém sair de casa, procurar o carro, arriscar ser apanhado, para cravar uma chave bem fundo – como uma adaga nas entranhas de um imperador.   

Os riscos, por mais injustos que sejam, implicam uma malfeitoria do castigado, e, mais que tudo, garantem ao vingador um prazer que só pirómanos, drogados e trapaceiros alcançam.

Tudo isto para dizer que, ontem, ao ver um político português num programa de notícias, tive uma enorme vontade de pegar na chave, sair de casa, apanhar um avião, aterrar em Lisboa, descobrir o carro do senhor e, espetando a adaga mais longa, sentir-me saciado – não tanto como Brutus, mais como Dirty Hairy.

E depois ia comer um folhado de salsicha e beber um Ucal numa pastelaria de esquina, pronto para, nessa noite, dormir como um bebé untado em morfina

  

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Boys will be boys


Se uso um casaco com capuz, num dia de chuva, imagino-me sempre mais perigoso, como se estivesse a seguir alguém ou andasse clandestinamente em fuga. Mesmo quando, como ontem, era só para ir ao quiosque comprar um livro do Homem-Aranha.



terça-feira, 27 de agosto de 2013

Série cara de pau é como o universo, não acaba nunca



Governador Wilson Martins, do Estado do Piauí, tinha orçamento para gastos domésticos de 6 milhões de reais, que incluía lagosta, máscara para pontas quebradas e meio litro de champô a 85 reais... Imagino que para a barba metrossexualmente aparada no duplo queixo.



segunda-feira, 26 de agosto de 2013

As aventuras de Amélia, uma cachorra de verdade





Segundas-feiras


Se era para ser uma saga ao menos que começássemos com um grande plano aéreo de colinas,  um campo a perder de vista e eu correndo atrás de uma bolinha atirada por Vicent Cassel, que por acaso é meu vizinho na Gávea e estaria disposto a fazer um cameo no episódio inaugural. Tudo isto aconteceria no estrangeiro, claro, talvez em Itália ou na Califórnia, porque não me vejo a protagonizar novelas no sertão ou sequer em Miami.

Mas o que aqui apresentamos, afinal, não é mais do que um folhetim novelesco na internet, e o máximo que conseguimos para o episódio de estreia foi fazer uma  fotografia de "diva ao acordar", sem maquilhagem ou escova. Para os detratores que questionam "É mesmo sem maquilhagem?", posso dizer que não tomo banho há mais de uma semana e que o eyeliner é de origem, vinha programado na genética vira-lata.

De qualquer maneira, estou na cama deles, o que é proibido, segundo as leis da casa, e o que faz de mim uma criatura fofinhamente subversiva. Eles, que elaboram com frenquência piadas sobre a minha limitada inteligência canídea, não têm  agilidade cerebral que lhes permita fechar a porta do quarto antes de sair para o trabalho. Como tal, o cão agradece esfregando-se no édredon.

E aqui estou, pensando como eles se alteram com os dias da semana, tão radiantes na sexta de manhã, monossilábicos nas segundas bem cedo.

- Está a chover, não podes ir trabalhar comigo.

Disse ele, antes de sair, como se eu lamentasse ficar em casa quando as temperaturas descem, chove o suficiente para o meu pelo cheirar a cão molhado e a porta do quarto ficou aberta.

Como se - mesmo numa editora - correr atrás de bolinhas e pássaros e comer plantas fosse, de facto, trabalhar.

O meu conceito de tempo não me permite perceber a diferença entre uma segunda e uma sexta-feira. Mas sei que todas as segunda-feiras há sempre mais migalhas pela casa, resultado das coisas açucaradas e salgadas que eles comeram no fim de semana. Talvez encontre uma pipoca biotóxica em baixo do sofá ou um papel de chocolate para lamber antes da chegada das formigas.

Por isso, quando ele me disse - Está a chover, não podes ir comigo trabalhar - eu esperei que batesse a porta da rua e fui comer um pedaço de rúcula que caíra na cozinha na noite anterior. Farejei todo o rodapé da sala, lambi migalhas de sofás e comi um mosquito na parede. Finalmente, aborrecida de espreitar pela janela para o parque de estacionamento, fui tombar-me na cama.

E, aqui deitada, incapaz de antecipar a chegada deles, que com certeza irão reclamar comigo por estar deitada na cama, penso se a Lassie percebia a diferença entre um sofá (onde posso estar) e uma cama (onde não posso estar), se conhecia os humores de segunda e de sexta feira e, caso fosse capaz de entender tudo o que a mim me escapa, se foi a sua compreensão singular que lhe valeu uma estrela no passeio da fama de Hollywood.

Porque, se para ser celebridade de novela, eu tenho de ir estudar para o estrangeiro ou penar nas manhãs de segunda, como eles, então deixem-me ficar enchouriçada neste édredon, espreitando aquilo que, tenho a certeza, é um pedacinho de fiambre no chão da sala.

Há coisas que só a natureza explica, e uma delas é que eu nasci para ser cachorra.


quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Desta para pior




Dez regras do escritor Elmore Leonard, que morreu esta semana.

1.     Never open a book with weather.
2.     Avoid prologues.
3.     Never use a verb other than "said" to carry dialogue.
4.     Never use an adverb to modify the verb "said”…he admonished gravely.
5.     Keep your exclamation points under control. You are allowed no more than two or three per 100,000 words of prose. 
6.     Never use the words "suddenly" or "all hell broke loose."
7.     Use regional dialect, patois, sparingly.
8.     Avoid detailed descriptions of characters.
9.     Don't go into great detail describing places and things.
10. Try to leave out the part that readers tend to skip.

