quarta-feira, 6 de junho de 2012

Sands Casino, Las Vegas, 1966


Joe Cortese detestava a cidade, dizia que areia do deserto se pegava nos dentes e que o fedor dos derrotados na roleta se entrelaçava no perfume das prostitutas da calçada. Além do bilhete que iria comprar, no mercado negro, no bar do hotel, Joe não conseguia encontrar nada que pudesse levá-lo a acreditar nas possibilidades daquela noite. Tinha, mais do que tudo, um trabalho para fazer.
 
No bar do hotel, Bobby Snout, amigo de um amigo, gordalhufo que cheirava a pizza com extra queijo, perguntou: “Tu também és paisano? De onde? Calábria?” Joe terminou o whisky, pegou no bilhete que acabara de comprar e disse, olhando a viscosidade de Bobby Snout de alto a baixo:

“Sou português, filho de beirões da raia.”

“O que é isso, México?”

“Vocês italianos só conhecem a ponta encardida da bota e a estação de comboios para Nova Jérsia.”

“Um pouco de respeito. Estás fora do teu território, ragazzo.”

Joe apertou o braço contra o coldre e sentiu o couro nas costelas, a coronha da sua pistola pressionando-se contra a carne. Não gostava de Las Vegas, precisava de outro whisky, não tinha mais cigarros e, apesar do bilhete no bolso, teria que perder parte do espetáculo para finalizar a missão que o levara de Sullivan Street, Manhattan, até aos corredores do Sands.

Joe esticou a mão e disse: “Estou na reinação.”

E Bobby Snout riu como um porco dos desenhos animados.

“Estivéssemos em Nova Iorque”, pensou Joe Cortese, “e fazia morcela de sangue contigo”.

Joe andava a tentar controlar a raiva desde que, certa noite, num bar de East Village, viu um jamaicano dar um par de estalos numa miúda mulata e resolveu interferir, arrastando o mán pelos rastas até à rua, onde repetidamente enfiou a cabeça do rapaz na caixa dos jornais enquanto dizia: “Consegues ler o teu obituário?”

Joe gostava de mulheres africanas, mas perdia as estribeiras quando confundiam os portugueses com sul-americanos ou porto-riquenhos.

Respirou fundo para não voltar atrás e apunhalar a mandíbula de Bobby Snout com a garrafa de Veve Clicquot que tinha visto dentro de um balde com gelo no balcão.

Dirigiu-se para a sala de espetáculos e perguntou onde eram as casas de banho. Não teria tempo sequer de sentar-se. Nas mesas, mulheres bonitas e bêbedas davam risadas e sentiam o fôlego de atores de cinema que lhes sopravam propostas de arrepiar a pele do pescoço.

Apagaram-se as luzes, ouviu-se o tilintar do gelo até que uma bateria encheu a sala e a voz anunciou:

“The Sands is pround to present a wonderful new show of a man and his music. The music of Count Basie and his great band. And the man… is Frank Sinatra.”

Ao ouvir os aplausos Joe sentiu-se como na peça do liceu em que fora protagonista. A raiva diluiu-se no sangue e no whisky.

Sinatra apareceu em palco: “How did all these people get into my room?”

Entre as canções “Come fly with me” e “I’ve got you under my skin”, Joe pensou na cabo-verdiana que conhecera num bar de Hoboken. Ela ia ensinar-lhe português, coisa que os pais nunca fizeram, e deixara que os dedos dele tocassem os seus mamilos por cima do tecido num parque de estacionamento.

Joe engoliu o whisky e foi para a casa de banho. Numa das cabinas encontrou uma mochila preta. Confirmou o conteúdo e dirigiu-se para o quarto. Aí mudou de roupa. Vestiu-se como um polícia, deixou a arma debaixo do colchão e pegou no revólver que vinha num saco de papel dentro da mochila.

Saiu do quarto e caminhou até ao fundo do corredor. Confirmou o número, os dedos bateram na madeira com força e disse: “Polícia, têm de sair, houve uma ameaça de bomba.” Ouviu vozes lá dentro e um homem dizendo: “Não abras.”

