quarta-feira, 27 de junho de 2012

Dá-me lume



Hoje acordaste como se fosse o último dia de aulas na quarta classe ou como se fosses fazer uma viagem de comboio para praia. Saíste de casa bem cedo e o sol de inverno carioca fez as vezes do verão do hemisfério norte. Mas não havia jornais com as manchetes mais importantes do dia, não viste a inclemência selvagem de Cristiano Ronaldo captada numa fotografia de primeira página, não havia bandeiras estioladas nas fachadas carcomidas da Calçada de Santana. Antes, na tua rua, via-se o Tejo. Agora vês o Corcovado. Hoje o céu está tão cristalino como uma gota de LSD e há uma frase que te roda na cabeça desde ontem:

"Dá-me lume".

Foste dormir a pensar na palavra "lume", tão poética como prosaica, usada todos os dias em esquinas, mesas de café, casas de strip. "Dá-me lume."

Ontem falaste com um amigo, de Lisboa, que te contou como a cidade fica mais gira e atrevida nos Santos, como se namora nas ruas, os fins de tarde que se prolongam até de madrugada, manchas na roupa, pássaros despertando as praças, um pequeno-almoço numa pastelaria antes do sono e um derradeiro pedido: "Dá-me lume."

Hoje acordaste a pensar que "Dá-me lume" é muito mais que uma frase batida, que tem qualquer coisa de antigo, que condensa mais séculos que livros de História e que, de alguma forma, tem a ver com a tua agitação infantil desta manhã.

É dia de jogo e gostas que esteja sol, como se fosse princípio de verão e, mais uma vez, todo o teu dia se focasse apenas nesse evento. Nada mais terá muita importância, abandonas a vida como se saísses em andamento, suspendes o resto de ti, queres outra vez essa euforia, esse roer de unhas, o sabor da cerveja entre jogadas e outro cigarro a saltar para a boca: "Dá-me lume", dirás, sem sequer tirar os olhos da televisão.

Dá-me lume: os teus amigos num tasco lisboeta, Camões escrevendo poemas de amor, os cigarros - Português Suave - roubados e fumados clandestinamente com o teu irmão numa casa abandonada, essa inquietude matinal nos dias em que ias de férias com amigos, parando em estações de serviço para tomar o pequeno-almoço, partilhando a leitura dos jornais desportivos com os companheiros de viagem, alguém olhando para a TV da cafetaria e alertando para reportagem sobre o jogo da seleção. E alguém dizia: "Dá-me lume."

Estas manhãs de sol e jogo: é como fazer oito anos, como vestir uma camisa branca e saber que só se chegará a casa de madrugada, é como tocar na perna do amigo antes do apito inicial e dizer: "Dá-me lume."

O que eu quero é a viagem. O fogo dos dias singulares e saudosos. O lume dos poetas e o lume dos apaixonados.


Hoje, se me sinto mais menino, se percebo melhor tudo o que implica ser português e dizer "Dá-me lume", é porque é dia de jogo. E, só por isso, já devo muita coisa ao futebol.

1 comentário: