quarta-feira, 25 de abril de 2012

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Johnny be good


1
Johnny nunca vira um elefante na savana embora tivesse sido concebido em África, num território onde os paquidermes eram comuns.

Johnny olhou para o animal, que não tombou com o primeiro tiro. Johnny só começou a correr após o segundo disparado, como todos os jornais viriam a relatar mais tarde.


2
Há vinte e três anos, a mãe transportara Johnny, ainda alimentado pela placenta, entre o continente da fome negra e a promessa do continente branco, numa patera, com mar calmo e desembarque nas praias mediterrânicas durante a noite. Foi apanhada pela polícia, mas como estava grávida não podia ser deportada.

Johnny cresceu na Europa vigorosa da indústria automóvel, do advento das telecomunicações, das obras públicas que davam trabalho aos que chegavam de fora, como a mãe de Johnny, que viveu em três cidades europeias, até se casar com um primo, e montar um mercado com produtos do seu país.

Johny era bom aluno, cidadão com passaporte, um exemplo da integração e do modelo de desenvolvimento. Terminada a faculdade, foi escolhido no processo de seleção para ajudante pessoal do monarca do país. Já não vestia sua alteza da cabeça aos pés, como aconteceria séculos antes, e teve uma notoriedade incomum para o posto que ocupava. Os jornais fizeram perfis sobre o rapaz africano, que atravessara Gibraltar na barriga da mãe – uma família que cruzou a Europa até que, apoiada e motivada pelo sistema e pela bondade das gentes, conseguiu que o filho frequentasse os mesmos salões com chefes-de-estado, estrelas rock, celebridades cinematográficas, atletas de primeira linha.


3
O segundo tiro não acertou no animal. O elefante seguiu caminho, foi perdendo velocidade, cambaleava como os bêbedos, tombou junto de uma árvore que Johny não sabia o nome mas, estava seguro, vivia ali há mais tempo que toda a comitiva do safari em que participava o monarca.

Johny tinha uma namorada. Pensava casar e, mais tarde, depois do estágio com o rei, abrir um negócio, como fez sua mãe. Johny correu, por fim, mas não para o monarca, que jazia no pó, sangrando da cara porque a arma, com defeito, rebentara no momento do segundo disparo.

Johny correu para o elefante e, mais tarde, os jornais e as televisões repetiram o relato desse detalhe como a mesma insistência com que um adolescente relembra a sua primeira experiência sexual nos dias subsequentes ao extraordinário evento.

Contrataram-no para fazer anúncios de produtos orgânicos, de carros amigos do ambiente e de bancos e companhias de energia que se esforçam por dar miminhos aos clientes em função de um mundo melhor e sem poluição.


4
Johny ficou famoso.

O rei desfigurado.

E um cronista social, malvado e megalómano, tornou famoso o cognome do rei, aquele pelo qual ficará conhecido nos manuais de história: “Trombinhas”.

Houve manifestações nas redes sociais e em certas ruas por causa do incidente com o elefante. Escreveram-se crónicas a favor da caça e outras em desprimor da raça. Homem que é homem mata o que come, diziam uns. Vais pedir um double cheese de elefante?, diziam outros.

Johnny foi despedido, meses depois, quando ninguém já se lembrava dele ou do animal assassinado. O rei chamou-o e disse:

“O senhor preferiu ir em resgate do animal do que salvar o seu monarca.”

Trombinhas tinha saído, recentemente, de uma plástica de sucesso que, no entanto, não o impedia de parecer o Homem Elefante.

“O animal, como se percebe pela ação da justiça do Acaso na sua tromba, é vossa alteza. Diria mesmo uma real cavalgadura (sem insultar os equídeos) e uma majestosa bosta de vaca (igualmente sem desprimor para o trânsito intestinal dos bovinos)”.

5
Johnny abriu um mercado, teve um filho e jamais se mudou para África ou voltou a ver um elefante na savana. Quando o rei morreu, engasgado na azeitona de um dry Martini, a bordo de um iate onde pescava tubarões, Johnny fugiu do luto oficial e das cerimónias nas ruas. Levou o filho ao zoológico. Não era a savana nem havia árvores ancestrais, mas Johny habituara-se, há muito, que a procura da excelência pode ser frustrante. O zoo servia.

Desrespeitando os cartazes que pediam para não alimentar os animais, Johnny deu amendoins ao filho e disse que os atirasse na direção dos elefantes.

Johnny inquietou-se, pensando se, no futuro, o seu filho seria caçador, se abandonaria um cão, se compraria bilhetes para a tourada.

