quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Breve história verdadeira sobre um portuga no Vidigal


O jogo da primeira mão entre Portugal e Bósnia passava na televisão de um bar no Vidigal. Os locais preferem dizer comunidade em vez de favela. O Vidigal fica bem perto da Rocinha, há até um caminho entre as duas comunidades. Três homens viam Cristiano Ronaldo na TV, havia cervejas nas mesas ao ar livre e uma vista para as ilhas Cagarras boiando no oceano. O meu amigo, habitante do Vidigal, entediado com o zero a zero, contou-me então a história de Nuno – nome fictício por razões que perceberão em seguida.

Nuno era menino de paitrocínio, tinha vindo para o Rio estudar ou estagiar ou fingir que procurava um emprego. Grande parte das divisas enviadas pela família portuguesa era gasta em sextas-cheiras, que passaram a ser também segundas-cheiras, terça-cheiras e por aí adiante, uma viagem para o abismo cocainómano do playboyzinho lisboeta. Nuno mudou-se para o Vidigal. Tinha um aluguer mais barato e estava perto dos seus abastecedores. O meu amigo contou que, certo dia, chegado de férias em Lisboa, subiu o morro e deu de caras com Nuno, metralhadora apoiada no braço, branco e magrelas e estrangeiro como mais ninguém naquele negócio. Nuno tinha entrado para o tráfico.

Nos botecos, nas calçadas, entre soldados e locais, rolava já a piada: se alguma coisa sujasse, o português seria o primeiro a ser entregue aos policiais. O meu amigo decidiu alertar Nuno. Disse-lhe que pensasse bem nos seus hábitos nasais e que ponderasse se fazia algum sentido um menino de Lisboa andar de fuzil nas favelas do Rio de Janeiro. Nuno não estava preparado para disparar aquela arma. Pirou-se sem beijinhos ou abraços, durante a noite, e deixou as suas coisas para trás. A casa foi pilhada pelos bandidos, que passaram a vestir a roupa de Nuno.

O jogo terminou zero a zero. A selecção aborrecida no Vidigal. O meu amigo disse-me: “Ainda podes ver aí bandidos com camisolas da selecção portuguesa e do Benfica que roubaram na casa do gajo.” Um desses traficantes matou dois bandidos da Rocinha num baile funk. O meu amigo estava lá. Ouviu os disparos. Os corpos, conta-se no Vidigal, foram pendurados de cabeça para baixo, o sangue drenado. Em seguida foram cortados em pedaços. Terminaram como comida para porcos. O tipo que os matou nunca mais mostrou a cara no Vidigal. O meu amigo diz que há um vídeo no Youtube onde ele aparece com a camisola da selecção portuguesa. Fui ver e é verdade. Mas não tem cara de bandido. Desci o morro e entrei numa van a caminho de Ipanema. Dias depois o Vidigal foi ocupado pela polícia. Ninguém morreu e a vida continua.

sábado, 19 de novembro de 2011

Fado de Outono


Na praça da cidade montam um carrossel e cruzo-me com os miúdos pequenos nalguma visita de estudo, as professoras atentas como sentinelas de uma manada de crias, dois a dois e de mãos dadas, a idade de quem acabou de perder os dentes da frente, uma daquelas tardes sem cor no céu e com o vapor de transpiração infantil nas janelas embaciadas da sala de aula, exactamente como quando na segunda classe a Sónia de olhos azuis e franja de escandinava estragou uma das minhas canetas de feltro molin – logo a vermelha, num estojo de 12. Quando fosse grande como o meu irmão, dizia a minha mãe, receberia um estojo de 48 canetas que parecia um órgão com teclas a tripar LSD. Sónia, se te dei um pontapé na canela foi porque gostava demasiado de ti – quando fazias um desenho a ponta da tua língua equilibrava-te, apertando-se entre os lábios cor de melancia sem sementes. Sónia, se fui mandado para a rua e te deixei a chorar, foi porque desde o primeiro período da Infantil que queria encostar a minha boca nas tuas bochechas cor-de-rosa, tão quentes e pegajosas como a sala de aula naquela tarde, e tu nunca sequer suspeitaste. Sónia, agora que passou tanto tempo, agora que os outros miúdos estão no recreio e nós de castigo, presos na idade adulta, não chores mais porque o rimmel que usas não é à prova de prantos. Sónia, não podia ser mais importante: deixa que a minha boca sinta a tua pele de fim de tarde e prometo-te que um dia vou ter um estojo com 48 canetas de feltro. A vermelha é para ti.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Monsieur Camus e o amigo português