My most important rule is one that sums up the 10.
 If it sounds like writing, I rewrite it.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Mariza no Rio de Janeiro




1)

Apesar do comportamento afetivo e caloroso do público no concerto da Mariza, no Rio de Janeiro, a falta de respeito por quem canta e toca foi evidente. Celulares apitando amiúde, gente a tirar fotos insistentemente, com flash, no meio das músicas, pessoas tagarelando durante o show e outras chegando atrasadas, levantando-se a meio, entrando e saindo. Quando Mariza pousou o microfone para, como nas casas de fado, cantar sem amplificadores numa sala gigante, uma senhora na minha fila disse à a filha: "Uê, cadê o microfone?" E quando alguém pediu que a senhora se calasse porque estava a perturbar a interpretação da fadista (a sacana da velha passara o show inteiro a trocar impressões desnecessárias com a filha), a velha respondeu ao pedido de silêncio:

- Sua palhaça, o que você sabe do Fado?

A velha, pelos vistos, é que não sabia nada do fado, ou sabia tão pouco que desconhecia o refrão: "Silêncio que se vai cantar o fado", tantas vezes anunciado ao público antes de um fadista começar a sua atuação.

Talvez porque estávamos na Casa das Artes, na Barra, entalados entre lojas de franquia e shoppings colossais, a senhora pensasse que se encontrava na praça de alimentação do Barra Shopping.

Depois, quando Mariza decidiu cantar um fado entre a plateia, a loucura dos celulares ultrapassou a linha da decência, com pessoas colando os aparelhos quase na cara da fadista e com uma mulher tentando (por três vezes) pedir um autógrafo a meio de um fado.

Por mais que ame o fado - e até que o ache meu - não considero que exija mais respeito do que um concerto de trash metal. Nem acredito que o fenómeno da má educação dos celulares, atrasos e conversetas durante o espectáculo, sejam características exclusivas do público carioca - infelizmente, a obsessão em registar fotograficamente um evento no qual se participa, em vez de o desfrutar, é global e dissemina-se com a velocidade da estupidez em banda larga.


2)

Mariza não é a minha fadista preferida. Mas isso não interessa nada. As suas qualidades interpretativas, tanto vocais como cénicas, são as mesmas das grandes divas. Os seus músicos são altamente virtuosos. Ela é enorme em palco. E aquilo que fez alvoroçar, dentro de nós, ao cantar Primavera e Barco Negro, compensa qualquer má educação de algum público na plateia; aquilo que ela que consegue - voz, voltas, corpo dançante, peito lusitano, cordas tinindo nas guitarras - é muito mais do que um estilo musical de uma cidade, a minha cidade. É a minha vida inteira e a vida daqueles que me antecederam, é a nossa vida pulsando como se fosse um coração fora do peito.

3)

Silêncio, que se vai cantar o fado:




sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Há festa na Mouraria


Cariocas espertos, portugas giros e outras tribos simpáticas, não percam este fim de semana o Festival do Fado no Rio de Janeiro. Para saberem mais, cliquem aqui.


E esta senhora estará presente:


quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Bilhete deixado na porta do frigorífico



Para F.


Abri as janelas, mas não levei o cão à rua: chove como se fosse novembro numa cidade europeia e, com apenas 19 graus de máxima, os cariocas sentem-se ultrajados com tanto frio, sacam de cachecóis, gorros e roupinhas estilizadas para os mini-cachorros de colo. Vesti o sobretudo ao fim de quase dois anos no Brasil. Trata-se do mesmo sobretudo triste que apareceu numa crónica antiga, que escrevi sobre o verão - uma pesada peça de roupa, deixada para trás enquanto eu viajava rumo ao sul - e que te fez pensar que o prolixo e saliente rapaz talvez não fosse tão tolinho como se apresentava, ocasionalmente, diante de ti.

(Se não estou nisto para enriquecer, ao menos que suscite curiosidade na tua cabeça de ninfa romana).

Sabes agora que sou fanático da estação quente, que moro  no Rio de Janeiro - onde 19 graus no inverno equivalem a menos 20 em Chicago -, e que o meu próximo livro se chama Os caçadores do verão. Uma obsessão, esta patologia estival, é verdade. Mas não te preocupes se tenho hoje de vestir o sobretudo e enfrentar o improvável fresquinho carioca, com ventos que despenteiam e cães fechados em casa. O sobretudo, seja qual for o boletim meteorológico ou latitude, não é triste. O verão, afinal, também precisa de inverno. E não é por estar mais perto do sol que tudo acontecerá como nos filmes. É por estar perto de ti.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Feliz Aniversário





Querida Mãe,

Começo por dizer-te que estas manhãs do inverno carioca, de tão alvas e balneares, me recordam algum tempo indefinido e remoto, manhãs em que me levavas ao pão, pela calçada branca do bairro, ou entrávamos no comboio a caminho de Lisboa para fazer algo importante, como levar um brinquedo lesionado ao Hospital dos Bonecos ou comer chocolates nos intervalos das matinés no Cinema Condes. Já sabes que me restam poucas memórias da nossa coexistência no planeta, mas de cada vez que algo nesta cidade - o cheiro das ameixas, o som da bicicleta, a areia nos pés - me atira para esse passado sem cronologia precisa, é contigo que estou. E há sempre uma sensação de tranquilidade, como se fossemos os primeiros a chegar à praia em dia de maré vazia, senhores únicos da frescura que só se encontra nas manhãs de céu limpo e na água pura.

Há uns anos, o teu filho mais velho disse-me: "Ligamos um ao outro no dia em que a mãe morreu, mas devíamos ligar no dia em que ela nasceu". E assim passámos a fazer.

