quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Boys will be boys


Se uso um casaco com capuz, num dia de chuva, imagino-me sempre mais perigoso, como se estivesse a seguir alguém ou andasse clandestinamente em fuga. Mesmo quando, como ontem, era só para ir ao quiosque comprar um livro do Homem-Aranha.



terça-feira, 27 de agosto de 2013

Série cara de pau é como o universo, não acaba nunca



Governador Wilson Martins, do Estado do Piauí, tinha orçamento para gastos domésticos de 6 milhões de reais, que incluía lagosta, máscara para pontas quebradas e meio litro de champô a 85 reais... Imagino que para a barba metrossexualmente aparada no duplo queixo.



segunda-feira, 26 de agosto de 2013

As aventuras de Amélia, uma cachorra de verdade





Segundas-feiras


Se era para ser uma saga ao menos que começássemos com um grande plano aéreo de colinas,  um campo a perder de vista e eu correndo atrás de uma bolinha atirada por Vicent Cassel, que por acaso é meu vizinho na Gávea e estaria disposto a fazer um cameo no episódio inaugural. Tudo isto aconteceria no estrangeiro, claro, talvez em Itália ou na Califórnia, porque não me vejo a protagonizar novelas no sertão ou sequer em Miami.

Mas o que aqui apresentamos, afinal, não é mais do que um folhetim novelesco na internet, e o máximo que conseguimos para o episódio de estreia foi fazer uma  fotografia de "diva ao acordar", sem maquilhagem ou escova. Para os detratores que questionam "É mesmo sem maquilhagem?", posso dizer que não tomo banho há mais de uma semana e que o eyeliner é de origem, vinha programado na genética vira-lata.

De qualquer maneira, estou na cama deles, o que é proibido, segundo as leis da casa, e o que faz de mim uma criatura fofinhamente subversiva. Eles, que elaboram com frenquência piadas sobre a minha limitada inteligência canídea, não têm  agilidade cerebral que lhes permita fechar a porta do quarto antes de sair para o trabalho. Como tal, o cão agradece esfregando-se no édredon.

E aqui estou, pensando como eles se alteram com os dias da semana, tão radiantes na sexta de manhã, monossilábicos nas segundas bem cedo.

- Está a chover, não podes ir trabalhar comigo.

Disse ele, antes de sair, como se eu lamentasse ficar em casa quando as temperaturas descem, chove o suficiente para o meu pelo cheirar a cão molhado e a porta do quarto ficou aberta.

Como se - mesmo numa editora - correr atrás de bolinhas e pássaros e comer plantas fosse, de facto, trabalhar.

O meu conceito de tempo não me permite perceber a diferença entre uma segunda e uma sexta-feira. Mas sei que todas as segunda-feiras há sempre mais migalhas pela casa, resultado das coisas açucaradas e salgadas que eles comeram no fim de semana. Talvez encontre uma pipoca biotóxica em baixo do sofá ou um papel de chocolate para lamber antes da chegada das formigas.

Por isso, quando ele me disse - Está a chover, não podes ir comigo trabalhar - eu esperei que batesse a porta da rua e fui comer um pedaço de rúcula que caíra na cozinha na noite anterior. Farejei todo o rodapé da sala, lambi migalhas de sofás e comi um mosquito na parede. Finalmente, aborrecida de espreitar pela janela para o parque de estacionamento, fui tombar-me na cama.

E, aqui deitada, incapaz de antecipar a chegada deles, que com certeza irão reclamar comigo por estar deitada na cama, penso se a Lassie percebia a diferença entre um sofá (onde posso estar) e uma cama (onde não posso estar), se conhecia os humores de segunda e de sexta feira e, caso fosse capaz de entender tudo o que a mim me escapa, se foi a sua compreensão singular que lhe valeu uma estrela no passeio da fama de Hollywood.

Porque, se para ser celebridade de novela, eu tenho de ir estudar para o estrangeiro ou penar nas manhãs de segunda, como eles, então deixem-me ficar enchouriçada neste édredon, espreitando aquilo que, tenho a certeza, é um pedacinho de fiambre no chão da sala.