No aniversário do Cristo Redentor, o Rio foi tomado por um caso grave de nevoeiro londrino e até as senhoras putas, que não viam um palmo diante dos olhos em Copacabana, recolheram a casa. Pecou-se menos nessa noite. O Redentor devia estar contente, afinal de contas era o seu aniversário, ainda assim resolveu cobrir-se de nuvens, e não apareceu em nenhuma das celebrações que a cidade organizou em seu louvor.

No outro dia, nas notícias, anunciaram que uma mulher grávida caiu de um nono andar e sobreviveu. Entrevistaram-na na cama de hospital. Estava bem, o filho impecável.

E há uma semana, por exemplo, um amigo viu o Saci Pererê enquanto bebia cachaças e comia uma feijoada num restaurante do Jardim Botânico. Tinha a certeza que era ele, com aquele barretinho vermelho e sorriso trocista, aparecendo e desaparecendo entre as sombras da mata. Além disso só tinha uma perna, o que reforça o testemunho do meu amigo. Tudo bem, era noite de Halloween e havia gente mascarada, mas o que lhe quero dizer é que nesta cidade acontecem coisas estranhas. Por isso, não me espantei muito quando lhe pedi fogo e ouvi esse sotaque franciú e me dei conta que estava a falar consigo. Também vi no Facebook que esta semana fazia anos. Veio ao Rio para festejar a data?

(Foi só então que me calei. Ele já tinha terminado o primeiro copo de cachaça. Eu oferecera a primeira rodada. Ele tocou com a língua nos dentes e um silvo disparou na direcção do garçon, que olhou, esperando o pedido. Ele levantou dois dedos. O garçon perguntou: “Salinas?”. Ele disse que sim com a cabeça.)

O Waldislei é fanático do Vasco da Gama. Trabalha aqui há vinte anos. Você gostava de futebol, não gostava?

(Eu insistia em utilizar o pretérito imperfeito, como se ele estivesse morto. Mas ele estava ali, fumando cigarros de enrolar, golas do casaco levantadas, um homem bebendo e comendo carne seca na mesa do Caranguejo, um boteco de Copacabana. O meu desconforto não estava relacionado com os pormenores sobrenaturais do episódio. Se me encontrava nervoso e falador e pronto a embebedar-me mais, foi porque em tempos fui grouppie de Camus – o primeiro escritor que achei que podia fazer um road trip com Steve McQueen e que, descobri mais tarde, morreu num acidente de carro.)

E se fossemos a outro lugar?

(Entrámos na orla e caminhámos pelo calçadão. O vento desapareceu assim que passámos pelo Arpoador, o mar abrindo-se aos barcos que esperavam para entrar no porto da prosperidade brasileira. Lá ao fundo, apesar de desfocados pela maresia, estavam o Hotel Sheraton e a favela do Vidigal. Fomos avançando em silêncio, amparados entre o som das ondas e o galopar do trânsito. Camus desapertou o casaco e decidiu ir pela praia, onde arregaçou as calças e tirou os sapatos e as meias. De cigarro na boca entrou mar adentro, molhou-se até aos joelhos e saiu da água directamente para o quiosque onde pediu duas cervejas de lata. “Bem geladas”, disse, tentando imitar um carioca da gema. Sorria, por fim, o escritor. Sorriu com o barulhinho bom da cerveja assim que o dedo abriu a lata. Sorriu ao ver passar um rapaz de bicicleta que puxava uma garota de patins. Sorriu diante de um jogo de vólei de praia entre equipas femininas com calçõezinhos que encolheram na máquina de lavar.)