Depois, um pensamento deu-lhe algum descanso:

“Quanto à forma como o meu filho irá tratar os animais, está tudo em aberto. Mas ao menos sei que não tem a sina amaldiçoada de um dia ser rei.”

terça-feira, 17 de abril de 2012

Folhetim eletrónico do viajante Joaquim Paixão Leal Filho


Conheci Joaquim Paixão Leal Filho no início deste ano e, desde então, reparei como falava dos mais variados assuntos de uma forma epistolar. Se por acaso nos encontrávamos num boteco, era capaz de dizer-me: “No outro dia escrevi ao meu pai para lhe contar que o Benfica tem uma barraca na praia de Ipanema” ou “Mandei um email ao meu irmão para dizer-lhe que aqui gordura é formosura” ou “Hoje recebi notícias da minha mãe, foi a uma palestra do Paulo Coelho, em Zurique.”

Não sendo amigos, já tínhamos partilhado várias festas e mesas de esplanada. Juntava-nos, além da nacionalidade, o facto de nos conhecermos, embora sem nunca nos termos cumprimentado, desde a adolescência. .

Um dia, na festa de uma amiga no Alto Leblon, perguntei-lhe porque falava daquela maneira, referindo-se sempre à correspondência que mantinha com familiares e amigos.

“Não me tinha apercebido disso”, comentou.

Sendo eu, há pouco tempo, editor no Rio de Janeiro, farejei ali uma oportunidade.

“Tu tens lábia e sabes contar uma história. Aposto que tens muita coisa escrita.”

“Nem por isso, além dos emails, não tenho mais nada.”

Pedi para ler os tais emails e, na semana seguinte, propus editar um livro com a sua correspondência eletrónica dos últimos dois anos. Ele disse que não, que não ia estragar papel ou matar árvores e que não via o interesse da publicação.

Uma semana após ter recusado, ligou-me e perguntou:

“E se for num blog?”

“Eu tenho um blog.”, respondi.

“Logo vi.”

Ficou acordado que Joaquim escolheria os emails e que poderia apagar nomes ou algumas referências que identificassem terceiros – mais ou menos como desfocar a cara das criancinhas nas revistas de ficção e coscuvilhice social. Todas as semanas me mandaria três emails, eu poderia não publicá-los, se apresentasse uma razão válida.

“Tipo quê?”, perguntou ele.

“Tipo serem uma merda.”

No dia seguinte recebi os três primeiros textos.

Desde Janeiro que as encomendas não param de chegar semanalmente.

Começo agora a publicar alguns desses emails.

Quando perguntei porque tinha mudado de ideias e resolvera tornar pública a sua correspondência, Joaquim Paixão Leal Filho, respondeu:

“Vá se lá saber, apeteceu-me.”

(muda de ideias amiúde e tem revelações como se fossem gases)

“E além disso os livros têm demasiada dignidade para mim. Eu preciso de bas-fond. Os blogs são o bas-fond das belas letras, como tu.”

Entre as muitas coisas que se podem dizer de Joaquim Paixão Leal Filho, uma parece-me hoje a mais evidente. Nunca sabemos ao certo quando está a gozar connosco, com a mesa do lado ou com o mundo inteiro.



Feliz Ano Novo

Santa Teresa, Rio de Janeiro, 01 Janeiro de 2012

Querido Pai,

Gostaria de lhe dizer que estou com uma daquelas ressacas que nem um bloody mary do avô Domingos ou sequer uma omelete mista da Cleonice poderiam curar, mas a verdade é que me apresento tão saudável como os velhos imortais que madrugam para correr na orla de Copacabana.

O pai não tem nada a ver com estes maratonistas da terceira idade (desculpe se lhe estou a chamar velho, mas já conta com cinco netos e duas operações de peito aberto). Isto é gente que não aceita barrigas, matadores profissionais da caloria, uma rapaziada com muito amor pelas atividades ao ar livre.

O pai, que sempre preferiu bares e casinos, talvez não se interessasse muito pelo Rio de Janeiro, mas ontem aconteceu qualquer coisa de excecional que pode alterar o meu movimento perpétuo de nomadismo. Perdi a conta dos países por onde passei nos últimos dois anos. Tudo se esgotava rapidamente, como se entrasse num centro comercial para uma sessão de compras – em vez de sapatos adquiria experiências com cogumelos nas escarpas verdes das Astúrias, em vez de joias recolhia o amor e a amizade de outros viajantes em comboios e pequenos quartos atafulhados de mochilas, em vez de eletrodomésticos, telemóveis e aplicações, colecionava a diferença, a marginalidade, o luxo como prémio e o prazer como ofício.