Sou hoje mais velho do que alguma vez foste. Fui-me escavacando, enrijecendo, derretendo, provando a vida à dentada e mordendo a língua nas tentativas múltiplas. Preferi o Lado Luminoso da Força, mas visitei - com mais frequência do que gostaria - o Lado Malvado. E aquilo que durante muitos anos foi a tua perda e a tua ausência, essa amputação perene em mim e as suas dores fantasma, foi encolhendo, perdendo espaço para todas as memórias, reais e imaginadas, que disparam se por acaso mergulho, bem cedo, no posto 11, e sinto que estou numa praia algarvia durante as mais longas Férias Grandes, sabendo que serás, na areia, admiradora dos meus feitos e guardiã de todas as sandes mistas e pacotes de sumo que devorarei enquanto tento recuperar o fôlego e me secas o cabelo com a toalha.  

Para ser mais preciso, e honesto, posso dizer-te que, nos últimos anos, tu foste sendo mais mãe e eu menos menino órfão.

Não vale a pena mentir-te, há ainda uma revolta inusitada no meu metabolismo, uma violência contra os erros do mundo e as doenças mortais. Sou um Hulk trinca-espinhas, amansado pela inevitabilidade do efeito do tempo sobre a biologia. E pelo amor.

Continuo, no entanto, a ser o mesmo palhaço que inventava teatrinhos para te impressionar - e para impressionar toda a gente. Continuo disparatado, trapalhão, praticante assíduo do beicinho e do "O que é que eu fiz?" Continuo a ser mais alegre do que triste, rápido na bicicleta e tão pro a fazer carreirinhas nas ondas cariocas como era nas vagas da praia do Guincho.

Talvez tenhas notado, ao longo desta carta, que estou bem disposto. É que esta manhã lembrei-me do teu aniversário, pouco depois do raiar do dia e, em vez daquela tristeza do princípio dos tempos que atravessava, sem aviso, o meu olhar, e depois desaparecia por largas temporadas, esqueci a melacolia e fui correr na orla, cruzando-me com bebés, meninas bonitas e um alto astral cósmico. Mergulhei. Pedalei descalço. Comprei pão quente. Lavei os pés de areia antes de entrar em casa. Bebi chá gelado. Trouxe o cão comigo para o trabalho. Dei-lhe beijinhos na cabeça. Vi passar o Sacolão, a Kombi que anuncia fruta pelo altifalante. Subi a rua assobiando o Summertime.

Está um dia lindo.

E era isso mesmo que te queria dizer hoje, que está um dia lindo para se fazer anos, porque a verdade é que nunca conversámos, nunca tivemos, pelo menos um com o outro, o consolo e a felicidade de partilhar as pequenas, mas essencialmente boas, coisas de todos os dias, como dois adultos que entendem a dádiva de estarem vivos.

Por exemplo, e sem fazer promessas para não te entusiasmares em demasia: hoje já não me parece piegas, ou inapropriado, dar o teu nome a uma filha minha. Acho apenas que é bonito, só isso, bonito - bonito como esta manhã, a manhã do teu aniversário.

H.









segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Segundas-feiras

De cada vez que um velhinho atleta me ultrapassa enquanto corro no calçadão, penso sempre com optimismo: "Ainda tenho alguns anos para conseguir chegar àquela forma ." Mas na maioria das vezes apenas lhes passo rasteiras.


quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Manhãs da Gávea



Nasce o sol lá em Copacabana e desta rua vê-se o Redentor.

Mangas maduras caindo no meu quintal, gambás e micos nos fios elétricos. Suco de tangerina e atrizes estremunhadas, com tapetes de ioga, caminhando na calçada. Pássaros de selva, cigarras que buzinam se faz calor. Semáforos lentos, cachorros pulando na praça. Mães mulatas descendo da Rocinha para entregar os filhos na creche, mães brancas em bicicletas elétricas transportando os filhos em cadeirinhas com cinto de segurança. Senhoras iPhonicas, de boas famílias, tomando café com as amigas no Zona Sul. Velhos senhores, que gostam de bacalhau e têm sempre um antepassado português, lendo o Globo porque não há mais nada para ler.  Miúdos da escola devastando copos gigantes de açaí no intervalo das aulas. Tem flanelinhas e tem Globais, mas os vizinhos de rua ainda fazem boa conversa fiada caso se cruzem na calçada.

Com roupa de academia vai a mãe, lado a lado com a babá, trajada de branco, que empurra o carrinho onde a menina, fantasiada de bailarina, desliza velozmente os dedos num iPad. Suaves e ordeiros são estes dias de inverno com manhãs de primavera ensolarada. Estranhamente antigos como o mato que rodeia o bairro, previsivelmente contemporâneos como os gigantes cartazes de teatro na Marquês de São Vicente, as luzes do shopping, os profissionais liberais que  fazem do café da manhã tardio um estilo de vida.

Pães franceses, café com leite, frango assado e picanha no BG, bancas de fruta na esquina.

As palmeiras imperiais do Jardim Botânico. A Dona Maria do quiosque, com sotaque de Viseu, que me trata como se fosse seu neto. A rua Piratininga em flor.

E o cheiro das manhãs antigas do hemisfério norte, quando tudo era fresco, luminoso e maternal, aparece sem aviso, uma máquina do tempo levando-me para longe, fazendo-me acreditar que enquanto houver manhãs assim, poderei ser menino para sempre.


segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Não é só inflação, mas muita ganância



Talvez o gene da pilhagem e da conquista seja legado dos portugueses que, há séculos, entraram selva brasileira adentro, de facão em punho, para perfurar minas, garimpar rios, espalhar gripes pelas tribos de índios e escravizar africanos - aptidão que chegou aos nossos dias, de maneira mais sofisticada (dinheiros da UE), nas últimas duas décadas, em Portugal. Ou talvez seja apenas a lamentável evidência de que a maioria dos seres humanos, seja qual for a sua origem, quer sempre mais, a todo o custo, independentemente das consequências para terceiros. Talvez, talvez...