Se quiser podemos ir até ao Vidigal, um amigo meu vive lá, bebemos mais umas cervejas, vai rolar uma festa lá perto. Tudo tranquilo, malta do bem. Há uns quantos franceses a viver no Vidigal.

(Fez-me a primeira pergunta da noite. Seguiram-se várias enquanto caminhávamos entre o posto 9 e o posto 11.)

“Que festa é essa?”

É uma festa numa casa antiga, uma vista animal, alto jardim, e paga-se para entrar. É organizada por gente de lá, da comunidade, mas é frequentada por muitos estrangeiros.

“Caminhamos?”

Podemos ir de van.

“O que é uma van?”

São veículos para quinze pessoas que por vezes levam vinte. Basta levantar o braço e a van pára para te apanhar ou largar em qualquer lado. Tudo isso com a emoção da velocidade e o privilégio de ouvir as conversas telefónicas dos outros passageiros. Só custa dois reais e trinta. Do Leme à Rocinha. Da Barra ao Centro. E algumas até oferecem ar condicionado.

(Entrámos numa van e Camus quis pagar ao cobrador que, com metade do corpo enfiado na janela, gritava para a calçada: “Vidigal, Rocinha, tem lugar sentado”. O escritor recebeu o troco e pôs-se a olhar pela janela. Decidi calar-me. Tinha prometido que não pediria um autógrafo, que não me armaria em stalker da Feira do Livro, que não declamaria a primeira frase de “O Estrangeiro” nem juntaria as mãos gratas, informando que “A Peste” me levou a ser escritor. A fase em que eu tinha sido grouppie de Camus não era apenas resultado do pretensiosismo do rapazote adolescente que descobrira um escritor. Eu admirava Camus como admirava o Homem-Aranha, o Sherlock Holmes ou algum detective privado numa série de TV. Mais do que escrever, queria ser como Camus – o sucesso precoce e o destino trágico dos ídolos têm um enorme poder de atracção nas mentes e nos corações jovens. Eu queria ser Camus e fumar aqueles cigarros e usar aqueles casacos e aparecer naquelas fotografias a preto e branco.

A van deixou-nos na entrada do Vidigal. Saltámos para a confusão, cheirava a churrasquinho e a gasolina. Expliquei como íamos subir o morro.)

Eu pago o mototáxi. Não se importa de ir sem capacete?

“Quais são as probabilidades de ter um acidente mortal duas vezes?”

Tem razão.

(Cada um saltou para a sua moto e os nossos condutores aceleraram morro acima, desviando-se de outros veículos e animais e pessoas, produzindo em mim – e aposto que em Camus - essa contradição entre o medo da queda e a voragem pela velocidade. Entrámos na rua onde vivia o meu amigo português, comprámos cervejas de garrafa no bar do Carlão e gritei para a janela.)

Rodrigo, Rodrigo, sou eu. Ele deve estar a dormir ou a tomar banho, vamos até ao fim da rua, tem ali um mirante, vai-se passar com a vista.

(O escritor acendeu novo cigarro e afastou um mosquito da cara. Eu disse: “Cuidado com o dengue.” Ele disse: “Não será um problema tendo em conta a minha condição.” E outra vez o silêncio seguido de um sorriso. Ele abriu uma das garrafas, usando o isqueiro para fazer saltar a carica, e bebeu e sorriu outra vez, os seus olhos voando sobre o Rio, sobre as luzes do calçadão que delimitam a costa, sobre a praia branca onde ainda há pouco ele tinha molhado os pés.)

