Percebeste tarde, mesmo que para isso fosse preciso gastares dinheiro em terapia e varreres noites de várias cidades, e derrapares nas curvas das drogas, do sexo e da disponibilidade para a densidade das coisas efémeras.
Estás na Gávea, no Rio de Janeiro, a máquina apontada a ti, sem saberes muito bem por que o fazes, mas suspeitando já que, dali, sairão também palavras. É que acabaste um romance de trezentas e tal páginas, muitos meses de escrita, uma mudança de país, e é normal que procures um substituto para o teu vício diário. Agora, que terminaste o livro, procuras sucedâneos, e tiras umas fotos, escreves uns textos, fazes pesquisa para o próximo romance. Mas há um vazio que já não te recordavas, un bajón pós extâse, o som seco do cadafalso.
Fazes a fotos como se quisesses ser um criminoso, pensas: mug shots, entrando já na pele dos personagens do livro que te preparas para escrever. Nesse mesmo dia foste dar um mergulho na hora de almoço e, olhando o morro, levantado do chão pelas ondas, sentiste esse fio de alegria que perpassa a pele e que incendeia sinapses.
Foi-se a diversão das fotos numa cozinha da Gávea, choveu nos últimos dias e, se um mergulho desses, seria numa rua inundada do Rio. De repente, há um punho cerrado na tua garganta, o medo depois do esforço, um regresso ao mundo da realidade que, nos últimos meses, só visitavas algumas horas por dia, se por caso ias pagar uma conta ou fazer o jantar.
E é por isso que estás aqui, mais de uma semana após as fotos e obscurecido pelo dilúvio dos últimos dias. Estás aqui a escrever de ti para ti, tentando fazer a mudança de pele o mais depressa possível, vomitando palavras, chorando falhas, curando costuras e purgando vidas passadas.
Há uma fotografia da tua mãe na janela da sala onde escreves. Olhas para ela, voltas a olhar para o texto e sabes que nunca poderá ler aquilo que escreves, jamais acompanhará o galope do teu discurso quando falas das personagens, não ouvirá, ao fim do dia, as páginas que escreveste. No romance que acabaste de escrever há uma frase:
'Quero escrever livros e histórias e bilhetes de amor, quero escrever
em paredes, em corpos, em cadernos. Quero escrever como me jogava da prancha
mais alta, como corria para as bolas de Berlim, nas tuas mãos, numa praia a
sul, quero escrever como por vezes me afligem as saudades do meu pai, do meu
irmão, de ti. Porque se escrevo é também para que vivas mais tempo, para que
vivas os anos que te faltaram.'
No Rio de Janeiro, onde as emoções se hiperbolizam com a velocidade com que a fruta amadurece nas árvores, és mais índio, mais preto, mais português, mais carioca, mais bigode e tronco nu na bicicleta e idas à praia sem havaianas e dono do teu tempo e do teu sonho.
A vida foi dura mas é agora mais simples, o som da bicicleta rolando na orla, livros para ler e a esperança de, quando fores de férias a Lisboa, ainda ver algum jacarandá em flor.
Tiras a foto, mudas de pele, vais voltar a escrever. Fazes tudo isso tão sonoramente como quando em criança batias os dedos nas teclas de uma máquina de escrever ou saltavas, pulavas, gritavas para que a tua mãe te pudesse ver, da janela, enquanto esperavas a carrinha da escola.
Não sabes porquê mas lembras-te agora daquilo que ouviste, ao entrar numa igreja, na primeira vez que estiveste em Nova Iorque. Dizia um pastor: "Não sou ainda o homem que gostaria de ser, mas também já não sou o homem que era ontem."
Hoje, depois de muito tempo sem trocar um email, falaste com o amigo de infância que estava contigo nessa igreja, em Nova Iorque, o amigo que te disse, caminhando na Central Park West: "Eu viveria nesta cidade." Concordaste com ele e um ano depois mudaste para lá.
Hoje falaste com esse amigo, depois dos dias de chuva e do final do livro, e sentiste que ele entendia o caminho escolhido, que tinha orgulho em ti.
(Olhas outra vez para a foto na janela da sala)
E foi então que percebeste que neste auto-retrato havia muito mais que a tua cara, as tuas palavras, o teu número de mudança de pele em público. Nessa cara que trazes, nas dores nas costas e nas tatuagens que perdem a cor, no incisivo lascado, na cicatriz na testa, na torrente do teu sangue, estão todas as pessoas que, como o teu amigo, te fazem recuar, à velocidade da luz, para as longas tardes de verão da infância.
(Olhas para a mulher no sofá da sala).
És um artista inacabado, um homem em movimento, o miúdo que acredita que é sempre possível amar mais, curtir mais, conhecer mais, és um auto retrato incompleto, qualquer coisa a caminho de
qualquer
coisa
inquieta
nova
a caminho de
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