Há coisas que só a natureza explica, e uma delas é que eu nasci para ser cachorra.


quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Desta para pior




Dez regras do escritor Elmore Leonard, que morreu esta semana.

1.     Never open a book with weather.
2.     Avoid prologues.
3.     Never use a verb other than "said" to carry dialogue.
4.     Never use an adverb to modify the verb "said”…he admonished gravely.
5.     Keep your exclamation points under control. You are allowed no more than two or three per 100,000 words of prose. 
6.     Never use the words "suddenly" or "all hell broke loose."
7.     Use regional dialect, patois, sparingly.
8.     Avoid detailed descriptions of characters.
9.     Don't go into great detail describing places and things.
10. Try to leave out the part that readers tend to skip.

My most important rule is one that sums up the 10.
 If it sounds like writing, I rewrite it.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Mariza no Rio de Janeiro




1)

Apesar do comportamento afetivo e caloroso do público no concerto da Mariza, no Rio de Janeiro, a falta de respeito por quem canta e toca foi evidente. Celulares apitando amiúde, gente a tirar fotos insistentemente, com flash, no meio das músicas, pessoas tagarelando durante o show e outras chegando atrasadas, levantando-se a meio, entrando e saindo. Quando Mariza pousou o microfone para, como nas casas de fado, cantar sem amplificadores numa sala gigante, uma senhora na minha fila disse à a filha: "Uê, cadê o microfone?" E quando alguém pediu que a senhora se calasse porque estava a perturbar a interpretação da fadista (a sacana da velha passara o show inteiro a trocar impressões desnecessárias com a filha), a velha respondeu ao pedido de silêncio:

- Sua palhaça, o que você sabe do Fado?

A velha, pelos vistos, é que não sabia nada do fado, ou sabia tão pouco que desconhecia o refrão: "Silêncio que se vai cantar o fado", tantas vezes anunciado ao público antes de um fadista começar a sua atuação.

Talvez porque estávamos na Casa das Artes, na Barra, entalados entre lojas de franquia e shoppings colossais, a senhora pensasse que se encontrava na praça de alimentação do Barra Shopping.

Depois, quando Mariza decidiu cantar um fado entre a plateia, a loucura dos celulares ultrapassou a linha da decência, com pessoas colando os aparelhos quase na cara da fadista e com uma mulher tentando (por três vezes) pedir um autógrafo a meio de um fado.

Por mais que ame o fado - e até que o ache meu - não considero que exija mais respeito do que um concerto de trash metal. Nem acredito que o fenómeno da má educação dos celulares, atrasos e conversetas durante o espectáculo, sejam características exclusivas do público carioca - infelizmente, a obsessão em registar fotograficamente um evento no qual se participa, em vez de o desfrutar, é global e dissemina-se com a velocidade da estupidez em banda larga.


2)

Mariza não é a minha fadista preferida. Mas isso não interessa nada. As suas qualidades interpretativas, tanto vocais como cénicas, são as mesmas das grandes divas. Os seus músicos são altamente virtuosos. Ela é enorme em palco. E aquilo que fez alvoroçar, dentro de nós, ao cantar Primavera e Barco Negro, compensa qualquer má educação de algum público na plateia; aquilo que ela que consegue - voz, voltas, corpo dançante, peito lusitano, cordas tinindo nas guitarras - é muito mais do que um estilo musical de uma cidade, a minha cidade. É a minha vida inteira e a vida daqueles que me antecederam, é a nossa vida pulsando como se fosse um coração fora do peito.

3)

Silêncio, que se vai cantar o fado:




sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Há festa na Mouraria


Cariocas espertos, portugas giros e outras tribos simpáticas, não percam este fim de semana o Festival do Fado no Rio de Janeiro. Para saberem mais, cliquem aqui.


E esta senhora estará presente:


quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Bilhete deixado na porta do frigorífico



Para F.