Eu não disse que era uma vista do cacete? Vamos lá ver se o meu mano Rodrigo já abriu a pestana.

(Em pouco tempo chegaram mais pessoas, estrangeiros e locais, uma mistura de idiomas e sotaques, um festa antes da festa, mais cerveja e música, o escritor dançando com uma mulata, ouvindo histórias sobre o tráfico, bebendo mais, ouvindo mais histórias, sempre atento e com a mesma alegria que mostrara no mirante. Eu olhava para ele e era como se visse um menino sábio, uma criatura capaz de deslumbrar-se ainda com tudo mas detentora de clarividência e de paz, como se estivesse drogado ou tivesse super poderes ou fosse exactamente aquilo que eu gostaria de ser. Saímos de casa. Rodrigo não trancou a porta – “Aqui ninguém rouba nada”. O meu amigo portuga, que abandonara o corporate business de S. Paulo para montar a sua micro empresa na favela do Vidigal, começou a chinelar pela calçada e explicou ao escritor a origem do nome da festa onde íamos. “Lamparina. É a festa do Lamparina mas a maioria das pessoas que lá vai não faz ideia de quem era o Lamparina. Um dia foi dormir e não acordou.” O escritor perguntou-lhe a causa da morte. “Olha, porque se cheirava desde os 14 e já tinha uns 40. Mas cheirava como quem fuma cigarros.”

Passámos em frente a um bar – balcão, três mesas e seis cadeiras na rua – e alguém comprou alguma coisa ao mulato com uma bolsinha a tiracolo. O mulato, na sua esquina, era guardado por dois brothers com metralhadoras. O escritor cumprimentou toda a gente, parecia habitante da comunidade, vizinho de longa data. O Rodrigo disse-me: “Este teu amigo é cá um ninja.”

Entrámos na festa com um desconto conseguido pelo Rodrigo, que passou parte da noite a conversar com o escritor e a apresentá-lo aos convivas. Eu perdi-me. Havia muita gente nos dois níveis do jardim. Também me lembro de um longo corredor, com areia e velas, que ia desembocar no banheiro feminino. Encontrei o escritor nesse corredor.)

Não lhe faz confusão estar numa festa, na favela, no meio de gente que podia estar numa festinha em Berlim? Não o faz pensar? Não estou a dizer que está bem ou mal, mas não o faz pensar?

(Eu queria mostrar ao escritor que reflectia sobre as coisas, que me preocupava com a existência dos outros, que tinha interesses. Ele olhou para o lado e uma mulher, negra e magra como uma pantera que faz ginástica, saiu da casa de banho para os seus braços. Deixei-os a sós. E mais uma vez ele sorriu. Sobre a festa posso dizer que tinha muitas mulheres bonitas e bem vestidas e encantadas pela música e pela vista. O escritor dançou, bebeu e flirtou. Já era quase de manhã quando voltei a falar com ele.)

Vou andando.

“Eu vou também.”

(Descemos o Vidigal a pé, a comunidade amanhecia e já cheirava a café e a pão na chapa. Meninas sofisticadas e meninas hippies desciam também, saídas da festa, cruzando-se com o ruído dos mototáxis e com as negras a caminho do trabalho na zona sul. O escritor entrou na primeira van que viu. Descemos na praia de Ipanema quando o sol, da cor da lava, aparecia sobre a pedra do Arpoador. Disse que tinha de ir ao supermercado. O escritor sacou de uns óculos escuros e perguntou: “Está aberto?”)

Está aberto 24 horas por dia. Tenho de comprar pão e água. Não beba água da torneira. Quer dizer, você deve poder beber e comer tudo que nada lhe faz mal. Quer alguma coisa?