Mas se há algo que me tem entristecido no Brasil, e em particular no Rio de Janeiro, onde vivo, é a voracidade perniciosa com que tanta gente quer ganhar mais enganando o outro.

Pode ser uma conta de restaurante com vinhos que ninguém bebeu, o taxista que vai por um caminho mais longo, o flanelinha que cobra 200 reais por uma vaga de estacionamento durante a visita do Papa, o empreiteiro que, para fazer tudo mais rápido, ignora uma parede mestra e manda um prédio inteiro ao chão. Pode ser isto e aquilo, uma lista longa, diária, que nos tira energia e nos obriga a estar sempre alerta para não nos passarem a perna.

Não se trata apenas de inflação, mas de ganância e desonestidade - como os restaurantes que cobram preços de Londres e prestam serviço de terceira categoria, como os madeireiros que continuam a aniquilar a selva e os seus habitantes, como todos aqueles - governantes ou civis - que espremem a galinha dos ovos de ouro do momento, usando essa lógica facilitista do "aproveita enquanto dá", engana enquanto podes, antes para mim do que para outro.

Esta mentalidade não é apenas comum a políticos, traficantes ou donos de empresas de construção, e tem-se propagado por todo lado - dos restaurantes do Leblon às casas alugadas nas favelas.

Nem só nas manifestações devemos exigir decência, respeito e honestidade. Nem só os políticos ou os donos das empresas de ônibus são prevaricadores. Numa das maiores manifestações no Rio, vi jovens de classe média alta sair do Largo de S. Francisco, no Centro, abandonando tintas e papéis no chão, deixando sujo aquilo que antes estava limpo. Como podem querer salvar o mundo e o país se nem sequer são capazes de limpar o que sujaram?

O problema não vem de cima. Nem vem de baixo. Está em todo o lado, nessa crença de que somos sempre mais espertos do que os outros e que nos devemos aproveitar disso.

É cansativo viver assim, sempre de olho aberto e coração preocupado. Basta olhar a primeira página do jornal, apanhar um táxi, jantar fora, para perceber que há demasiada gente que só irá parar quando o país estiver exangue.





sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Sou eu mesmo

No Rio desconhecidos e desconhecidas já me chamaram de: brother, irmão, mermão, filho, filhão, tio, maluco, bicho, cara, Lisboa, portuga, patrício, meu querido, meu bem e cabra macho. Eu gosto. Melhor do que doutor.


quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Crónica antiga para matar saudades do verão português



Nesse corpo estreia o verão


É mais que geografia ou anatomia: a curva do teu ombro é também aquela curva perigosa da estrada para a praia, o cheiro do alcatrão melado misturando-se com a maresia, um pára-brisas coberto por insectos kamikaze, música tão alta que não se ouvia o motor. E a boca: comedora de Verões em cada ameixa chupada, lábios que bebiam refrescos pela garrafa, língua com língua no jogo do bate-pé. E os dedos fazendo granadas de areia molhada, as omoplatas com escaldão, os joelhos esfolados no soalho do quarto onde perdeste a virgindade. Todo o teu corpo está marcado pelo Verão: tatuagens que estiolam por causa do sol; essa fronteira entre a pele morena e a pele branca, que começa uns quantos dedos a sul do umbigo; o peito transpirado colando-se no tecido que esfria assim que sentes o ar condicionado; a comichão dentro do nariz se mergulhas e quase respiras a água salgada; a disponibilidade que a tua pele apresenta para indagar outras peles. Em cada Verão o teu corpo recorda e renasce, para garantir que é no Verão que tudo se exagera e revela. Entre um Verão e outro, chegaste a procurar ainda um outro Verão, no hemisfério sul, quando aqui deixaste pendurados sobretudos tristes e foste pesquisar os efeitos do calor nas populações indígenas. Em todo o lugar é igual. Chega o Verão e perde-se, mais uma vez, a ingenuidade da Primavera, os corpos dilatam, conseguem-se boas cicatrizes, as histórias aparecem, cabem mais pessoas e mais tempo nos dias longos. O Verão, nesse teu corpo, já começou há muitos Verões

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Mundo cachorro


Para me sentir vingado, quando olham para mim com carinha de nojo, enquanto limpo o que o meu cão deixa na calçada, imagino sempre que se trata de alguém que, muito em breve, sofrerá de incontinência crónica.


terça-feira, 30 de julho de 2013

Los amiguitos del Papa





Juntaram-se três milhões de pessoas, de inúmeros países, na praia de Copacabana, para ver, ouvir e celebrar o Papa Francisco. Nem réveillon, Carnaval, Gay Parade ou um show de Roberto Carlos, alguma vez congregaram tanta gente. Sendo ateu e acreditando que as religiões foram e são, muitas vezes, instrumentos de controlo do indivíduo e providenciadoras de sofrimento e intolerância, seria muito fácil e, no entanto, limitado, queixar-me dos inconvenientes que esta visita papal causou na vida dos cariocas, do dinheiro gasto pelos cofres públicos, da atabalhoada organização ou dos maluquinhos da fé que se atiravam para cima da carro do Papa como se quisessem tocar no santo sudário a troco de um braço partido.

Ou então, apesar das minhas reservas papistas, poderia embarcar na onda unânime que acena com a cabeça e diz: "Este Papa é o máximo". Reconheço que este Papa está mais próximo daquilo que eu admiro na doutrina cristã e mais longe daquilo que representa o polvo da Cúria, também conhecida como a borucracia que se aproveita sagazmente da relação entre o homem e deus.

O Papa é fixe, bacano, sensato, sem manias, é verdade. Mas preferi olhar para esta semana - ou pelo menos tentei - com os olhos de um aborígene, de alguém distante, que não tivesse estudado num colégio católico ou uma avó que rezava o terço ou uma estatueta barbuda, em casa do pais, que durante toda a infäncia serviu de modelo miniatura para o que seria a grandeza do Senhor.

O que quero dizer: se um católico fosse testemunha de uma mega celebração da Cientologia ou do Xintoismo, possivelmente analisaria os rituais e as crenças com desconfiança ou, pelo menos, com um estado mental prático e lógico que normalmente não usa para analisar a sua própria religião.

Ou seja, é tão válido um católico não acreditar, como os cientologistas, que os nossos corpos estão possuídos por almas de extra-terrestres, como um xintoista não acreditar na história de um deus que envia o seu filho para a Terra, numa missão suicida. Filho esse que nasceu de uma virgem, foi concebido pelo Espírito Santo e que regressa depois de morto como um super herói.


Olhando para o que se passou no Rio de Janeiro durante a visita do Papa com os tais olhos do aborígene, ou do xintoista, parece muito estranho ver tantas pessoas emocionadas com algo que pode ser mentira, ou pensar que uma história improvável, desenvolvida, propagada e usada para criar um império nos últimos dois milénios, consegue mover tantos seres humanos, dinheiro, logística, horas de TV.

Se for consequente com o meu ateísmo, confesso que me espanta ver três milhões de pessoas a celebrar algo que será apenas uma invenção. Se deus não existe, se Cristo, em vez de divino, foi apenas um homem, um contrário, um líder da oposição, um guerrilheiro da paz, ver três milhões de pessoas alegremente desenganadas é uma peripécia extraordinária, uma Guerra dos Mundos 2.0.

No entanto, este ateu reconhece que a cidade ganhou, por esses dias, uma paz inusitada, mais decência e alegria limpa - com excepção dos habitantes de Copacabana que tiveram de ouvir jovens mexicanos cantar músicas de Cristo versão mariachi.

Continuo a perguntar se, para ser uma pessoa melhor e ter o outro em cuidado, o homem precisa de fé em deus e na sua cartilha moral, se precisa de uma organização global, com líderes e seguidores, se precisa da promessa de viver além desta vida. Não sei, esperava que não, mas vejo que tem sido sempre assim. Uma coisa é certa - e estas Jornadas da Juventude provaram isso -, para sermos pessoas melhores, precisamos de não estar sós, de fazer parte, de ter quem nos cuide e a quem cuidemos, de uma causa comum.

Se for o amor, melhor.


Ps - como se pode ver pelo traje na foto, o Papa é do Vasco da Gama.





  

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Geração Mutilada

Texto do cineasta António-Pedro Vasconcelos, para a revista Ler, sobre Enquanto Lisboa arde o Rio de Janeiro pega fogo, aqui publicado na íntegra.


Já apresentei vários romances de estreia de jovens escritores, de outros com alguma obra feita, mas também de autores mais velhos do que eu, com uma longa lista de livros para trás, como esse extraordinário “fabro” da língua que é Rentes de Carvalho.

Confesso que me sinto sempre lisonjeado (quando os livros são bons, como tem sido sempre o caso, e mesmo excelentes, como o livro que vou hoje apresentar), mas também perplexo. Pergunto-me sempre: porquê eu?

É verdade que já publiquei livros (mesmo se nenhum romance), que escrevo com frequência (não tanto como gostava) em jornais e revistas, que já fiz crítica de romances (e prefácios a livros que amo e que ajudei a publicar, como foi o caso do “São Paulo” e de “O Penitente”, ambos de Teixeira de Pascoaes, da melhor prosa que se escreveu em Portugal no século passado), mas continuo sempre a não perceber porque me dão a honra de me escolher para apresentar romances. Porquê eu?

Talvez porque sou, também eu, através dos filmes que faço, um autor que acredita na função catártica da ficção, e porque os romances que me pedem para apresentar são sempre de escritores, velhos ou novos, que continuam a acreditar também eles (contra os efeitos devastadores de uma certa “modernidade” que trabalha contra o que é desde sempre a matriz da nossa cultura ocidental), continuamos a acreditar, dizia eu, no desejo que alguns seres inquietos sentem de contar histórias e de ter alguém que as queira ouvir, na necessidade que todos temos de magia e de ilusão, na vontade secreta que temos de acreditar que o mundo pode ser como nos romances: lógico e com sentido. E porque, como disse Eliot, “Human kind can’t bear too much reality”.

Mas a apresentação deste terceiro romance do Hugo Gonçalves, “Enquanto Lisboa arde, o Rio de Janeiro pega fogo”, tem para mim um significado especial e honra-me muito que ele se tenha lembrado de mim. Vou ter que explicar porquê. Para além de ser um grande romance, e a revelação (ou a consagração, como quiserem) de um fantástico escritor, há toda uma história pessoal à volta do Hugo, com vários e curiosos episódios, que não resisto a contar.

Primeiro, o Hugo faz parte de um trio, para mim indissociável, de jovens ficcionistas (todos da idade do meu filho mais novo), que eu tive a felicidade de conhecer em circunstâncias diversas e que me é grato, como disse, evocar aqui.

O Hugo viveu em Nova Iorque no princípio do novo milénio (que, historicamente, começou no 11 de Setembro), onde, durante dois anos, conviveu com dois amigos, o João Tordo e o Tiago Santos, trabalhando todos eles em restaurantes, ao mesmo tempo que frequentavam cursos de escrita criativa. Eu não conhecia nenhum deles, a não ser o João Tordo, porque conhecia a mãe, e o devo ter visto quando era bébé. Não conhecia o Hugo, mas vim a saber mais tarde que o meu filho Diogo o conhecia (tinham jogado futebol juntos), e, finalmente, desconhecia por completo a existência do Tiago.

