domingo, 29 de setembro de 2013

Easy living


O céu molhado e o cão sonhando no sofá. Vozes chegadas de um campo de algodão, negras, defumadas e embedidas em whisky atravessam a onda média da rádio como sereias preguiçosas. Grandes esperanças e beijinhos de domingo. Acende o lume parao chá, marca a página do livro, deixa-te ficar aí, sem que percebas sequer que te admiro. E, porque em dias assim, sou mais homem romântico do que poeta com recursos, plagio e digo, podes ficar, "De nada mais preciso/para a minha ilusão do Paraíso".


quinta-feira, 19 de setembro de 2013

"Vai roubar para a estrada"




Uma família chega a um café de Albufeira na confusão de agosto, o pai olha os preços inflacionados pelo verão e diz: "Vão mas é roubar para a estrada".

O reformado acaba a sopa do jantar e, diante da notícia sobre o aumento dos impostos, ordena ao primeiro-ministro na TV: "E se fosses roubar para a estrada, pá?".

O condutor, mandado parar por excesso de velocidade, entra no carro depois de assinar a multa e, quando o polícia vira costas, diz entredentes: "Vai roubar para a estrada" - o que, de certa maneira, é desnecessário, uma vez que o polícia já está a roubar na estrada,

Sem conseguir encontrar a origem desta expressão portuguesa, pus-me a pensar em qual seria o seu sentido inicial. Foi-me sugerido que a frase se referia aos tempos em que bandidos atacavam diligências. Contrapus que Portugal não era o Texas no século XIX.

É verdade que, tendo em conta as portagens ou os preços nas estações de serviço, se poderia deduzir que seria coisa de concessionárias de autoestradas e postos de gasolina, mas esse género de furto é demasiado recente para ter originado uma expressão tão antiga. O fulgor próspero do asfalto e pastéis de nata com preços trufados são coisa das últimas décadas.

É verdade que certo tipo de prostitutas trabalha na estrada, mas o que fazem é mais um serviço à causa dos camionistas do que um assalto com direito a "final feliz".

E seria esticar a corda se dissesse que o carjacking começou um dia quando, farta de ser roubada entre paredes, uma vítima sugeriu "E se fosses antes roubar para a estrada" - não só o meliante obedeceu, como descobriu uma nova prática de crime com nome estrangeiro.

Mais do que a origem, afinal, importa o golpe que a frase aplica no destinatário. No fundo, quer dizer "Sai-me da frente, põe-te a milhas, na alheta, baza, vai morrer longe, porque aquilo que fazes não tem lugar no sítio onde eu vivo". E verte desprezo, espirra indignação, anuncia o vigoroso desejo de que, roubando na estrada, aquele bandido não só esteja longe de nós como, afortunadamente, seja atropelado por um caminionista que se distraiu com a coxa grossa de uma mulher da vida. 

ps - nas próximas edições, a expressão brasileira "E daí?" e a portuguesa "Foi pro maneta."

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Conde de Monte Risco



Não sei se ando demasiado afastado dos mecanismos de vingança para pensar desta maneira, mas julgo que já ninguém risca carros – com uma chave (a namorada despeitada), com um prego (o aluno chumbado), com uma garrafa partida (o despedido bêbedo). Talvez a distância das salas de aula, das relações psicóticas e de patrões abusivos não me permitam ver que, por todo o mundo, ainda há quem apure, com requinte e malícia, o ancestral engenho humano da vingança.

O castigo de uma pintura arranhada vai muito além dos danos na chapa e das despesas subsequentes. Primeiro, há o momento de ultraje. Mas a punição maior prolonga-se. Não são os riscos – é aquilo que sugerem. De cada vez que alguém entrar naquele carro ou passar por ele na rua, poderá questionar-se que acto vil, do proprietário, terá feito alguém sair de casa, procurar o carro, arriscar ser apanhado, para cravar uma chave bem fundo – como uma adaga nas entranhas de um imperador.   

Os riscos, por mais injustos que sejam, implicam uma malfeitoria do castigado, e, mais que tudo, garantem ao vingador um prazer que só pirómanos, drogados e trapaceiros alcançam.

Tudo isto para dizer que, ontem, ao ver um político português num programa de notícias, tive uma enorme vontade de pegar na chave, sair de casa, apanhar um avião, aterrar em Lisboa, descobrir o carro do senhor e, espetando a adaga mais longa, sentir-me saciado – não tanto como Brutus, mais como Dirty Hairy.

E depois ia comer um folhado de salsicha e beber um Ucal numa pastelaria de esquina, pronto para, nessa noite, dormir como um bebé untado em morfina