(O escritor tinha a serenidade de um guerreiro Jedi. Queria falar com ele sobre as favelas, sobre o Rio, sobre a matéria-prima literária a cada esquina. Queria que ele tivesse orgulho de mim. E foi então que ele falou como se tivesse escutado os meus pensamentos. “Não te preocupes. Gostei muito desta noite. Não te preocupes tanto e com tantas coisas. Eu estou muito bem.” Ele sabia mais que eu, entendia mais que eu, está em algum lugar de lucidez que eu ainda desconheço. Bastou olhar para ele e percebi que não tinha de explicar-lhe nada sobre favelas ou sobre as idiossincrasias do Rio. Ele deslizava acima do meu conhecimento, fluido e silencioso como um jacto telecomandado.)

Podemos ir ali ao corredor dos doces? Tenho uma cena inacreditável para te mostrar. Quando vi isto pela primeira vez os meus olhos quase saltaram como nos desenhos animados. Vê bem isto e tripa. Ovomaltine para barrar no pão. O Brasil no advento da inovação. Felicidade pura e à colherada.

“É isso aí.”

(O escritor abriu o frasco, enfiou o indicador lá dentro, e lambeu-o.)

“É isso aí.”

(E depois voltou a sorrir.)

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Preto, branco e poucos cinzentos



Há cerca de um ano subi a favela do Cantagalo e dei por mim fora de pé, num planeta distante, tão perdido e sem referências que, ingenuamente ou porque não sabia o que dizer, perguntei ao antigo armeiro dos traficantes se o seu ofício de arranjar e limpar armas de bandidos era uma actividade perigosa. Ele olhou para mim como se eu fosse uma criança atrasada mental incapaz de entender o seu mundo e disse: “Moço, eu trabalhava para traficantes e era procurado pela polícia.” O meu interlocutor, de cognome ACME, é hoje um artista plástico que descobriu Jesus, casou, teve filhos e se livrou do vício do crack e de ser fuzilado por um dos maus da fita – contou-me como um traficante não quis acreditar que uma das armas mais caras, que lhe entregara para limpar, já estava escangalhada quando chegou ao seu barraco/oficina. ACME explicou-me ainda que foi preciso sorte e perseverança para convencer o chefe dos bandidos a tirar o dedo do gatilho, convencendo-o de que não era responsável pelo defeito do fuzil. Safou-se mas não foi a única vez que teve uma arma apontada.

Quando visitei o Cantagalo, experimentei cheiros inéditos e um calor opressivo, que escorria das paredes de tijolo como suor numa cela solitária. Tudo era tão novo como estranho e desconfortável e fascinante. Muitas vezes fiquei calado, sem que a minha expressão facial soubesse reagir a histórias como: “Se um moleque rouba roupa do varal leva um tiro na mão dos traficantes.”

Comigo (e com a amiga que me acompanhou nesta viagem) seguiu durante algum tempo um bêbedo que me avisava da merda de cachorro no chão e que me disse: “Isso aqui é ruim de mais, mas isso aqui é bom de mais.” Há pouco tempo, um amigo português, que também vive no Rio, contou-me o que dizia Tom Jobim: “Viver em Nova Iorque é bom, mas é uma merda. Viver no Rio é uma merda, mas é muito bom.”

E este fim-de-semana, lendo um artigo sobre a falta de civismo no trânsito numa rua do chique bairro do Leblon – carros em terceira fila, atropelamentos, flanelinhas (arrumadores) – um taxista entrevistado dizia: “Todos têm razão e ninguém tem razão.”

É o maior lugar-comum sobre o Brasil mas é a verdade: os contrastes aqui são tão intensos como o calor num dia de verão com a humidade a bater no vermelho. Um dia passo-me da cabeça com a burocracia medieval e no outro dia espanto-me com a qualidade de alguns serviços. Um dia oiço na rádio que o estado do Mato Grosso anda a ceifar a floresta sem pejo ou consciência e, no mesmo dia, leio que o estado do Rio de Janeiro vai plantar milhões de árvores até 2016. Uma dia vejo um grupo de crianças miseráveis e meio nuas a pedir na calçada e no mesmo dia estou numa festa com gente que fala francês e que bebe gin Hendrick’s com pepino.