A verdade é que um dia em que eu andava à procura de alguém para escrever comigo o script do que viria a ser o meu filme “Call Girl”, um ex-aluno meu, apresentou-me o Tiago como sendo um talentoso e promissor argumentista. E provou-se rapidamente que era verdade. Ele deu-me a ler um script original que tinha escrito em Nova Iorque, e foi o bastante para lhe propor trabalhar comigo.

Foi o começo de uma frutuosa relação. Vou começar dentro de dias a filmar o que será o nosso terceiro filme em conjunto - um record.

Sensivelmente pela mesma altura, recebi um email do João Tordo a pedir-me para apresentar o seu romance de estreia, “O livro dos homens sem luz”, uma proposta que me surpreendeu. Porquê eu? Respondi-lhe o que respondo a toda a gente: manda-me o livro, eu leio e, se gostar, terei todo o gosto em apresentá-lo. Será mesmo uma honra. Ao fim de umas dezenas de páginas, percebi que havia ali um grande escritor – coisa que a crítica, sempre cautelosa, só descobriu quando ele ganhou o Prémio Pessoa… Mas adiante.

Faltava-me o Hugo, de quem tinha lido um primeiro romance, “O Maior Espectáculo do Mundo”, a que se seguiu “O Coração dos Homens”, romances com um lado de premonição aterradora sobre os mecanismos do poder e do medo, uma espécie de antecipação científica, mas que me deixaram à espera do que viria a seguir.

Quando finalmente o conheci, soube que tinha andado por Madrid e que depois partiu para o Rio de Janeiro, a tentar fugir aos horizontes mesquinhos da Pátria. E, de passagem por Lisboa, onde o conheci, tive oportunidade de acompanhar uns documentários que fez para a televisão e, sobretudo, uma crónica diária no jornal I, que achei brilhantes pela vivacidade, espírito aberto e pertinência. E disse-lho, com sinceridade e admiração. Depois, perdi-lhe o rasto. Até hoje.

Eu sei que é dele e do seu fantástico romance que é suposto eu falar. Mas não resisto a contar ainda uma pequena anedota sobre este trio.

Quando pedi ao Tiago para escrever o argumento do que viria a ser “A Bela e o Paparazzo”, estava longe de imaginar que ele iria introduzir no filme um trio de amigos que viviam juntos na mesma casa do protagonista, a que ele chamou João, como o João Tordo. Foi então que lhe sugeri que os outros se chamassem Hugo, como o Hugo Gonçalves, e Tiago como ele, para levar o private joke até ao fim.

A verdade, como vêm, é que tudo me liga, portanto, a este trio de jovens ficcionistas - talvez o trio mais brilhante que Portugal produziu na sua geração, e que ganharam muito seguramente em ter ido espairecer na idade certa e aprender umas coisitas sobre a escrita de ficção na pátria dos story tellers.

Mas quando aceitei o convite a minha apresentação. Com uma nota: quando, ao fim de uns capítulos, lhe confirmei, a ele e à Maria do Rosário Pedreira, que me sentia muito honrado pelo convite, não me dei conta de que me iria meter num enorme embaraço. Primeiro, porque o livro, à medida que o ia lendo, ia ganhando consistência, ia revelando página a página um grande escritor, que não hesita em acumular histórias, intrigas, personagens e peripécias, sem nunca perder o fio à meada, como aqueles malabaristas que atiram cada vez mais tacos ao ar sem deixar cair nenhum. E eu corria, como estou a correr, o risco de ficar aquém do livro que vão ler.

Depois, porque estava a preparar um filme, o terceiro escrito pelo seu amigo Tiago Santos, e, na minha cabeça, os meus personagens estavam sempre a interferir com os dele, a querer entrar na história e várias vezes tive que parar ler para os mandar sair dali!

Garanto-vos que não é fácil ler um romance quando se está a preparar um filme. Como um romance, um filme é um trabalho obsessivo e absorvente, e eu calculo que o romancista necessite da mesma concentração que o argumentista e o cineasta - que, para fazer um bom trabalho, como eu sempre digo, tem que adormecer e acordar com os seus personagens. E eu, durante os dias que levei a ler o romance, adormecia com os personagens do Hugo, e acordava com os meus.

Mas falemos então do livro, depois desta longa divagação. O que primeiro nos surpreende é a maturidade narrativa de um autor de 37 anos, uma prosa por vezes tão torrencial como a lama que, no fim do livro,  invade o morro e leva tudo à sua frente na enxurrada, uma sabedoria precoce, feita de experiência e imaginação, uma capacidade de criar personagens sempre enriquecidos com uma biografia, a lição aprendida com os mestres do Canon ocidental, de que fala Bloom, e que nos ensina que a arte de contar histórias é a arte de criar sempre novas peripécias, que põem à prova os personagens, uma tradição herdada da narração oral e do folhetim, que se foi apurando de Homero a Dickens; e, enfim, essa capacidade de nos envolver, que é marca dos grandes escritores, de nos fazer acreditar na história que o autor nos está a contar e de nos pôr do lado do seu protagonista: um jovem português acossado, que foge de Portugal para escapar à perseguição impiedosa de um gangster vingativo, e que vai encontrar no Rio de Janeiro um inimigo mais feroz que o obriga a fugir, a refugiar-se, a viver novamente acossado. E que acaba por ser recambiado para Portugal, depois de perder uma orelha, como Van Gogh.

A história é tão verídica na sua extravagância que, mal acabei de a ler, a primeira coisa que fiz foi verificar se o Hugo continuava com os dois apêndices de cada lado da cara.

