segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Miúda de Ipanema

Não és deste lugar. Chegaste aqui como tantos outros muito antes de ti, uma corrente de gente do teu país que passou a vida a procurar a vida longe do lugar onde nasceu. Não és deste lugar mas gostas de sucos (por vezes ainda dizes sumo) e da forma como o sol sobrevoa o morro Dois Irmãos antes de se afogar no Atlântico. Não és deste lugar mas passas na rua como as mulheres locais – linda, morena, com um balançado só teu. Gostava que fizessem uma música sobre ti, que te cantassem a coragem, a forma como pintas as unhas em dois minutos no banco de trás de um táxi ou como o teu corpo se enlaça no meu quando chega uma frente fria e não te apetece sair da cama por causa da chuva. Mas há coisas que quero guardar para mim. Coisas que jamais caberiam numa música, num poema ou sequer num romance com milhares de páginas. Essas coisas não conto a ninguém, são minhas.

Já foste uma miúda de Cascais, da Graça e da Pena. Já passaste pelos poetas do Bairro Alto e pelos bêbedos do Cais do Sodré. Agora és uma miúda de Ipanema: a mesma menina que fazia ginástica em pequena e que talvez nunca tivesse imaginado que um dia seria inspiração para escritores em dias de chuva. És menina se compras chocolates no quiosque. És mulher em entrevistas de emprego. És menina quando pedalas junto ao mar. És mulher de corpo inteiro quando falas da tua família. És menina quando sentes saudades. És mulher quando avanças pela Visconde de Pirajá e homens e mulheres reparam que passas, que estás aqui, que cruzaste o oceano como tantos outros antes de ti.

Nunca imaginaste que irias dizer geladeira, banheiro, varal, ônibus. Nunca imaginaste que esta seria a tua cidade. Mas esta é agora a tua cidade, o teu bairro, a tua casa. Tudo isto é novo e lindo e por vezes assustador. Gostaria de compor uma música para garantir que tudo vai correr bem, que acendes a Praça General Osório se caminhas para a praia. Mas não sou músico e, nestes dias de chuva, falta-me talento para te cantar. É por isso que me vou levantar assim que passares por aqui. E se não passares, vou para casa, esqueço a música, esqueço a frente fria que faz o Rio parecer Lisboa em Dezembro. Vou para casa: esse lugar em ti onde regresso sempre. Porque aquilo que és não pode ser afectado pelo boletim meteorológico ou pela minha falta de talento para te cantar. Aquilo que és só eu sei. E essa é a minha maior dádiva.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Mulheres



Um tipo entra no Rock in Rio para ver Stevie Wonder e dá-se conta que entrou no Shopping in Rio. Eram mais de 72 marcas a piscar-nos o olho dentro do recinto/parque de diversões: a montanha-russa Chilli Beans (óculos de sol), a roda gigante Itaú (banco), os camarotes Coca-Cola (remédio para a ressaca), a Rua do Rock com mais marcas e voyeurs de montras que Oxford Street. No palco, tocava ainda Ke$ha, cujo uso de um cifrão no nome não chega para desvelar o mau gosto da sua música ao vivo – um sucedâneo de Lady Gaga, um ídolo teen com mais maquilhagem e guarda-roupa do que afinação. Ela gritava: “Let’s party Rio”, e sentia-me numa discoteca ao ar livre, em Benidorm. Ke$ha guinchou o tempo inteiro enquanto os visitantes do Shopping in Rio esperavam em filas para receber um brinde (T-shirts, óculos de sol, poltronas insufláveis) ou avançavam como peregrinos hipnotizados para as barracas de cerveja (Heineken) ou de comida (Bob’s – hambúrgueres de franchize). Rock in Rio: uma espécie de Planet Hollywood + Hard Rock Café + Disneyland. Uma espécie de delírio futurista em que seremos alimentados, vestidos e entretidos por uma mega empresa universal.