Ontem choveu muito. Passei o fim de ano numa cobertura do Arpoador, com vista para os fogos-de-artifício. Havia dezenas de cruzeiros na baía, milhões de pessoas nas ruas da cidade.

O pai sabe como sou praticante ferrenho da autopsicoterapia de pacotilha (o pai fuma charuto, eu tenho meus vícios), e quando, depois da meia-noite, vi as manchas de luz desbotada pela chuva em vez da pirotecnia em todo o seu esplendor de réveillon, quando olhei à minha volta e vi mulheres bonitas, copos ao alto e corpos em saldo, champanhe tão caro que nem o pai estaria disposto a pagar por ele, percebi finalmente que já nada pulsava de emoção, percebi que estava tão apagado e aquém de mim como como os fogos-de-artifício na noite chuvosa do Rio – muita pólvora e pouca chama.

Um psicoterapeuta poderia suspeitar que se tratava de início de depressão. Sei que o pai me diria para arranjar um emprego ou um passatempo (xadrez, pesca, jiu jitsu?) e que a mãe voltaria a sugerir que me casasse com ---------, mas garanto-lhe que não temos diante de nós um típico caso de spleen. Não só estou no século errado para sofrer de aborrecimento de classe, como me molestam cada vez mais as pessoas que, tendo tudo, não se saciam com nada.

Há dois anos que viajo e antes que o dinheiro que ganhámos (e o ócio a que nos entregámos) possa tornar-me indolente e queixinhas, decidi fazer alguma coisa.

A grande notícia é essa, embora não lhe saiba dizer exatamente qual será o meu propósito.

Só posso dizer que, na noite passada, saí da cobertura sem beber mais que um gin tónico e fui passear para a praia de Ipanema.

Caminhei pela areia como se atraído pelo magnetismo do morro Dois Irmãos, cujo topo estava envolto numa película de nuvens peganhentas e chuva molha parvos. Não sei como dizer-lhe o que se passou, mas (como lhe contar isto?), olhe, tive uma ereção.
Há aqui um poder no mato, uma pujança na terra, nas pedras, nas cachoeiras e no voo dos urubus.

Isto aqui é diferente. Espero, em breve, poder explicar-lhe com mais precisão e propriedade do que falo. Só aqui estou há uma semana e por agora trata-se de um palpite, de uma intuição física – a tal ereção? (Acha estranho que me tenha acontecido isso? O avô dizia que andar de pau feito era sinal de saúde e boa esperança. Mas o avô elevou essa certeza ao paroxismo anedótico: morreu num bordel das Filipinas com 79 anos.)

Talvez esta coisa das ereções desprevenidas em momentos de mudança seja apanágio da família. Há quem tenha manchas de pele que passam de pai para filho, um determinado tipo de nariz, as mãos e os pés idênticos, mas nós, os Paixão Leal, sentimos tusa caso se nos ocorra uma epifania.

Ontem não dormi sozinho, mas também não me apaixonei.

É nesta cidade, pai, que tanto tresanda a lixo como cheira a maresia, que tanto nos tolhe o passo como nos atira ao céu, é nesta cidade que ficarei nos próximos meses. Se decidir passar com o seu barco por estas margens, avise-me. Este é o meu número brasileiro 21--------, ligue-me quando quiser. Gostaria muito que percebe na pele aquilo que sinto – lembro-me agora que, ao falar-me dos seus tempos em África, me descreveu essa pulsão física para abraçarmos árvores, essa pequenez, e ao mesmo tempo pertença, se mergulhamos na imensidão do mato e do oceano; ou o clima colado na pele e os cheiros mais molhados, mais pungentes, um mundo onde se respira outro tipo de ar, o céu cor de enxofre um segundo antes da tempestade, os pássaros que soam como buzinas de camiões antigos sempre que nasce e se põe o sol (ainda não consegui descobrir como se chamam essas aves que ouço em todo o lado.)

Por agora, estou em casa de um amigo escritor. É um holandês que enriqueceu com estufas de cannabis e, como nós, escapou da crise com a conta bem almofadada. Há dois anos que vive aqui, em Santa Teresa.

Mas isso dá outra carta. Desejo-lhe um feliz ano novo. Tenho saudades, o seu filho

Joaquim

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Manifesto do feminista (parte 1)


O feminista manifesta o seu amor pelas mulheres todos os dias.

O feminista ama todas as mulheres. Umas mais que as outras.

O feminista ama uma mulher.

O feminista não é um grouppie das mulheres – é um apreciador, um contra-peso, o oponente e o parceiro, aquele que celebra a beleza do que lhe é contrário.