Abri as janelas, mas não levei o cão à rua: chove como se fosse novembro numa cidade europeia e, com apenas 19 graus de máxima, os cariocas sentem-se ultrajados com tanto frio, sacam de cachecóis, gorros e roupinhas estilizadas para os mini-cachorros de colo. Vesti o sobretudo ao fim de quase dois anos no Brasil. Trata-se do mesmo sobretudo triste que apareceu numa crónica antiga, que escrevi sobre o verão - uma pesada peça de roupa, deixada para trás enquanto eu viajava rumo ao sul - e que te fez pensar que o prolixo e saliente rapaz talvez não fosse tão tolinho como se apresentava, ocasionalmente, diante de ti.

(Se não estou nisto para enriquecer, ao menos que suscite curiosidade na tua cabeça de ninfa romana).

Sabes agora que sou fanático da estação quente, que moro  no Rio de Janeiro - onde 19 graus no inverno equivalem a menos 20 em Chicago -, e que o meu próximo livro se chama Os caçadores do verão. Uma obsessão, esta patologia estival, é verdade. Mas não te preocupes se tenho hoje de vestir o sobretudo e enfrentar o improvável fresquinho carioca, com ventos que despenteiam e cães fechados em casa. O sobretudo, seja qual for o boletim meteorológico ou latitude, não é triste. O verão, afinal, também precisa de inverno. E não é por estar mais perto do sol que tudo acontecerá como nos filmes. É por estar perto de ti.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Feliz Aniversário





Querida Mãe,

Começo por dizer-te que estas manhãs do inverno carioca, de tão alvas e balneares, me recordam algum tempo indefinido e remoto, manhãs em que me levavas ao pão, pela calçada branca do bairro, ou entrávamos no comboio a caminho de Lisboa para fazer algo importante, como levar um brinquedo lesionado ao Hospital dos Bonecos ou comer chocolates nos intervalos das matinés no Cinema Condes. Já sabes que me restam poucas memórias da nossa coexistência no planeta, mas de cada vez que algo nesta cidade - o cheiro das ameixas, o som da bicicleta, a areia nos pés - me atira para esse passado sem cronologia precisa, é contigo que estou. E há sempre uma sensação de tranquilidade, como se fossemos os primeiros a chegar à praia em dia de maré vazia, senhores únicos da frescura que só se encontra nas manhãs de céu limpo e na água pura.

Há uns anos, o teu filho mais velho disse-me: "Ligamos um ao outro no dia em que a mãe morreu, mas devíamos ligar no dia em que ela nasceu". E assim passámos a fazer.

Sou hoje mais velho do que alguma vez foste. Fui-me escavacando, enrijecendo, derretendo, provando a vida à dentada e mordendo a língua nas tentativas múltiplas. Preferi o Lado Luminoso da Força, mas visitei - com mais frequência do que gostaria - o Lado Malvado. E aquilo que durante muitos anos foi a tua perda e a tua ausência, essa amputação perene em mim e as suas dores fantasma, foi encolhendo, perdendo espaço para todas as memórias, reais e imaginadas, que disparam se por acaso mergulho, bem cedo, no posto 11, e sinto que estou numa praia algarvia durante as mais longas Férias Grandes, sabendo que serás, na areia, admiradora dos meus feitos e guardiã de todas as sandes mistas e pacotes de sumo que devorarei enquanto tento recuperar o fôlego e me secas o cabelo com a toalha.  

Para ser mais preciso, e honesto, posso dizer-te que, nos últimos anos, tu foste sendo mais mãe e eu menos menino órfão.

Não vale a pena mentir-te, há ainda uma revolta inusitada no meu metabolismo, uma violência contra os erros do mundo e as doenças mortais. Sou um Hulk trinca-espinhas, amansado pela inevitabilidade do efeito do tempo sobre a biologia. E pelo amor.

Continuo, no entanto, a ser o mesmo palhaço que inventava teatrinhos para te impressionar - e para impressionar toda a gente. Continuo disparatado, trapalhão, praticante assíduo do beicinho e do "O que é que eu fiz?" Continuo a ser mais alegre do que triste, rápido na bicicleta e tão pro a fazer carreirinhas nas ondas cariocas como era nas vagas da praia do Guincho.