O Rock in Rio não deixa de ser um assombroso feito de logística, trabalho, entretenimento e money making – a economia da cidade terá recebido cerca de 350 milhões de euros. Mas o Rock in Rio, que recebeu cem mil pessoas por dia, parece querer reduzir-se ao mantra contemporâneo da felicidade imediata: coma um hambúrguer, compre uma T-shirt, use o seu telefone para fazer fotos, receba coisas grátis e veja alguma celebridade no palco, não importa qual, até pode ser Ke$ha.

Não consigo encontrar apelo, beleza ou sensualidade em Ke$ha ou no Rock in Rio. São robots da adoração colectiva, produtores chatos de $, euros, reais e dólares, são chapa 5, produto mastigado, empacotado e aprovado para todas as idades. A ideia que tudo é comprável e a uniformização das coisas e das pessoas deixa-me aborrecido. Especialmente a uniformização de algumas mulheres. O Rio, capital das mulheres bonitas – olha uma loira alta e descalça num skate, olha uma mulata a cair na água, olha a executiva tão segura nos seus saltos –, o Rio que já criou mais poetas amantes do que qualquer outra cidade, também se vai deixando levar pelas capas das revistas, os vídeos MTV, o Photoshop, a lipoaspiração e o botox. Falo da uniformização dos corpos e das expressões faciais, uma traição à génese e ao milagre deste lugar: a diversidade, a mistura, a criatividade, a possibilidade.

Depois das roliças dos quadros renascentistas, das pin-ups pós II Guerra ou das magrelas com ombros de cabide Calvin Klein, surgiram agora as mulheres Fruta – tão trabalhadas como uma melancia esculpida para efeitos decorativos num buffet de hotel. Podem ter implantes nas mamas e na bunda, podem ter botox em vez de rugas sorridentes, podem ser tão bem desenhadas como uma heroína de BD, podem até vestir-se como Ke$ha, mas arriscam-se a ter o mesmo sabor plástico do Rock in Rio, provocando a mesma sensação descartável, rápida, que não deixa marca.

É por isso que peço a todas as mulheres que acreditem que uma estria, uma mancha, um peito descaído que não se pareça com uma perfeita bola siliconizada, enfim, que muitas das coisas que vocês insistem em eliminar com uma ferocidade castigadora, não vos faz ser menos mulheres do que aquelas que injectam produtos na testa e jejuam e se levantam às cinco da manhã para fazer ioga ashtanga. Acreditem, há mais verdade e tesão numa mulher de corpo vivido do que numa mulher de corpo encomendado.


Texto originalmente publicado no blog Sinusite Crónica.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Afternoon Delight










O arco do espasmo do teu corpo
vai do Rio a Lisboa
e regressa trinta e quatro vezes
dá voltas e voltas
cose-nos as pontas
incendeia toca torce

é mais que música
é euforia desamarrada
chicote da língua e resguardo da palavra

Contratempos e acasos do mercado imobiliário carioca


Era um prédio no Rio de Janeiro mas podia estar nalguma cidade russa que nunca saiu nas notícias da televisão. Os ônibus avançavam em manada pela Avenida Nossa Senhora de Copacabana e faziam estremecer as coisas na calçada: montras de lojas com roupa barata, velhas que lhe pareceram iguais às velhas de um bairro lisboeta, pretos pedalando velozes para entregar encomendas, um pedinte, outro pedinte, um pedinte júnior, cadeiras de plástico amarelo num boteco pé sujo, a porta para as galerias onde deveria encontrar a entrada do prédio. Era estrangeiro mas já aprendera que galerias eram um shopping de outros tempos, outras décadas, lugares de luz morta e muitos espelhos nas paredes. Passou por uma loja de flores: a única coisa bonita que havia naquele túnel. As galerias eram o lugar onde os sonhos com um tumor nos testículos iam finar-se. No entanto, lado a lado, estavam duas promessas de salvação, duas igrejas evangelistas. Uma de cores azuis e outra de cores vermelhas. Benfica – Porto, pensou. TMN e Vodafone. Blackberry e iPhone.