O feminista devora o corpo e cuida do resto.

O feminista cuida do resto com carinhos sem ter fim e algumas qualidades culinárias.

O feminista antecipa as necessidades, prescreve o antídoto para os amuos, também segura forte nos pulsos depois de fazer as pazes.

O feminista não aproveita o ônibus para encostar a mão, não cospe piropos babados, não faz cerco quando as mulheres dançam na pista.

O feminista não força, não enquadra contra a parede, entende com a razão e o instinto quando lhe dizem “não”.

O feminista força, enquadra contra a parede, quando faz parte do jogo.

O feminista pode partir a cara de um homem que levante a mão para uma mulher.

O feminista diz sempre que sim quando uma mulher lhe pede para passar à frente para ir no banheiro dos homens.

O feminista olha, aprecia, mas não persegue.

O feminista deixa bilhetinhos a mulheres em cafés.

O feminista gosta de dar prazer.

O feminista gosta de ter prazer.

O feminista, no que se refere à depilação feminina, segue o aforismo popular: se cabe no biquíni, cabe na minha vida.

O feminista tem fetiche com sapatos de salto.

O feminista abre portas, levanta-se da mesa para cumprimentar, não se importa que vá ela dirigindo, é cavalheiro mas jamais membro de um clube exclusivo para homens.

O feminista não tem afecto pelo Photoshop nem por botox, não se importa com estrias, percebe a atracção das cicatrizes, das marcas, do peito descaído.

O feminista não joga golf, não usa écharpes, não faz juízos.

O feminista não queima soutiãs, desaperta-os sem encalhar no fecho, com a destreza de um joelheiro e a arte de um pianista.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Heterossexuais contestatárias


Depois de me emocionar com a prosa do arquitecto, no Sol, sobre "Os Homossexuais Contestatários", inspirei-me no seu texto para retratar outra maleita dos tempos modernos.




À minha frente, no elevador, está uma mulher de 34 ou 35 anos. Pelo decote, emissão de feromonas e pela forma como balança o pé dentro do sapato de salto, percebo que é heterossexual.

Estamos no elevador do Shopping da Gávea, no Rio de Janeiro, e sim, vou começar com detalhes descritivos como: trabalho naquela zona, subo e desço a rua muitas vezes, gosto muito de subir a rua, e de descer também; bebo um copo de água a meio da manhã; a Gávea é um lugar com muitas mulheres bonitas; não sei porque as mulheres bonitas escolhem certas zonas da cidade, mas, de facto, ali nos cruzamos com muitas mulheres bonitas – quase tantas como gays no Chiado.

(Se eu escrever assim e explicar tudo muito bem explicadinho, contando a minha vida desde que lavo os dentes de manhã até que ato os cordões das meias de dormir à noitinha, fica tudo mais claro e a minha singular voz literária permanecerá para sempre na cabeça dos leitores tal como a minha prosa nobelizável perpetuará sua luz nas bibliotecas do mundo inteiro.)

Julgo ser notório que a comunidade heterossexual feminina tem vindo a crescer não só no Rio de Janeiro, mas em múltiplas outras metrópoles – e a maioria queixa-se do elevado número de homens hetero imprestáveis para um namoro de verão, quanto mais para casar e ter filhos. Elas estão aí e são insolentes.

Como todos sabemos, caiu o muro de Berlim, o Fidel patina, eu li muitos livros que explicam isto, a juventude é rebelde e agora já fiz um enquadramento histórico para concluir brilhantemente que: ser hoje uma mulher heterossexual de 30 e tal anos, solteira ou sem parceiro, é moda ou uma forma de contestação.

Uma amiga minha pensou fazer uma tatuagem, participar numa manifestação a favor da legalização da maconha ou fundar uma banda de punk rock, mas depois, influenciada por amigos e pelas celebridades que assumem a sua heterossexualidade em público, resolveu ser uma trintona nos píncaros da prestação sexual, sem parceiro permanente e orgulhosa da sua condição (ela ainda não decidiu se é uma doença, se é assim porque é assim, ou se é apenas vulnerável às tendências da estação).

Durante anos, as mulheres heterossexuais de trinta e tal anos tiveram de viver num sistema que não permitia que se assumissem, muitas casavam e tinham filhos para escamotear a sua condição. Conheci umas quantas que, muitos anos mais tarde, largaram tudo e saíram do armário. Sem as lutas ideológicas da Guerra Fria, sem o confronto geracional de antanho, a insolência maior é agora ser uma mulher heterossexual de trinta e tal anos.

Quando olho para a mulher no elevador, para a forma como ostenta a sua heterossexualidade, o peito apertado, as pernas lisas e altas, não posso deixar de pensar que a sua opção é uma forma de negação radical, porque rejeita a relação homem-mulher como ela deve ser. O macho passa a ser o caçado. E a verdade é que, naquele elevador, me senti como a zebra coxa cruzando o território da leoa.

Esta mudança de paradigma, em que o homem é usado para satisfação da mulher sem fins de procriação, é um caso bicudo de niilismo, uma ausência de continuidade da espécie, como o insecto fêmea que come a cabeça do macho no final da cópula.

Sempre que uma mulher heterossexual de trinta anos tem relações com um homem sem envolvimento emocional e gravidez subsequente, morre um marinheiro no mar. E se uma dessas mulheres tem relações com outra mulher, então nesse caso morrem três fadas, dois atuns e um unicórnio.

Além de nociva, a exposição da heterossexualidade destas mulheres é, para concluir, uma moda, uma birra, um acessório no kit da noite, uma forma de chamar à atenção.

Moral da história?

Talvez o que dizia aquele grande gayzão, Oscar Wilde:

“The only thing worst than being talked about, is not being talked about”

Tradução muito livre: ser polémico é melhor que ser apenas nulo.

Moral da história 2: You go girls.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Continuarei a mandar postais

Todos os ais são meus









Talk to the hand 'cause the face ain't listening








Não quero mais toalhas molhadas em cima da cama












Quem rouba as minhas meias a cada lavagem?

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Menino do Rio (texto publicado na GQ Portugal)


Protagonista de novela e actor obstinado, já dividiu casa com ucranianos e fez papel de árvore, leão e rebuçado. Ricardo Pereira, que vive no Rio de Janeiro, não bebeu chopp nem cachaça mas falou dos tempos de festa e dos eternos equívocos entre brasileiros e portugueses. O primeiro protagonista estrangeiro de uma novela da Globo vai ser pai pela primeira vez. E embora goste muito de cinema, talvez um dia faça uma novela colombiana.

Ricardo Pereira está no bairro carioca do Leblon, carregando utensílios de praia, boné enfiado na cabeça, incentivando a mulher e os amigos, na esplanada da cafetaria Rio-Lisboa, a moverem-se na direcção da praia. É sábado de sol e céu limpo. Passaram alguns dias desde que fizemos a entrevista, e é Ricardo quem me chama, entre a confusão de gente no passeio, com o entusiasmo de um miúdo, em dia sem escola, pronto para uma manhã de carreirinhas. É uma coincidência este encontro num estabelecimento com o nome Rio-Lisboa, onde as cadeiras têm desenhado um Cristo Redentor e uma ponte sobre o Tejo. Mas é um acaso que calha bem porque durante a entrevista Ricardo Pereira falara da ligação entre os dois países com um empolgamento de criança a caminho das ondas.

Talvez esse vigor e optimismo sejam os motores que o mantêm inquieto e de agenda cheia. Já fez 18 novelas e 20 filmes aos 32 anos. Já foi manequim em Milão e actor para crianças numa digressão por Portugal. Na manhã em que nos encontrámos pela segunda vez, disse-me, antes de partir para o mar: “Cheguei ontem de um desfile em Porto Alegre.” Também esteve todos os dias no Rock in Rio a trabalhar para uma marca. Este homem não pára – apresenta o programa “Episódio Especial”, na Sic, faz publicidade, prepara-se para ser pai.

No dia da conversa para este artigo, Ricardo foi pontual e esticou o tempo além dos 60 minutos combinados, na noite anterior, por telefone. Não podia sair para os copos com a GQ porque tinha a semana ocupada com gravações da novela “Aquele Beijo”, em que é protagonista. Sugeriu um encontro no café da livraria Argumento, no Leblon, com fotografias dos astros da bossa nova na parede e uma empregada que, lá atrás, comentou com a colega "o actor português bonitão".

Onze da manhã é uma hora demasiado sadia para se falar com outro português na cidade do Rio de Janeiro. Começámos, por isso, pelas coisas sérias: ser actor de novela não é apenas ter dentes brancos e um palmo de cara. Ricardo diz que trabalha muitas horas. E foi assim desde que aqui chegou a primeira vez, há oito anos: “Gravava 30 cenas por dia e trabalhei com um director que não deixava os actores levarem os textos para a gravação. Tinhas de saber tudo na ponta da língua.” Mas um português, com 23 anos, acabado de chegar ao Rio, só se dedicava ao labor do seu ofício? Ricardo prontifica-se a explicar que não. Porém, houve um método: “Nos dois primeiros meses, antes de gravar a novela, morei em Ipanema e vivi intensamente o Rio. Mas depois mudei-me para um condomínio sossegado, na Barra, perto dos estúdios.”

O café onde conversámos tinha uma clarabóia que iluminava tudo com a luz da primavera carioca. Havia jornais nas mesas e uma calma de meio da manhã. Ricardo foi mais rápido que a modorra matinal, falou depressa, falou das fronteiras que separam o cumprimento do dever e a curtição do prazer: “Desde muito cedo os meus pais me deram liberdade e exigiram responsabilidade. Escolhia o caminho mas lidava com as consequências. Nunca fui um aluno excelente mas nunca chumbei por faltas. Estudava quando tinha de estudar. Mas não queria passar a vida a estudar, queria divertir-me. Consegui fazer várias coisas ao mesmo tempo. Na rambóia e na paródia sempre soube sair na hora certa e se passava a hora, no dia seguinte, não me queixava.”

Ainda no liceu, e através da mãe, que trabalhava com fotografia, Ricardo foi fotografado por Luís Magone – o mesmo que fotografou Soraia Chaves pela primeira vez – e acabou, com 15 anos, na agência Elite Model: “Numa semana e meia estava a desfilar em Milão sem ter ideia de nada. Os meus pais confiavam em mim, era um miúdo organizado e desenrascado, não me perdia. No apartamento onde fiquei conheci logo uns brasileiros, ficámos amigos até hoje. Um dia estávamos em Paris, na festa de inauguração de uma loja Armani, com fatos emprestados por estilistas, e quando fui cumprimentar o próprio do Giorgio Armani entornei um copo por cima dele e de mim. Não me lembro como consegui tirar a nódoa do fato antes de o devolver.”

Nos anos como modelo viajou, conheceu gente, dividiu casa com americanos, suíços, canadianos, italianos e até um ucraniano musculado, que fazia capas da Men’s Health, e que o acordava com o cheiro a fritos logo de madrugada – o apartamento era pequeno e Ricardo dormia junto da kitchenette.

O trabalho como modelo levou-o também aos anúncios televisivos. Já fez mais de 100 filmes publicitários, alguns para grandes marcas nacionais: “Percebi que me chamavam também por causa do acting, porque conseguia passar bem a mensagem e procurei fazer vários cursos de interpretação.” Depois, durante três anos, decidiu rodar o país com a companhia de teatro infantil “Magia e Fantasia”: “A reacção dos miúdos é imediata, para bem e para mal, sem filtros.” Teve hipótese de interpretar dezenas de personagens diferentes: “Fui árvore, urso, montanha, rebuçado, jóia, leão… Acho que o meu grande papel foi como árvore.”

Daí passou para o Teatro Nacional D. Maria II, no elenco da grande produção “A Real Caçada ao Sol”, de Peter Shaffer, dirigida por Carlos Avillez e onde Ricardo trabalhou com actores do teatro clássico, como Ruy de Carvalho: “Receberam-me muito bem, e olha que eu vinha da moda.” Num abrir e fechar de olhos estava na televisão a fazer séries para jovens adultos, telenovelas, séries cómicas com António Feio e Vítor Norte. Em 2002 tentou o papel de emigrante português numa novela da Globo mas o trabalho foi para o seu amigo Nuno Lopes. Dois anos mais tarde a televisão brasileira chamou-o para fazer “Como uma onda”: “Não tinha noção, era mais uma experiência. Não sabia que nunca antes um estrangeiro tinha sido protagonista de uma novela da Globo, a quarta maior televisão do mundo.”

E é assim tão diferente fazer novelas em Portugal e no Brasil? “A novela das sete da tarde é vista por 60 milhões de pessoas, a das oito por 80 milhões e a das nove da noite por 100 milhões. O retorno da publicidade é muito maior e ainda vendem as novelas para dezenas de países. O investimento é maior cá porque o mercado também é maior cá.”

Novela no Brasil é mais que números e dinheiro e estrelas. Está tão entranhada na rotina como arroz com feijão ou música a tocar no rádio ou o ar condicionado no máximo a bombar constipações no interior dos táxis e dos centros comerciais. Novela não é apenas coisa de classe C ou produto menor. No sábado em que Ricardo saiu da Rio-Lisboa para a praia, o ilustre colunista do jornal Globo, Arnaldo Bloch, usava a nobre e última página do Segundo Caderno, para falar de Carolina Dieckmann (protagonista da actual novela das nove, “Fina Estampa”). O que Bloch escreveu nesse dia foi comentado na praia e nas mesas de almoço (a sério, foi mesmo). Dizia ele: “Até o início do milênio, ela (Carolina Dieckmann) era meio cheinha e tinha uma cara de gente boa emblemática, mesmo quando o papel era sensual (…) Um dia passei por uma banca de jornal e vi, na capa de uma revista feminina, outra Carolina: estupendamente mais magra, as bochechas com aqueles buracos que viraram moda, um sorriso pálido que nada tinha do carisma ao qual eu me apegara.”

Os colunistas de jornal falam de novelas, ainda que para falar da beleza fabricada das “globais” (assim são chamadas as starletes da Globo), e os restantes brasileiros acompanham os enredos meses a fio. Na hora da novela, a televisão do boteco não desilude os clientes/telespectadores. Esta pode ser a era das séries, mas a novela brasileira ainda consegue arrebatar um país.

No Rio, diz Ricardo, as pessoas estão habituadas a ver os actores na rua, mas no resto do Brasil a adoração é mais intensa. Numa rua junto da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio, um prédio está coberto com a cara gigante de Ricardo impressa na tela de um anúncio. Trata-se da promoção da novela “Aquele Beijo”, do autor Miguel Falabella, que estreou no início de Outubro. Quando Ricardo se despediu de mim, depois da entrevista, a empregada apressou-se a perguntar: “O português não vai voltar mais não?”

Com o passar do tempo – oito anos no Rio, os dois últimos como actor exclusivo da Globo – o português deixou de fazer apenas papéis de portuga emigrado e, com ajuda de uma terapeuta da fala, passou a protagonizar brasileiros de sotaque açucarado: “No outro dia até me disseram, pensando que eu era brasileiro: Você fazia muito bem o sotaque de português.” No entanto, durante a conversa, Ricardo não larga um brasileirismo. Os dois sotaques estão separados na sua cabeça. É um português que gosta muito do Rio: “Aqui o sangue fervilha mais.” Mas garante que continuará a trabalhar em Portugal. É um português encantado pela possibilidade de dar um mergulho nas praias cariocas antes de arrancar para as gravações diárias: “Aqui a pedra chora e eles riem. A vida corre mal, mas (começa a cantar) a vida vai melhorar, a vida vai melhorar.”

Dois clichés comuns entre os brasileiros: os portugueses são baixos e as portuguesas têm bigode. Com a chegada de tantos portugueses no último ano, gente formada e com pouca pelosidade facial, os lugares comuns perdem força: “Eu cheguei aqui e comecei logo a contrariar os clichés pelo simples facto que tenho 1,83 m.” Nunca, como agora, garante Ricardo, houve tanto intercâmbio entre os dois países. Os brasileiros visitam mais Portugal e as coisas portuguesas vão chegando aos poucos – o sucesso literário de valter hugo mãe, a actuação louvada dos Buraka Som Sistema, as salas esgotadas para ver António Zambujo, os jovens portugueses que não páram de chegar ao Rio e a São Paulo.

Com o entusiasmo com que falou durante uma hora e meia, confessou que estava a tentar meter umas músicas portuguesas na banda sonora da novela: “Estou sempre a mostrar e a divulgar as nossas coisas.” Aconselha-me a não dizer “pexina” (piscina) porque ninguém vai entender. E sugere, para evitar uma gargalhada brasileira, que se evite a palavra autoclismo (eles dizem “descarga”). Ricardo estava atrasado e ainda tinha de percorrer uns 50 quilómetros até aos estúdios da Globo. Claro que quer fazer mais cinema e teatro, diz, acrescentando que adorou aprender com Raul Ruiz, no filme premiado “Mistérios de Lisboa”. Mas também confessa que não se importava de experimentar as novelas da Colômbia: “Estive lá agora, em Cartagena, 20 dias, para gravar o início desta novela, e fazem telenovelas 24 horas por dia, uma das estações chama-se Caracol”, diz, rindo-se. “Fizeram-me um convite. A minha mulher é aventureira, gosta de viajar, quem sabe.”

Carta para a sociedade protetora dos animais


Caríssimos senhores,

Venho por este meio fazer-vos um pedido. Mas para justificar a minha demanda sou obrigado a falar-vos de Bento, o bulldog francês, que permaneceu em minha casa, durante cinco dias, enquanto a dona viajava para São Paulo. Começo por dizer que não se trata de uma raça de minha preferência, e que sim, discrimino entre as raças caninas porque em criança tive um pastor alemão capaz de dar explicações de matemática a alguns dos meus colegas de escola – além de caçar coelhos, lagartos e obedecer a dezenas de comandos de voz. Rocky era um super cão.