Há aqui uma constante sensação de choque e deslumbramento. De manhã espanto-me com a notícia que na última década foram desviados 720 mil milhões de reais de dinheiro público e de tarde espanto-me com o trabalho comunitário na favela do Cantagalo – workshops de música, a construção de um museu, a solidariedade entre os habitantes desse espaço onde me senti um extraterrestre.

Uma das tendências inevitáveis de quem vive no estrangeiro é comparar o lugar onde está com o lugar de onde veio – fiz isso quando vivi em Nova Iorque ou em Madrid. Faz parte da condição humana. Já ouvi aqui portugueses a queixar-se do Brasil e brasileiros a queixar-se de Portugal. Disse a um amigo que tinha sido mal tratado numa repartição pública e ele, carioca, disse-me que fora enxovalhado no aeroporto da Portela. É muito fácil ceder a esse impulso de comparação, mas começo a perceber que é um exercício ingrato e desgastante.

Um amigo português que vive em Madrid há quase dez anos, mas que está a pensar mudar a sua empresa para São Paulo, disse-me em tempos: “Não é importante ser o mais forte mas o que melhor se adapta.” É isso que tento fazer aqui. Se assim não for, mais vale a pena fazer as malas e voltar para casa dos papás onde tudo é confortável e conhecido.

Ninguém disse que ia ser fácil. Ninguém disse que ia ser apenas sol e meninas bonitas na praia e caipirinhas de tangerina a meio da tarde.

Hoje, um deputado responsável pela investigação das milícias (polícias mafiosos que controlam os serviços ilegais de fornecimento de luz, tv cabo e protecção em algumas favelas), está a caminho da Europa, com a família, a convite da Amnistia Internacional, porque corre risco de vida. Hoje, ouvi a nova música de Marisa Monte e vi cajus frescos numa feira e li um poema de Drummond de Andrade e beijei uma mulher bonita.

Ninguém disse que ia ser fácil, mas já me disseram que, no final, vai valer a pena. E essa é a eterna e a maior esperança do Brasil.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Santíssima trindade sob a influência do calor

Escreve aí no teu bloquinho a minha história. Há coisas que precisam ser ditas e gente jovem para impressionar. Tu metes isto num blog ou num jornal? Podes ligar o gravadorzinho. Depois manda-me o ficheiro de som para guardar nos meus arquivos. Ontem esteve cá a Rolling Stone Brasil e para a semana vou ao Jô Soares. Já visitaste S. Paulo? Ias gostar. E já andaste de helicóptero? Bebes dry martinis? Querias ser tão bem sucedido como eu?

Estás pronto?

Eu tinha chegado ao Rio de Janeiro com a crise a morder-me os calcanhares. Em Portugal não tinha trabalho, voltei a viver com os meus pais, a minha namorada emigrou para Londres e ao fim de uns meses mandou-me um email a dizer que tinha conhecido uma pessoa e que cenas à distância só nos filmes.

Soube que havia aqui emprego e apanhei o avião. Mas as coisas pioraram antes de melhorar. Dividia casa com Wilson, um rockabilly que tomava speed e fazia versões de Sinatra na sua guitarra heavy metal. O apartamento mantinha-se em bom estado porque, por vezes, depois de tomar um speed, ele se punha a fazer a faxina em fast forward enquanto eu espiava o Facebook da galdéria londrina. Fiz uns biscates como designer gráfico e quando o meu pai telefonou e lhe disse:

“Ando a fazer uns bicos para me safar.”

Tive de explicar que aqui “bicos” são biscates. Entre nós esta historieta tem graça, ficava bem numa página de revista. Podes usar. Mas em algum momento o meu pai visualizou a imagem do filho a soprar na gaita de outro homem. E isso não tem piada nenhuma.