Caminhou para a entrada do prédio. O porteiro lia um tablóide, alguma coisa sobre a Mulher Maçã e mais umas quantas notícias de abusos e estupros. A agenda noticiosa do costume. Nem ergueu o focinho do jornal. Ele entrou no elevador, puxou a grade ferrugenta que guinchou todos os nove andares. Foi uma viagem lenta, com o espectáculo das pastilhas elásticas coladas na parede em movimento e mensagens escritas a vermelho: “Nina boqueteira racista só chupa brancos”. Abriu a porta e, entrando nos corredores brancos de sanatório antigo, pensou nalgum filme de terror que vira na infância. Encontrou o apartamento e bateu na porta. Nada. Rodou a maçaneta e entrou. No lado esquerdo encontrou um banheiro encolhido, onde sexo no duche só seria possível para um casal de contorcionistas bem ensaboados. Depois havia um espaço comum com kitchenete e sala. Uma só janela, ao fundo, tinha vidros martelados, baços como uma tarde de chuva. Ele avançou até ao meio da sala. Uma vez que não era proprietário de móveis, falta de espaço para as suas coisas não seria um problema. Abriu a janela e o estertor do trânsito trepou prédio acima, um desconcerto de escapes e buzinas e motores de camiões. Ouviu uma voz:
“Ainda bem que abriu essa janela. Como é que aguenta este fedor?”
“Que fedor?”
“Só pode estar brincando. Esse cheiro de fraldas para velhos incontinentes.”
“Você é a Letícia? Com quem falei ao telefone para ver a casa?”
“Oi? Fala devagar moço.”
“Eu estou aqui para ver o apartamento.”
“Isso já deu para perceber.”
“E devia falar com uma Letícia, você é a Letícia?”
“Claro que não. Eu lá entraria num apartamento que queria alugar dizendo que cheira a fralda usada de velho.”
“Desculpe, mas como é que a senhora sabe a que cheiram fraldas de velho? Qual é a diferença entre fraldas de velho e de bebé?”
“Você é português, né?”
“Nota-se?”
“Um pouquinho.”
“Piadinhas à parte, qual a diferença entre o cheiro de fraldas para velhos e para bebés?”
“Lá em Portugal você tem parentes mais velhos?”
“Sim.”
“Já foi nesses lugares onde os mais novos botam os mais velhos?”
“Um lar de idosos?”
“Deve ser isso aí. Não conhece o cheiro? O cheiro de fraldas de velhos que ficam vendo TV o dia todo, confundido o enredo da novela das sete com a história da novela das oito? Isso aqui é Copacabana, um gigante lar de idosos. Dizem que é o bairro mais envelhecido do Rio. Nesse apartamento viveu algum velho que esticou o pernil recentemente. Aí a família deu uma limpezazinha e botou o apê para alugar.”
“O seu sotaque é meio estranho. Você é de onde no Brasil?”
“Está-me paquerando portuga? Conversinha de flirt de boteco às dez da manhã num cemitério de velhinhos? Não vem com garfo que hoje é dia de sopa. Mas, vem cá, quero-te falar de coisas mais sérias. Vou-te dar uma dicas para procurar casa no Rio. ”
“Muito obrigado.”
“Tão educado, que bonitinho. O Ubaldo Ribeiro escreveu que os portugueses têm boas bundas, como os forcados, mas esqueceu de dizer que são muito polidos no trato.”
“Está a tentar engatar-me?”
“Oi?”
“Falávamos do mercado imobiliário do Rio.”
“Isso. Está tudo muito caro, esqueça esses bairrinhos perto da praia. Leblon só se tiver disposto a pagar duas vezes mais que o empresário do novo sucesso brasileiro ou alguma vedetinha da MPB. Ipanema esquece, tem mais americanos que a Disney. Só se você fosse viado. Talvez encontrasse um sugar daddy de Ipanema e viveria feliz entre a Farme de Amoedo e as viagens para a Europa.”
“Não sou viado. Mas também não sou homofóbico. Esses comentários são lamentáveis.”
“Está pregando moral e bons costumes, portuga?”
“Não devias ser tão amarga. Quem é que a deixou nesse estado bélico?”
“E você pensa o que, que só porque sou brasileira e você tem um sotaque eu vou dar para você? Mil anos de história e bigodinho safajeste e não sei quê? Tem juízo portuga.”
“Voltemos ao mercado imobiliário. Você está a procurar casa?”
“Faz dois meses. Do Jardim Botânico à Lapa, passando pelo Humaitá, Botafogo e Flamengo. Depois considerei Copacabana e, veja só, acabei aqui, num quarto de geriátricos com um português de bigode. Você quer tomar um chope e eu te conto tudo sobre o mercado imobiliário.”
“Claro, mas não devíamos esperar pela Letícia?”
“Eu deixo um bilhetinho. Tem papel? Aqui vai: Querida Letícia, desculpe mas eu e o português achamos que o alto preço que você pede pelo apê não esconde o cheiro de merda. Especulação faz mal ao coração. Se cuide.”
Eles saíram juntos e desceram no elevador enquanto ele assobiava a música do “Tubarão.” Nas galerias entraram numa das igrejas, ouviram as palavras do pastor. Na rua, assim que passou mais um ônibus truculento, ela disse:
“Queres mesmo ir beber um jola?”
“Não sei, afinal de contas pouco passa das dez da manhã.”
“És uma seca.”
“E tu voltaste a chegar atrasada, se a Letícia tem aparecido antes de ti eu tinha alugado aquele apartamento. Preciso de ti para negociar.”
“Não sobrevivias um dia em Marraqueche.”
“O teu sotaque zuca está a melhorar. Mas ainda vacilas nalgumas coisas.”
“Preferias que fosse brasileira?”
“Para quê ser uma coisa se podes ser duas?”
“Então vamos transar?
“E porque não, afinal, só temos um apartamento para ver ao meio dia.”