Talvez tenhas notado, ao longo desta carta, que estou bem disposto. É que esta manhã lembrei-me do teu aniversário, pouco depois do raiar do dia e, em vez daquela tristeza do princípio dos tempos que atravessava, sem aviso, o meu olhar, e depois desaparecia por largas temporadas, esqueci a melacolia e fui correr na orla, cruzando-me com bebés, meninas bonitas e um alto astral cósmico. Mergulhei. Pedalei descalço. Comprei pão quente. Lavei os pés de areia antes de entrar em casa. Bebi chá gelado. Trouxe o cão comigo para o trabalho. Dei-lhe beijinhos na cabeça. Vi passar o Sacolão, a Kombi que anuncia fruta pelo altifalante. Subi a rua assobiando o Summertime.

Está um dia lindo.

E era isso mesmo que te queria dizer hoje, que está um dia lindo para se fazer anos, porque a verdade é que nunca conversámos, nunca tivemos, pelo menos um com o outro, o consolo e a felicidade de partilhar as pequenas, mas essencialmente boas, coisas de todos os dias, como dois adultos que entendem a dádiva de estarem vivos.

Por exemplo, e sem fazer promessas para não te entusiasmares em demasia: hoje já não me parece piegas, ou inapropriado, dar o teu nome a uma filha minha. Acho apenas que é bonito, só isso, bonito - bonito como esta manhã, a manhã do teu aniversário.

H.









segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Segundas-feiras

De cada vez que um velhinho atleta me ultrapassa enquanto corro no calçadão, penso sempre com optimismo: "Ainda tenho alguns anos para conseguir chegar àquela forma ." Mas na maioria das vezes apenas lhes passo rasteiras.


quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Manhãs da Gávea



Nasce o sol lá em Copacabana e desta rua vê-se o Redentor.

Mangas maduras caindo no meu quintal, gambás e micos nos fios elétricos. Suco de tangerina e atrizes estremunhadas, com tapetes de ioga, caminhando na calçada. Pássaros de selva, cigarras que buzinam se faz calor. Semáforos lentos, cachorros pulando na praça. Mães mulatas descendo da Rocinha para entregar os filhos na creche, mães brancas em bicicletas elétricas transportando os filhos em cadeirinhas com cinto de segurança. Senhoras iPhonicas, de boas famílias, tomando café com as amigas no Zona Sul. Velhos senhores, que gostam de bacalhau e têm sempre um antepassado português, lendo o Globo porque não há mais nada para ler.  Miúdos da escola devastando copos gigantes de açaí no intervalo das aulas. Tem flanelinhas e tem Globais, mas os vizinhos de rua ainda fazem boa conversa fiada caso se cruzem na calçada.

Com roupa de academia vai a mãe, lado a lado com a babá, trajada de branco, que empurra o carrinho onde a menina, fantasiada de bailarina, desliza velozmente os dedos num iPad. Suaves e ordeiros são estes dias de inverno com manhãs de primavera ensolarada. Estranhamente antigos como o mato que rodeia o bairro, previsivelmente contemporâneos como os gigantes cartazes de teatro na Marquês de São Vicente, as luzes do shopping, os profissionais liberais que  fazem do café da manhã tardio um estilo de vida.

Pães franceses, café com leite, frango assado e picanha no BG, bancas de fruta na esquina.

As palmeiras imperiais do Jardim Botânico. A Dona Maria do quiosque, com sotaque de Viseu, que me trata como se fosse seu neto. A rua Piratininga em flor.

E o cheiro das manhãs antigas do hemisfério norte, quando tudo era fresco, luminoso e maternal, aparece sem aviso, uma máquina do tempo levando-me para longe, fazendo-me acreditar que enquanto houver manhãs assim, poderei ser menino para sempre.


segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Não é só inflação, mas muita ganância



Talvez o gene da pilhagem e da conquista seja legado dos portugueses que, há séculos, entraram selva brasileira adentro, de facão em punho, para perfurar minas, garimpar rios, espalhar gripes pelas tribos de índios e escravizar africanos - aptidão que chegou aos nossos dias, de maneira mais sofisticada (dinheiros da UE), nas últimas duas décadas, em Portugal. Ou talvez seja apenas a lamentável evidência de que a maioria dos seres humanos, seja qual for a sua origem, quer sempre mais, a todo o custo, independentemente das consequências para terceiros. Talvez, talvez...

