sexta-feira, 22 de junho de 2012

Diário de um ficcionista: questão de língua

No Rio de Janeiro rapidamente percebi que o meu português de sonoridade muda e sílabas mastigadas não era entendido à primeira pelos interlocutores cariocas.

"Oi?", terá sido provavelmente a interrogação que mais ouvi desde que aqui cheguei. Tudo bem, sei por experiência que o sotaque de Portugal é foneticamente fodido, que colamos as palavras, fechamos vogais e estaremos para os brasileiros como os açorianos estão para os continentais. Sei disso, é uma questão prática ao contrário do que pensam muitos portugueses, preferindo dizer que os brasileiros (e os espanhóis) não fazem um esforço, que são burros, que padecem de pedantismo linguístico. Porque também vivi em Madrid, posso dizer que, de facto, o português de Portugal não é o idioma mais acessível para se aprender de ouvido.

Além disso, muitos dos brasileiros que me dizem "Oi?", nunca ouviram um português. E se ouviram certamente não foi com a frequência com que um lisboeta escuta o sotaque do Brasil - na rua, na pastelaria, no comboio, na TV, nas músicas da rádio. Anos e anos de novelas, Caetano, Daniela Mercury e imigrantes povoando Portugal  desde os anos 90.

Mesmo que perceba tudo isto, que compreenda que tenho de fazer um esforço para me entenderem, confesso que por vezes exaspero quando me dizem "Oi?" ou me pedem para falar mais devagar - faço esse esforço, claro, mas ao falar devagar, marcando as vogais e fazendo uma pausa entre cada palavra, escuto-me e penso que falo como o Rambo, uma espécie de impedimento na fala, tudo muito lentamente, um certo atraso.

Há ainda os momentos em que digo alguma palavra ou expressão e todos se riem e falam: "Que engraçado", felizmente com mais ternura que malícia - embora haja os zombeteiros, que insistem em dizer-me "ora pois" ou a "terrinha".

E expressões como "Levar a água ao nosso moinho", "sem fio nem pavio" ou apenas o nosso "porque" (o "e" final fechado) em vez do "porque" brasileiro (o "e" final aberto), bastam para que se interrompa a conversa e se riam do outro lado.

Tento não abrasileirar a minha forma de falar. No entanto, porque é inevitável e orgânico, já incorporei muitos termos e palavras locais. Não faz sentido dizer "frigorífico" em casa de um amigo se ele só sabe o que é uma "geladeira". Não vou perguntar onde fica a paragem de autocarro (ponto de ônibus) ou indagar, num supermercado, pelos pacotes de natas (creme de leite). Quando falo com sotaque brasileiro faço-o por questões práticas. Tentem falar português de Portugal com a menina da empresa de internet, por telefone, e vejam se ela vos entende ou atende. 

Também dei por mim a usar mais gerúndios e "cara" em vez de "gajo". Mas sempre que falo com um português, mano-a-mano, tento evitar brasileirismos, aliás, acho que rebusco a minha versão mais lisboeta, cheia de gíria e, se possível, com alguns palavrões que cá não se usam: "cabrão", "cona da mãe","caralhos me fodam".

É possível que, quando for de férias a Portugal me apanhem ocasionalmente a usar um gerúndio ou a dizer "botar" em vez de "meter" ou "pôr". Mas isso já me acontecia quando vivia em Madrid ou Nova Iorque, é normal que a sintaxe e o vocabulário fiquem afetados, aqui e ali, se expostos diariamente a outra língua.

Quanto à escrita, resolvi, até porque o trabalho de editor me exige, escrever segundo o novo acordo. Porém, há qualquer coisa em mim que, mesmo em emails profissionais, me faz escrever de forma que percebam que sou português. E não abdico de manter algumas palavras na grafia portuguesa, como  "facto" em vez de "fato"ou "contacto" em vez de "contacto". Não sei exatamente porque o faço, mas é como se quisesse que, pela minha escrita, percebessem que sou português.

Da mesma maneira, se por vezes converso com um brasileiro, num contexto social, um jantar, uma festa, posso até falar mais devagar, mas não abdico do meu português. Isso acontece com mais frequência quando tenho de reagir a provocações que insinuam, ou afirmam, que os portugueses são burros ou demasiado literais, ou se por acaso me tratam com um certo paternalismo.

Não tenho grandes problemas com isso. Já fui estrangeiro em vários países e sei que, em algum momento, alguém nos vai fazer sentir estrangeiros. Perguntem aos brasileiros que imigraram para Portugal nos últimos 20 anos e eles de certeza que sabem do que falo.     

Como escritor que viveu em países que falavam outras línguas, é agora um prazer e uma novidade ver que tantas outras pessoas podem ler o que escrevo, pessoas estrangeiras, com um passado diferente, mas que podem sentir o que escrevo. Em Madrid ou em Nova Iorque, parecia-me sempre que os meus amigos não podiam perceber realmente quem eu era porque não me podiam ler. No Brasil é o contrário. Além dessa novidade, há ainda o prazer da descoberta constante, não só de palavras e sonoridades, mas de expressões coloquiais. E nisso os brasileiros são pródigos e originais.

Sinto-me como um músico a quem anunciaram que afinal havia mais que sete notas. E se o meu português falado cresce, muda, procura, o mesmo se passa com a forma como escrevo.

Sinto que hoje, tal como tive uma versão em inglês e em espanhol, tenho uma versão transatlântica. 

Percebo melhor agora o pessoanismo pop "a minha pátria é a minha língua". Sou mais português mas também passei a ser muitas outras coisas - as frutas que como, as palavras que digo, a sintaxe que me enlaça, a música de quem me fala.

E se ultimamente os portugueses têm sido despojados de tantas coisas, posso dizer que a língua é ainda (sem taxação) uma das nossas mais valias ("diferencial" no Brasil). Não só porque nos permite ser entendidos num universo com mais de 200 milhões de pessoas, mas porque é através dessa língua que circulam infinitas histórias e possibilidades, de um lado ao outro do globo, no Índico ou no Atlântico.

 Hoje aprendi uma palavra nova: mandiga.

Veio de África, germinou no Brasil e hoje entrou na corrente sanguínea de um português.





2 comentários:

  1. este texto é "ouro" para mim!!!
    :) obrigada

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  2. pois eu digo-lhe que, a viver há 20 anos no rio de janeiro, a melhor maneira de conservar o meu português 'de portugal' foi adoptar, logo à chegada, o 'brasileiro' como língua estrangeira, local, evitando, assim, as adaptações. dizem-me que ainda falo perfeitamente como portuguesa, embora haja, aqui no rio, pessoas que ainda não desconfiam que não sou daqui.
    :)))

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