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Punk love


Lili era uma menina de faculdade com tatuagens: no gémeo esquerdo (uma trepadeira com flores vermelhas) e nas costas (uma geisha decotada com peito avantajado). Roger era malandro da praia, dizia que tocava numa banda e carburava maconha com o entusiasmo do Santo Ofício acendendo fogueiras. Lili andava de skate, os pés descalços na lixa da prancha e as havaianas nas mãos. Ele, com corpo de capa de Men’s Health, corria sem T-shirt, exibindo a definição da sua anatomia para gringas que lhe compravam roupa, peruas infiéis no terceiro casamento e menininhas deslumbradas diante do poder do sexo com homens mais velhos.

Roger não ia para novo e o seu corpo, apesar do exercício diário, dava os primeiros sinais de decadência: duas cáries, um menisco maltratado por causa das peladinhas, problemas de estômago, uma unha encravada e catarro constante resultado de cigarros, whisky nocturno e do ar condicionado sempre a mil durante todo o ano. Lili, por sua vez, e apesar dos joelhos esfolados em várias quedas de skate, tinha o poder miraculoso das jovens teen: a constante renovação das células da sua beleza. Recuperava das ressacas sem sofrimento, arriscava-se em half pipes, competia com os rapazes na velocidade.

Roger não era homem de uma mulher só. Mas quando conheceu a lisura da barriga e do púbis de Lili, a tendência dela para ler Mônicas e Cebolinhas após um orgasmo, a despreocupação com a integridade do seu corpo, começou a agarrar-se ao vigor daquela mulher com atitude de menina radical inquebrável. Uma deusa dos rolamentos.

Roger foi abandonando todos os casos temporários de cama e as mecenas femininas do seu estilo de vida. Talvez aquilo fosse amor.

Lili apareceu certa tarde com os cotovelos rasgados e um lanho no lábio. Mesmo assim atirou-se para a cama e começou a despir-se, esticando a coluna como os gatos, atiçando a fome de Roger. Ele, em vez de despir a sua sunga gigolô, foi buscar água oxigenada e algodão. Soprou nas feridas e disse: “Você tem que se cuidar.” Ela respondeu: “Não gosta de um pouquinho de dor, não?”, e beliscou-lhe os mamilos.