E este insólito e inesperado acidente que ocorre no declinar da história, ajudou-me a perceber de que nos fala o livro. “Enquanto Lisboa arde, o Rio de Janeiro pega fogo” fala-nos de uma mutilação. Ou de várias mutilações, que concorrem, em sentido real ou figurado, para nos dar o sentimento de uma geração mutilada – a dele - a quem cortaram as asas.

De facto, o protagonista perde a mãe muito cedo (primeira e brutal mutilação, de que o autor nos fala ao longo de todo o livro), é obrigado a fugir da Pátria – outra perda, outra mutilação – por despreocupação e gentileza, esses pecados fatais da juventude de que falava Rimbaud; no Brasil é envolvido numa história de vingança, e vítima de uma feroz perseguição que o priva da sua liberdade (outra mutilação), vê partir para Portugal a sua paixão – Margot – (querem pior mutilação para um jovem do que a perda do primeiro grande amor?), perde a bicicleta que, para ele, significava a liberdade, perde o livro em que trabalhou durante anos e o que outro que estava a escrever; é preso, perde a liberdade de ficar no Brasil, perde o dinheiro que tinha deixado em Portugal. E, por isso, quando perde a orelha, num desabamento de terras que parece um dilúvio bíblico, parece-nos que, de todas, essa é a menos dolorosa das mutilações.

Mas a pior mutilação, a que percorre todo o livro, é a perda de horizontes, um mundo onde só o presente conta, onde o passado parece um pesadelo absurdo de esperanças e medos sem futuro, e onde nada conta para além da sobrevivência e do prazer.

No meio desse vazio existencial, o protagonista agarra-se a três coisas - três bóias com que espera salvar-se: Margot, a escrita de um romance e uma bicicleta. Ou seja, o essencial: o amor, a ficção e a liberdade.
O que o impede de soçobrar é que ele recomeça a cada mutilação, como as cobras que mudam de pele. Com uma mestria rara, o Hugo diz-nos, nas últimas 18 linhas do livro, que tudo pode sempre recomeçar. Que tudo se pode recuperar sobre outra forma, que o importante é aprender a ser céptico sem ser amargo, a ser lúcido sem ser cínico, a relativizar os julgamentos morais sobre os outros sem ser complacente com a História, a manter-se disponível para a novidade e para a aventura.

No final, devolvido a Portugal e a Lisboa (uma Lisboa, como ele diz, romantizada pela saudade), uma Lisboa que ele ama com a mesma intensidade com que ama o Rio de Janeiro, com as suas fantásticas contradições (leia-se o brilhante capítulo RJ-LX), no final, dizia eu, em poucas linhas (18, mais exactamente), derrotado, mutilado, céptico (“neste momento a verdade não faz parte dos meus planos”), sem projecto e sem destino, o protagonista, num ápice (são 18 linhas, repito!) abre-se novamente à possibilidade do amor e da escrita.

Só lhe falta encontrar uma nova bicicleta. Mas eu diria que das três perdas (um livro, uma paixão e uma bicicleta), a última é, talvez, a mais fácil de voltar a encontrar.


sexta-feira, 26 de julho de 2013

Das Kapital


Durante a filmagem de Glengarry Glen Ross, os atores chamavam-lhe Death of a fucking salesman, em alusão à peça de Arthur Miller e ao número de palavrões do guião que interpretavam - escrito e dirigido por David Mamet. Tanto  Death of a salesman como o filme Glengarry Glen Ross - adaptado de uma peça de teatro -, têm vendedores como personagens principais, o arquétipo norte americano da procura do sucesso apesar das contrariedades - são eles os protagonistas da ideia de que o sonho americano se materializará se formos implacáveis na caça, mas que só nos restará desmerecimento e exclusão se ignorarmos as oportunidades que nos são dadas pelo sistema.

De uma forma mais prosaica, diria que misturar testosterona com dinheiro, num ambiente competitivo, é um excelente motor para o bom funcionamento do capitalismo glutão, para a indústria de iates, do gel de cabelo e dos botões de punho que custam mais do que um carro.

Há algo de sexual e primitivo nessa busca - o estado mental de um rapaz adolescente. Henry Kissinger dizia que o Poder é o maior afrodisíaco e, por consequência, acrescento eu, o dinheiro, o status, os brinquedos para adultos. Há qualquer coisa de atrativo, algo bestial e animalesco, nessa forma de ser, quando o triunfo do eu e os bónus importam mais do que a decência e a compaixão.

Nesta cena, Alec Baldwin é THE  fucking salesman, atrai a presa para golpeá-la sem piedade. E, ainda assim, é capaz de conseguir a atenção fascinada da audiência.


quinta-feira, 25 de julho de 2013

SP Tough Love


Como eu escrevo



Há umas semanas ligaram-me da Time Out Lisboa, convidando-me a escrever um texto sobre os meus hábitos de escrita para a rubrica "Como eu escrevo".

E eu escrevi isto:

O caubói escritor


Osmir Fuks foi escritor e bandido. Pouco se sabe da sua obra e talvez tenha produzido mais patifarias do que literatura. O Correio de Cuiabá, edição de 3 de Dezembro de 1988, publicou um perfil com referências biográficas duvidosas e chamou-o de “Cangaceiro punk”. O texto conta que Osmir sangrara inimigos com facas de cozinha e amara mulheres até que perdessem os sentidos. O artigo vinha ilustrado com um desenho – a cara de um matador parido no Mato Grosso, a dormência ocular dos degoladores. Encontrei o texto por acaso, enquanto fazia pesquisa para um livro. Esqueci Osmir durante semanas, até que, num alfarrabista em Copacabana, encontrei a “Biografia dos hábitos dos caubóis e dos escritores ”, edição artesanal, de 1990, com uma reduzida biografia na contracapa: “Nasceu e ainda não morreu.”  