Em frente.

Eram tempos de desalento e chovia muito. Um dia o Wilson entrou no meu quarto e disse: “Portuga, quero que você conheça um amigão do peito.” Enchemos a cara de cachaça e fumámos tudo. Eu e o Wilson, porque o convidado, The Show Man, um gadelhudo de túnica, com cara de último dos moicanos, não intoxicava o corpo seco e musculado de mestre de kung fu.
The Show Man vendia sanduíches vegetarianas na praia, dava seminários de pinanço tântrico e tinha máximas pouco originais para todas as ocasiões.

“Escuta o que o teu corpo te segreda.”

Eu não ouvia nada a não ser o zumbido da minha consciência alterada por substâncias várias. Pode ter sido da moca, mas o momento foi místico. Wilson via porno no computador, eu acendia um baseado e The Show Man comia melancia. Levantou um dedo e repetiu várias vezes, criando um mantra:

“Maconha Sexo Melancia.”
“Maconha Sexo Melancia.”
“Maconha Sexo Melancia.”

Escuta, eu nem sou muito espiritual, mas uma pessoa chega a esta terra e sente a força dos morros e da selva e do bafo verde. Fosse o que fosse, aquele mantra mudou a minha vida.

No dia seguinte acordei muito cedo. Fui dar um mergulho e lutar contra as ondas. É o que te digo, há aqui uma cena marada, não é por acaso que há terreiros, pulseirinhas do Bonfim e igrejas em todas as esquinas. Já reparaste na quantidade de autocolantes (eles dizem adesivo) a favor de Jesus Cristo colados em quiosques, portas de barracos e tabliers de taxistas? Há muita gente a explorar a cena mística. É um grande negócio. Maior do que o meu.

Mas adiante, fosse o que fosse, tive uma visão. Pus o plano em marcha. Primeiro tinha de testar o produto. Pedi erva ao Wilson, combinei um chope com uma amiga gótica do Wilson e pus a melancia cortada em cubos – que o Wilson tinha comprado – dentro do frigorífico.

Já estiveste com uma gótica? Pois, eu também gostava de dizer que tudo começou com a prima mais jovenzinha da Malu Mader, mas foi com uma gótica que testei o produto. No entanto, faça-se justiça: ela ficava muito melhor nua do que vestida.

Maconha.

Fumámos um, ligámos as colunas ao computador, começámos a ouvir os instrumentos musicais com mais precisão, percebemos a sensibilidade apurada da pele, o aquecimento dos músculos, a doce tesão do fumo espalhando-se no sangue.

Sexo
Desapertámos botões e forçámos as costuras da roupa, beijámo-nos como se fosse uma viagem numa nave espacial, fornicámos tresloucadamente, depressa e devagar, mais beijos na boca e mãos amarradas.

Melancia
Quando os corpos regressaram à calma, o peito arfando e a cabeça num lugar qualquer, um lugar mais leve, então levantei-me e fui buscar a melancia: a boca ficou fresca, os olhos reagiram, a polpa desfez-se na língua e activou de novo o sangue. Estava fechada a minha peça magistral.

Maconha Sexo Melancia.

Experimentei com outras mulheres antes de fechar um plano de negócio. Projectei workshops, apresentações na televisão, um livro, claro, centros de atendimento espalhados por todo o país, mais tarde pelo mundo, uma rede de pessoas que seguiriam a santíssima trindade do self help para a felicidade.