Roger não quis sexo nesse dia. E sempre que Lili aparecia com mazelas da sua actividade sobre rodas, ele mostrava-se mais enfermeiro que devorador. Foi enchendo o armário da casa de banho com produtos farmacêuticos, analgésicos, gaze, pomadas cicatrizantes. Pedia-lhe: “Por favor, não estrague seu corpo.” Ela respondia: “Deixa de ser bobo, o corpo é para gastar.”´

Roger resolveu que a profilaxia era melhor que os curativos e comprou-lhe um capacete. Depois joelheiras e cotoveleiras. O seu medo era tão grande que lhe ofereceu uma protecção para os dentes. Ela, depois de abrir o presente, disse: “Será que consigo fazer sexo oral com isto?”

Roger andava diferente, mais atencioso e menos cafajeste. Todo ele era cuidado e betadine e protecções almofadadas para a única mulher da sua vida – deixou de atender velhinhas aperaltadas e de usar cartões de crédito de estrangeiras para comprar relógios. Só Lili lhe importava, só Lili ocupava os seus tempos livres. Começou a espiá-la de longe: Lili e os amigos teen em descidas perigosas, Lili e suas amigas em noites de balada, Lili, que aparecia cada vez menos lá em casa, obrigando-o a intensificar as operações de vigilância.

Se ela chegava, Roger apressava-se a investigar o seu corpo, procurando feridas. Ele queria Lili intacta e perfeita, chegou a ligar para os pais dela, um telefonema anónimo alertando para os males do skate. Mas Lili continuava a deslizar no calçadão, ouvindo punk rock no seu mp3, as solas dos pés dando impulso no asfalto, a sua velocidade cheia de curvas e pele morena chamando à atenção dos homens e das mulheres por quem passava. Lili não era só de Roger. O corpo era dela e de quem ela escolhesse. Lili fazia o que bem entendia com as articulações, com a boca, com as pernas que deixaram de enlaçar a cintura de Roger.

Depois Lili foi estudar para a Europa e Roger, como tantos outros cariocas nas estatísticas de atropelamentos, atravessou a rua com o semáforo vermelho. O ônibus, como tantos outros ônibus nas estatísticas cariocas, vinha em excesso de velocidade e indiferente às pessoas que atravessam a rua. Roger foi catapultado alguns metros. Os seus ossos quebraram como galhos num dia de trovoada. As suas vértebras estilhaçaram. O seu porte de macho ficou reduzido a metade. Roger pode ser visto hoje nas ruas da zona sul do Rio de Janeiro. Tem uma crista de duas cores e move-se pela rua, sentado num skate de prancha XXL, com capacete, cotoveleiras e joelheiras, as mãos fazendo as vezes dos pés. Um paraplégico radical. Lili ficou a viver na Europa e largou o skate. Agora é relações públicas de uma marca de roupa e casou-se com um cantor lírico. Roger é conhecido como o punk aleijadinho. Todos os botecos lhe dão chopp grátis. Há quem diga que alguma coisa ainda funciona da cintura para baixo. Ele não gosta de falar disso. Mas tendo em conta a forma como olha para as pernas das mulheres, no rés-do-chão do seu skate, é provável que o ônibus assassino não tenha escangalhado todas as partes importantes do seu corpo.

Texto originalmente publicado no Sinusite Crónica

Switch on Portugal



Fotografia tirada em Santa Teresa, Rio de Janeiro.