O livro ensina a capar bois, a selar cavalos e relata as manias de autores que não encontrei na internet ou nas enciclopédias: Cigala Estevez, poeta chileno e canibal, Fernando Fernandes, português de narrativas porno que se tornou pastor evangélico em Parada de Lucas, Rio de Janeiro, Zona Norte. Misa Whitman, que escreveu uma ode à procrastinação pela via da masturbação.

“Rimbaud ficou perneta, Camões zarolho. E quantos outros escritores não andaram aflitos de sífilis e achaques da alma?”, questiona Fuks, no capítulo “Maleitas resultantes do ofício & acidentes causados por desvarios românticos”. Osmir escreve ainda que os escritores perguntam aos seus pares sobre os hábitos de escrita porque querem ter a certeza de que não estão loucos, de que há outros para quem a solidão é um farol apetecido, e porque, paradoxalmente, querem companhia para um propósito que parece obsoleto: escrever livros. “A escrita precisa de tempo como o rio precisa de séculos para definir seu leito”, escreve Fuks, e depois insiste na estranheza de um ofício que vale menos do que um cirurgião empunhando um bisturi em caso de apendicite – uma coisa que nem se pode chamar de profissão e que, se pararmos para pensar, é tão estranha como pessoas a dançar sem música.

“Os hábitos dos escritores, quando revelados, servem para alimentar a suspeita da sua singularidade, instigam a soberbia, dão importância e ritualizam desnecessariamente o caráter mundano da criação. Mas também é muito possível que eu esteja falando merda.”

Osmir Fuks não tem endereço conhecido. Um repórter de Passo Fundo disse-me que ele trabalhava numa fazenda no Uruguai, e que era procurado por bigamia, burla e lesões corporais. No livro, Fuks escreve: “Se um dia uma menina da TV ou das revistas vier me perguntar sobre como escrevo, eu invento uma história na hora.”

Nisso, senhor Fuks, estamos de acordo.




terça-feira, 23 de julho de 2013

É isto um homem?




Por causa de um podcast da BBC, fui, finalmente, ler o primeiro livro de Primo Levi. Porque a edição brasileira estava esgotada - entretanto a Rocco fez uma nova edição -, mandei vir pela Amazon uma versão em inglês que contém também o segundo livro do autor - Truce.

Is this a man?, o primeiro livro, conta a chegada e permanência de Primo Levi no campo de concentração de Auschwitz, em Novembro de 1944, terminando com a chegada das tropas russas em Janeiro de 1945.

O segundo livro, Truce, conta o regresso a casa do químico italiano - que atravessa toda a Europa para chegar a Turim. Levi escreve com uma beleza e entendimento da natureza humana notáveis para quem podia apenas escolher a raiva e a autocomiseração após o que passou, viu e sofreu em Auschwitz.

É isto um homem? não é um livro sobre o Holocausto - palavras que Levi não gosta pois a sua origem é religiosa e significa sacrifício pelo fogo o que, tendo em conta os fornos e as chaminés do campo onde foram mortas mais de um milhão de pessoas, é de um mau gosto idiota.

Trata-se de um livro sobre os homens e a sua capacidade para se aniquilarem e sobreviverem, para serem medíocres ou fora de série.

O livro, soberbamente escrito, agarrou-me tanto que dei por mim a lê-lo enquanto caminhava na rua. E, a todo o momento, eu pegava na caneta para sublinhar frases como esta:

“A country is considered the more civilized the more the wisdom and efficiency of its laws hinder a weak man from becoming too weak and a powerful one too powerful.” 


No Youtube, há ainda um documentário italiano, com legendas em inglês (escolher nas opções) sobre o regresso de Levi ao campo, em 1982.

É isto um Homem? deveria ser leitura obrigatória.




segunda-feira, 22 de julho de 2013

Esta é a madrugada que eu esperava




Texto publicado no blog do Prosa & Verso, do Jornal Globo.


Fujo, voluntariamente, do Rio de Janeiro. Quero sair, preciso afastar-me. Na orla de Ipanema, o mar revolta-se na janela do carro, mar de ressaca ou, como se diz em Portugal, marés-vivas. Só agora – dois anos depois de viver no Brasil e habituado a falar “mar de ressaca” – percebo que, ao longo da minha vida, disse “marés-vivas” sempre de uma forma utilitária, como quem diz “garfo” ou “pneu suplente”, sem alguma vez dar-me conta da beleza da combinação dessas palavras: “marés-vivas”, uma poesia mínima, com dois signos apenas, mas que surge na boca com o alvoroço das ondas e o poder da correnteza. Algo se renova e se movimenta se digo marés-vivas.

Estou a caminho de Paraty, ainda no início da viagem, nesse momento empolgado em que revisitamos o sobressalto das crianças com o tiro da partida. Sair para outro lugar, para longe da cidade, é uma forma de fintar a dormência dos hábitos. Quando viajamos, desemperram-se as sinapses, somos mais suscetíveis a tudo o que é novo. A velocidade e a distância da viagem permitem perspectiva, garantem-nos que há mais vida além do nosso trajeto diário casa-emprego-casa, mais histórias além das propagadas no Facebook. Viajar, escreveu Pío Baroja, é a melhor forma de curar o nacionalismo – porque se é verdade que aprendemos muito sobre os lugares aonde vamos, descobrimos mais ainda sobre o lugar de origem e sobre quem somos. Viajar cura cegueiras, inquieta dogmas e tira-nos do caminho traçado da repetição.


Para ler na íntegra clique aqui.