Tarde de mais. Assim que a mulher abriu a porta, Joe empurrou-a para o chão. O homem levantou-se e foi a correr para a casa de banho. Joe puxou a mulher pelos cabelos (um dos seus modus operandi preferidos) e foi dar com o homem tentando procurar algum tipo de arma.

“Vais matar-me com um mini sabonete?”, disse Joe. Em seguida virou-se para a mulher: “Tu, vai buscar um travesseiro.”

E só então percebeu que ela era negra como certos felinos escovados muitas vezes, uma negritude densa e cintilante. Viu como ela andava languidamente embora as mãos lhe tremessem. Viu como regressou, apenas de calcinhas e com os mamilos descobertos (os mesmos mamilos da cabo-verdiana de Hoboken). Viu como ela rogava pela vida mesmo sem dizer nada.

Joe trancou a porta da casa de banho com todos lá dentro. Olhou em seu redor como se verificasse que a família inteira estava presente para o jantar de Natal. Depois deu duas cronhadas poderosas na cabeça do homem, que estava de cuecas, sentado na borda do jacuzzi.

“Merda”, disse Joe para si mesmo enquanto o homem lhe fugia das mãos e submergia nas bolhas do jacuzzi. O sangue maculou a água como corantes de gelado na boca de uma criança. Joe puxou-o para fora com dificuldade, caindo, durante o processo, e ficando molhado até à cintura.

“Foda-se”, disse, perdendo a compostura. E olhou para a mulher: “Desculpa, não costumo ser tão mal educado. Se a minha mãe me ouvisse.”

Com o homem no chão da casa de banho, Joe passou a asfixiá-lo com o travesseiro. Começou a sentir uma fraqueza na cabeça, um ardor nos bíceps, talvez fosse dos whiskys que bebera sem jantar, talvez estivesse a ficar velho para usar as mãos naquele tipo de serviços. Pensou na cabo-verdiana, em Frank Sinatra, que já devia ter cantado “One more for the road”.

Gotas de suor frio rasgavam-lhe as costas. Um fio de cuspo escorreu pela boca. Uma veia inchou nas têmporas.

Joe Cortese puxou do revólver e disparou três tiros: um na cabeça, dois no peito.

Em seguida apontou a arma para a mulher.

“Como te chamas?”

“Maria Magdalena.”

“Não, a sério.”

“A sério, o meu avô era italiano.”

 “Gostas de Sinatra?”

“Muito.”

Ela obedeceu a todas as ordens e pegou rapidamente na roupa. Mudaram-se para o quarto de Joe. Vestiram-se. Ele enfiou o revólver do crime e o uniforme na mochila preta e desceram para a sala de espetáculos. No caminho passaram pelo bar, onde um empregado pegou na mochila e desapareceu com ela, fazendo um sinal com a sobrancelhas que substituiu as palavras: “Não te preocupes, ninguém vai encontrar isto.”

Entraram quando Sinatra terminava o monólogo cómico. Sentaram-se numa mesa, Joe pediu champanhe e ela perguntou:

“Porque estás a fazer isto?”

“Porque quero que leves alguma coisa boa desta vida.” Joe apontou para o palco e pediu silêncio. Sinatra dizia:

“I think I'd better sing before I turn 51.”

E cantou  “You make me feel so young”.

No final do concerto ele meteu-a num carro e dirigiu-se para o deserto.

Fazia frio e a areia rangia nos molares de Joe. Ela ficou diante dele. Frente a frente.

Joe julgou ouvir "Angel Eyes” tocando ao fundo. Lembrou-se de como, após Sinatra cantar o verso “Watch me as I disappear”, todas as luzes se apagaram, a escuridão total na sala, como a noite no deserto, como a pele e os olhos da mulher diante dele.

Joe apertou o gatilho. A noite fez-se dia.

1 comentário:

  1. Já tinha saudades deste tipo de conto, rodeado de uma certa aura de "se nao aconteceu podia perfeitamente ter acontecido". Keep them comming!

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