Bicicletário carioca


Os pneus rodam pelo calçadão e a música nos auscultadores transforma o passeio num videoclip. Tudo isto podia ser um lugar-comum musicado, um anúncio dos Jogos Olímpicos, com meninas correndo, pedalando e patinando junto ao mar, uma melodia de beleza em movimento e os efeitos especiais da poeira da maresia, dos morros como pano de fundo, da humidade escorrendo das árvores. Começou a primavera a sul do trópico do umbigo do planeta, há gente no areal a meio da manhã, uma água de coco custa quatro reais (‘tá cara pra cacete esta cidade), os painéis publicitários anunciam 24 graus, esta galera anda bem-disposta, de peito feito, salários altos (inflação também) em contra ciclo anímico com a Europa. E isso acentua a sensação de videoclip, uma vez que acabei de chegar ao Rio de Janeiro depois de cruzar, nos últimos anos, a espessura e o ruído da crise portuguesa nos telejornais e nas manifestações e nas conversas de pastelaria. Um dia estou numa cidade que amo – Lisboa –, inquieto como os meus compatriotas, e no dia seguinte estou numa cidade que desejo – Rio – a pedalar numa bicicleta emprestada, MPB sintonizada nos headphones, aproveitando a incredulidade do momento.



Voltar a andar de bicicleta todos os dias, como nas tardes das férias grandes, longas de luz e de eventos heróicos, permitiu-me viver num lugar afastado da crise, recuperando uma liberdade apenas conseguida durantes aqueles três meses de verão, sem escola ou TPC, quando uma bicicleta nos bastava para ir a todo o lado. Nessas aventuras em duas rodas só interessava o entusiasmo das descidas arriscadas, a exploração de novos caminhos, o pneu traseiro derrapando sobre a terra. É assim que me sinto nestes primeiros dias no Rio de Janeiro.
Não esqueço o lugar de onde venho – aliás, sempre que alguém não compreende o que digo e questiona “oi?”, recordo-me que sou português de fonética fodida e vogais fechadas. Não esqueço o que se passa em Portugal. Mas não ser contaminado pela electricidade mediática, não debater o Alberto João Jardim num jantar ou comentar o estilo oratório do ministro das Finanças, é tão bom como andar de bicicleta num videoclip.

Saio da praia e entro nas ruas, aproveitando a largura dos passeios para fazer trajectórias de videojogo ao ritmo da música, desviando-me das pessoas, ignorando semáforos vermelhos, escolhendo uma corcunda da calçada para executar um pequeno salto. Por vezes tenho onde ir, outras vezes avanço nas ruas da cidade, vou mais longe, perco-me na Lagoa, vejo clubes de remo e os prédios da fartura carioca, festas em coberturas e crianças com babás trajadas de branco; atravesso a nuvem de maconha criada pelos fumetas precoces do Posto 9, vou por aí até que seja hora de incendiar a tocha da paz na pedra do Arpoador enquanto o sol desce atrás do morro.
Porque acabo de chegar, ainda não tenho as coisas pegadas a mim, parece que deslizo por tudo com olhos de investigador dos bichos humanos. Daí a sensação de videoclip, mesmo quando vejo pedintes sem pernas ou me contam que os mendigos são afastados da rua com choques eléctricos ou quando o porteiro insiste em abrir-me a porta da garagem, se saio de bicicleta, ainda que lhe tenha dito que não era preciso abandonar a sua secretária, que posso muito bem fazer aquilo sozinho – há aqui um servilismo constante, a clara divisão das classes, a herança da corte portuguesa e da escravatura. Uns servem, outros são servidos. (Muitas vezes chamam-me doutor. Prefiro quando a garçonete da cafetaria Rio-Lisboa diz: “Bom dia, meu anjo? Que vai ser, meu amor?”)

Porque ando de bicicleta todos os dias, porque é o meu principal meio de transporte no Rio, passo por tudo com olhos curiosos, confiando que a velocidade a que viajo me permite ir conhecendo esta cidade. Tudo é ainda cartão postal e alegria de estreante e imagens melhoradas pelo Photoshop das noites de cachaça e chopp. Chegará o dia em que, espero, escreverei sobre o Rio de Janeiro com a mesma segurança e empenho com que escrevi sobre Lisboa. Que falarei da Praça Tiradentes com tanto conhecimento de causa como quando falo do Rossio. Por enquanto, limito-te a viver e a escrever como se montado numa bicicleta, protagonista de um videoclip. Sei que o céu aqui é diferente, que passarei a usar a palavra “malemolência”, que a cerveja está sempre gelada, que há muitos portugueses no Rio, que uso mais o gerúndio, que há muitas mulheres com capacidade para alterar a temperatura de uma sala de espera, que fui recebido com atenção, ternura e uma bicicleta emprestada. Tudo isto é um videoclip com final feliz porque sofro de jet lag existencial e porque, de facto, estou feliz. Haverá dias em que me zangue com o Rio, haverá dias em que voltarei a escrever com fúria ou saudades sobre Portugal. Haverá dias em que ouvirei discos de Amália e em que não me apeteça pegar na bicicleta. Mas isso, pelo menos por agora, não me interessa nada – tal como não me interessa o Alberto João Jardim ou o reality show da TVI. Porque a maior evidência, desde que aqui cheguei, apareceu-me (como é óbvio) através da música e enquanto pedalava: “É melhor ser alegre que ser triste, a alegria é a melhor coisa que existe.”