Maconha Sexo Melancia

Dois anos mais tarde: todas as minhas previsões foram cumpridas. Sou uma história de sucesso, o português que deu certo no sonho brasileiro. Daqui a cem anos haverão de falar de nós.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Ai Phones e outros suspiros

Em tempos escrevi um longo artigo sobre Steve Jobs para uma revista. Das coisas que aprendi, nessas leituras e vídeos e entrevistas de pesquisa, são estas que melhor consigo recordar: as suas experiências com ácidos (open your mind, son), a bandeira de pirata que mandou pôr no topo de um dos edifícios da Apple, uma frase sua, aqui mal citada, que dizia qualquer coisa como: “Sempre admirei as pessoas que, depois do sucesso, arriscam o fracasso. Pessoas como Picasso ou Bob Dylan.” Faz sentido e fica muito bem num discurso motivacional.
Não é difícil perceber o possível encanto da narrativa de Jobs, um inspirador americano, o nerd adoptado que perde no segundo acto (foi despedido da empresa que criou) e que regressa no terceiro acto como um homem diferente e capaz de fechar a epopeia criada por ele mesmo com iPods e iPhones e iPads.

Quando li uma biografia de Jobs, lembro-me do seu espanto quando viu um rato de computador pela primeira vez, antecipando o impacto que isso teria na utilização de computadores pessoais. Um rato, coisa que usamos hoje sem pensar, movendo a mão como quem conduz em piloto automático da casa para o emprego, foi em tempos causa de assombro. Com isto quero dizer que os feitos de Jobs (onde não se inclui a invenção do rato) fazem agora parte do nosso quotidiano automático e facilitado. Operamos um iPhone como passamos o cartão no torniquete do metro ou apertamos um botão num comando e uma televisão se acende para iluminar a sala. Tudo nos parece óbvio e garantido e funciona. Muito obrigado.

Mas:

Testemunhei as reacções à morte de Steve Jobs como habitante recente do Rio de Janeiro. Falou-se do assunto em mesas de botecos, os jornalistas escreveram, os cronistas também, apareceram os grouppies e os opositores da Igreja Universal do Reino de Jobs. Imagino que foi assim em muitas cidades do mundo durante um par de dias. (Já o transtorno Facebookiano da tragédia, com odes, citações e a palavra iSad, foi bem mais dramático, uma onda global de tristeza e elegias.)

O que mais me interessou, enquanto nos botecos se discutia o legado de Jobs, foi reparar nas mãos de meninas bonitas e viajadas escorrendo na face dos seus iPhones, foi perceber como as aplicações são temas de longas e profundas conversas, como mulheres e homens adultos falam igual a adolescentes diante de um videojogo. Trata-se de uma classe em expansão em muitas outras cidades. Mas aqui sinto sempre a presença dos iPhones em meu redor, nos passeios trópico-sofisticados do Leblon, na sala de espera para estrageiros do aeroporto, na praia, na pista de dança do Studio RJ, a fim de iluminar o caminho até ao banheiro, quando alguém precisa de saber um endereço ou comprar bilhetes de cinema ou descobrir qual a capital da Arménia. Há sempre um iPhone prestável.

Já não é apenas um acessório para satisfazer a status anxiety. É um modo de vida, como usar sapatos ou andar de avião. Talvez alguns dos contributos de Jobs para a humanidade não sejam tão espectaculares como a possibilidade de fazer em apenas 10 horas, e pelo céu, o caminho que custou meses a D. João VI e à sua entourage. Seja qual for a real importância de Jobs nos hábitos de parte da humanidade, olhando para as pessoas que conheço e observo nesta cidade onde escolhi viver, percebo que está entre nós: num táxi onde os ocupantes superam o aborrecimento da viagem tacteando o ecrã, quando alguém usa o aparelho para, no Twitter, ver onde há um Blitz (operação Stop) ou na mesa onde os meus amigos saltam entre a conversa, a comida e o iPhone, tal e qual crianças com problemas de atenção.

No fundo, resume-se a isto: sou ainda demasiado novo para lamentar a tecnologia, mas já sou velho suficiente para perceber que aquilo que foi feito para nos obedecer não deveria comandar-nos.

Novos discos a comprar

Marisa Monte: O que você quer ouvir de verdade.

Pedro Luís: Tempo de Menino.





Dois discos para ouvir de ponta a ponta.