Tenho preferências e embirrações, assumo, mas Bento entrou-me em casa tão lampeiro e confiante, cheirando o apartamento e soprando as beiças de alegria, que logo ali comecei a desativar os meus preconceitos.

Bento passeava comigo várias vezes e chegou a acompanhar-me para o trabalho – uma bonita casa na Gávea, onde Bento rebolava na alcatifa e explorava o segundo andar cheio de caixotes. Quem o conhecia, gostava dele. Na rua alguns assustavam-se com a sua cara achatada, outros elogiavam-lhe a cabeçona e o corpo musculado, um amigo chamou-lhe, carinhosamente, E.T, cruzámo-nos com outro cão da sua raça, ainda bebé, e descobrimos que tinham o mesmo nome.

O dono do outro Bento disse ao seu cão: “Olha aí o seu xará, isso é você daqui a uns tempos.”

Dois adolescentes pararam quando eu e Bento comíamos um queijo minas com peito de peru em pão francês e bebíamos um suco de melancia, e um deles fez, a meio da conversa, uma observação que me escapara: “Esses cachorros têm um problema. Como a cabeça é grandona, a mãe sofre muito quando eles nascem.”

Dei por mim várias vezes, como agora, a falar dos acontecimentos do dia em que eu e Bento tínhamos sido protagonistas. Partilhei com amigos a destreza de Bento quando, fechados no parque infantil da praça Santos Dumont, lhe lançava um pedaço de madeira e ele regressava com a madeira entre as beiças como se fumasse um charuto.

“Bento tem cara de gangster simpático.”

Dava por mim a pensar estas coisas ou a falar com ele sobre os mais variados assuntos, as suas orelhas de extra terrestre captando a minha voz e os seus olhinhos atentos. Falávamos das coisas do dia-a-dia, nunca nada de complicado, jamais política, muito menos futebol.

Na maior parte do tempo, claro, não dizíamos nada. Eu escrevia toda a manhã, depois de um passeio com Bento e de uma ida ao pão – por mais rápida que fosse a compra, ficava sempre em sobressalto, olhando pela janela a ver se Bento ainda estava preso na trela amarrada ao canteiro.

Eu escrevia e ele ficava deitado na sala, roncando e peidando-se como um estivador, por vezes alerta para alguma coisa que eu não identificava, ladrando, zangando-se, mudando de lugar.

Como disse, na maior parte do tempo, não falávamos. Eu levanta-me para ir beber água, dava-lhe uma fatia de fiambre, um cubo de melancia, ele esperava mais de mim, ficava a olhar-me, e eu cedia em mais um cubo, mais uma fatia.

Bento regressou a sua casa, deixando a minha coberta de pêlos. Aspirei-os ontem e hoje, enquanto escrevia de manhã, interrompi o trabalho e virei-me para o lado para comentar alguma coisa com Bento. Ele não estava. Na rua, a caminho do trabalho, e no regresso, cruzei-me com outros cães e outros donos.

Bento cheirava a cão, roçava-se no meu sofá como se estivesse em transe, era produtor de uma flatulência maligna e não se podia ver um filme sem o seu ressonar em dolby sorround.

Mas, como acontece quando duas criaturas são capazes de passar horas fazendo-se companhia sem dizer uma palavra, Bento e eu eramos uma boa dupla, podíamos ser uma parelha de detetives ou de aposentados bem dispostos. O bairro era nosso e nós sabíamos aproveitar os pequenos deleites do bairro: a rua das Acácias e sua abóboda de árvores, a relva molhada, ao anoitecer, na praça Santos Dumont, a garota bonita que sorria para Bento, a alegria pateta e encantadora quando dois cães se encontram, os passeios, o silêncio de nada além dos nossos passos.

Por isso, caros senhores, vos peço que, tal como cuidam dos animais abandonados por humanos, se prestem a cuidar dos humanos abandonados por animais. Bento foi-se e a qualidade do ar melhorou nesta casa. Mas quem é que me vai ouvir, a meio da manhã, quando perguntar: “E que tal se chamasse Oncinha a uma das personagens do romance?”

Com os melhores cumprimentos,
HG

Ps – no meu afeto por Bento não deve ser descuidado o facto de ser xará de outro Bento. Manuel Galrinho. O lince do Barreiro. O grande guarda-redes benfiquista da era dos bigodes.

Ps - Bento é um cão viajado e urbanita, depois de Nova Iorque e Lisboa esta é a terceira cidade onde vive.