Texto originalmente publicado no Sinusite Crónica

Terra à vista



Depois de 10 horas de ruído transatlântico – barulho de motores, sonzinho estranho de filme de avião, cintos desapertados antes do tempo –, entro por fim no silêncio de um aeroporto antes do nascer do sol. Não há filas nem crianças aceleradas por Happy Meals nem taxistas gritando propostas para gringos recém-chegados. O céu clareia, mas pouco. O comandante do avião já avisara que o Rio estava coberto por uma peruca gorda de nuvens. O taxista confirma um boletim meteorológico que impede mergulhos na praia e, rodando a chave, dá-me música de rádio. Não toca uma canção de jeito durante todo o percurso – duetos românticos e baladas melosas –, mas o gargarejar do trânsito, tão denso ao raiar da manhã, seria bem pior para quem acabou de chegar, acentuaria a estranheza de estar noutro fuso horário, noutro hemisfério, pronto para iniciar uma vida nesta cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro.

O rádio toca enquanto a paisagem de barracos de tijolo e antenas parabólicas, em dia cinzento com possibilidades de chuva, se prolonga durante quase toda a viagem. Em muitos daqueles barracos estará tocando um rádio a pilhas, um Cd antigo, um iPod ligado a colunas de som. Eles despertam com música, tomam café com música, têm celulares que providenciam música.

Saio do táxi e um bar de sucos na Gávea, onde tomo o primeiro pequeno-almoço, oferece banda sonora. Cruzo a estrada, chego ao apartamento das amigas que me recebem, ainda estremunhadas, e logo escolhem um Cd para tocar oferecendo-me o segundo pequeno-almoço.

Nas primeiras semanas nesta cidade fui recebido por música: o concerto de Roberta Sá e o seu samba com elegância marota em palco; os Primal Scream, no Circo Voador, entre coqueiros e os arcos da Lapa e os arranha-céus espelhados do Centro. O Rio é toda esta mistura: meninas vestidas como londrinas, agarradas ao seu iPhone, moleques negros e magros a pedalar em bicicletas, transportando gelo para as barracas de praia, os Primal Scream a tocar no Circo Voador e lá fora, na confusão descamisada e transpirada da Lapa, travestis e putas e turistas e indígenas hedonistas suando com a batucada. O Rio é o encanto perpétuo de Marisa Monte e o pop cristão do padre Marcelo. O Rio é Chico Buarque e funk de palavras que incentivam à sacanagem com mulheres sem calcinhas (“as preparadas”).

Já ouvi vinis, descobri cantores, fui ler sobre compositores. Há uma banda sonora nesta nova vida. Pedalo pela cidade com a rádio tocando nos headphones. Escuto histórias sobre a escandalosa Angela Rô Rô (Oiçam “É de mais”) ou sobre o gosto de Tim Maia por senhoras prostitutas.

As ruas têm nomes de músicos, o hino do Rio é uma marcha de Carnaval – “Cidade Maravilhosa”, e até o aeroporto onde aterrei tem nome de artista: Tom Jobim.

Depois do ruído aéreo da viagem, depois do silêncio do aeroporto ainda por despertar, entrei no Rio guiado pela música, e sei que esta só poderá ser uma história de amor com banda sonora.