Mas se há algo que me tem entristecido no Brasil, e em particular no Rio de Janeiro, onde vivo, é a voracidade perniciosa com que tanta gente quer ganhar mais enganando o outro.

Pode ser uma conta de restaurante com vinhos que ninguém bebeu, o taxista que vai por um caminho mais longo, o flanelinha que cobra 200 reais por uma vaga de estacionamento durante a visita do Papa, o empreiteiro que, para fazer tudo mais rápido, ignora uma parede mestra e manda um prédio inteiro ao chão. Pode ser isto e aquilo, uma lista longa, diária, que nos tira energia e nos obriga a estar sempre alerta para não nos passarem a perna.

Não se trata apenas de inflação, mas de ganância e desonestidade - como os restaurantes que cobram preços de Londres e prestam serviço de terceira categoria, como os madeireiros que continuam a aniquilar a selva e os seus habitantes, como todos aqueles - governantes ou civis - que espremem a galinha dos ovos de ouro do momento, usando essa lógica facilitista do "aproveita enquanto dá", engana enquanto podes, antes para mim do que para outro.

Esta mentalidade não é apenas comum a políticos, traficantes ou donos de empresas de construção, e tem-se propagado por todo lado - dos restaurantes do Leblon às casas alugadas nas favelas.

Nem só nas manifestações devemos exigir decência, respeito e honestidade. Nem só os políticos ou os donos das empresas de ônibus são prevaricadores. Numa das maiores manifestações no Rio, vi jovens de classe média alta sair do Largo de S. Francisco, no Centro, abandonando tintas e papéis no chão, deixando sujo aquilo que antes estava limpo. Como podem querer salvar o mundo e o país se nem sequer são capazes de limpar o que sujaram?

O problema não vem de cima. Nem vem de baixo. Está em todo o lado, nessa crença de que somos sempre mais espertos do que os outros e que nos devemos aproveitar disso.

É cansativo viver assim, sempre de olho aberto e coração preocupado. Basta olhar a primeira página do jornal, apanhar um táxi, jantar fora, para perceber que há demasiada gente que só irá parar quando o país estiver exangue.





sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Sou eu mesmo

No Rio desconhecidos e desconhecidas já me chamaram de: brother, irmão, mermão, filho, filhão, tio, maluco, bicho, cara, Lisboa, portuga, patrício, meu querido, meu bem e cabra macho. Eu gosto. Melhor do que doutor.


quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Crónica antiga para matar saudades do verão português



Nesse corpo estreia o verão


É mais que geografia ou anatomia: a curva do teu ombro é também aquela curva perigosa da estrada para a praia, o cheiro do alcatrão melado misturando-se com a maresia, um pára-brisas coberto por insectos kamikaze, música tão alta que não se ouvia o motor. E a boca: comedora de Verões em cada ameixa chupada, lábios que bebiam refrescos pela garrafa, língua com língua no jogo do bate-pé. E os dedos fazendo granadas de areia molhada, as omoplatas com escaldão, os joelhos esfolados no soalho do quarto onde perdeste a virgindade. Todo o teu corpo está marcado pelo Verão: tatuagens que estiolam por causa do sol; essa fronteira entre a pele morena e a pele branca, que começa uns quantos dedos a sul do umbigo; o peito transpirado colando-se no tecido que esfria assim que sentes o ar condicionado; a comichão dentro do nariz se mergulhas e quase respiras a água salgada; a disponibilidade que a tua pele apresenta para indagar outras peles. Em cada Verão o teu corpo recorda e renasce, para garantir que é no Verão que tudo se exagera e revela. Entre um Verão e outro, chegaste a procurar ainda um outro Verão, no hemisfério sul, quando aqui deixaste pendurados sobretudos tristes e foste pesquisar os efeitos do calor nas populações indígenas. Em todo o lugar é igual. Chega o Verão e perde-se, mais uma vez, a ingenuidade da Primavera, os corpos dilatam, conseguem-se boas cicatrizes, as histórias aparecem, cabem mais pessoas e mais tempo nos dias longos. O Verão, nesse teu corpo, já começou há muitos Verões