Salvador Martinha seguiu o exemplo de milhares de jovens portugueses e mandou-se para o Brasil. Não foi de vez. Mas durante três semanas foi o único estrangeiro a actuar nos clubes de comédia de São Paulo e Rio de Janeiro. Pelo meio houve tempo para beber cervejas na praia, para falar da sua necessidade de ser um mito e da sua tentativa simulada de suicídio.
Hugo Gonçalves, no Rio de Janeiro (texto publicado na GQ)
Já terminou o verão carioca, mas
Salvador Martinha, no dia de folga dos espectáculos que tem na cidade, quer ir
dar um mergulho em Ipanema. Já terminou o verão, mas faz sol e calor e o
humorista português de 28 anos trouxe consigo os calções de banho, o desejo de
beber uma cerveja no areal enquanto contempla o morro Dois Irmãos e uma
permanente atenção para os tiques, as manhas, a linguagem, os eventos do
dia-a-dia protagonizados pelos seres humanos. É por isso que, na primeira hora
de conversa, o humorista suspende oficiosamente a entrevista e faz perguntas ao
jornalista: sobre o Rio, sobre os cariocas, sobre os portugueses imigrantes no
Brasil.
Quando caminhamos no calçadão e
Salvador vai ouvindo as respostas às suas perguntas sobre a vida indígena, é
como se estivesse a processar a informação, a arrumá-la, a ver o que pode ser
utilizado e o que é palha. É um estado constante estado que, mais tarde, me
confessa ser inevitável: “Não consigo desligar, sou um sniper”. Esse desejo
permanente de observação permitiu-lhe criar piadas sobre a realidade brasileira
após duas semanas em São Paulo. Peço que me dê exemplos. Salvador notou como
nos menus dos restaurantes o “cheese burguer” é apresentado como “Xburguer”.
Aliás tudo o que leve queijo tem o X (xis) a substituir o “cheese”.
Salvador finaliza a história com
uma pergunta: “E agora digam-me, se ‘xis’ é de cheese, xoxota tem queijo?”
Ordem e Progresso
No calçadão, um turista vira a
cabeça quando ouve o sotaque de Portugal e fica a olhar para Salvador Martinha
com a cara de quem acabou de ver alguém que conhece da televisão. Minutos mais
tarde, na praia, o turista – português como se suspeitava – aproxima-se com
três cervejas e, educadamente, felicita o humorista e oferece-nos a latas
geladas. Salvador: “Muito obrigado, você assim tão simpático nem parece
português. Os portugueses são sempre mais simpáticos fora de Portugal.”
No tempo que demora beber três
rodadas de cerveja, os portugueses falam das diferenças entre brasucas e
portugas, da nova vaga de imigração lusitana para o Rio, da imagem deturpada
que cada um dos países tem do outro e – não vale a pena enganarmos ninguém –
das belas mulheres da praia de Ipanema.
Continuamos o caminho, depois dos
mergulhos, pelo calçadão e subimos ao terraço de um hotel para ver a vista.
Salvador está encantado com a cidade e com o Brasil: “Isto é muito bom, estes
gajos estão a bombar.”
O que em Portugal era uma
suposição para Salvador, tornou-se numa evidência assim que aterrou em São
Paulo: “ Eu tinha a ideia de vir para cá, sabia que o mercado estava a
explodir, queria ver se aqui também conseguia ter piada. Estou a ver que sim,
estou a ser bem recebido. Se fosse um português em Nova Iorque, ok, era mais um
estrangeiro. Aqui é diferente. Eles não estão habituados a ver humoristas que
não sejam brasileiros. E eu falo a mesma língua. Quando entro em palco há uma
atenção diferente do público. Há muitos brasileiros que nunca ouviram um
português, como aquelas velhas que não viram o mar.”
Começa a anoitecer e o Rio põe-se
agitado com os motores no trânsito, o calor subindo do alcatrão, pessoas e mais
pessoas cruzando as ruas do Leblon em hora de ponta. Salvador continua atento
ao bulício da cidade. Mas fala de outra urbe, São Paulo, com 20 milhões de
pessoas, onde passou as últimas semanas.
“O Impacto foi brutal. A ideia
que temos dos comediantes brasileiros é errada – baseada no Tom Cavalcante, no
“Sai de Baixo”, no Caco Antibes. Temos ideia de uma comédia muito popular. Aqui
entrei nos meandros da comédia urbana e estamos a falar de grandes comediantes,
mesmo muito fortes.”
Vida de humorista
Sentamo-nos numa esplanada da
avenida Ataulfo de Paiva. Salvador explica como funcionam os clubes de comédia
em São Paulo, alguns com mais de 200 lugares, e a vida dos humoristas de stand
up na megametrópole: “Eles apresentam-se todos os dias. Nós em Portugal fazemos
um espectáculo em Lisboa, outro no Porto e já está, passamos mais tempo a dar
entrevistas do que a fazer shows de stand up. Eles têm milhares de actuações.
No mesmo dia podem apresentar-se em vários bares.”
Depois Salvador foca-se na maldição
que aflige os comediantes de São Paulo:
“Nenhum deles consegue ter uma relação. Estão sempre ocupados a trabalhar
entre as oito e a meia-noite. É um problema que não tem solução. Contei isto à
minha mulher, por telefone, e ela disse-me: ‘Por isso é que tu´vives cá’ [em
Portugal].” Fim de conversa.
No Brasil, tal como em Portugal,
o nascimento do stand up como fenómeno popular começou ao mesmo tempo, no
início da primeira década do milénio. Mas Salvador alerta que em Portugal se
começou na televisão, com o programa “Levanta-te e ri”: “Foi um erro, íamos lá
morrer. Eles aqui começaram nos bares. Prepararam-se.”
Correr para trás
Salvador estreou-se em stand up
no “Levanta-te e ri”: “Faz nove anos dia 31 de maio, correu mal. Quando comecei
tinha 20 anos, era o mais novo do programa. Não tinha noção de nada. Não tinha
amigos artistas, não sabia bem onde me estava a meter. Escrever um texto? Eu
sabia lá que era preciso escrever uma piada, eu era o gajo que os amigos
achavam engraçado. Eles diziam ‘Ele tem mais piada ao vivo do que na TV”, que é
o mesmo que estarem a dizer ‘Foste uma merda’. Comecei com um sprint para
trás.”
Salvador põe-se mais sério, não
para garantir gravidade às palavras que aí vêem mas porque o tema parece ser
importante no seu percurso como humorista: “Tendo em conta como isto vai acabar,
e eu acho que sei como vai acabar, foi importante começar com um sprint para
trás. É muito diferente começar em grande do que começar como eu comecei. O
Seinfeld dizia: ‘Devo o que sou aos meus insucessos’. É muito perigoso quando
tudo corre bem.”
Olhando agora para o insucesso da
sua primeira apresentação, Salvador diz: “Era muito miúdo, é importante ter
massa, ter histórias para contar. Além disso não tinha piadas boas. Só mais
tarde é que assimilei o que estou a dizer. Nessa altura o elogio e uma crítica
entravam a mil e saiam a dez mil. Toda a gente acha que tem piada.”
O rapaz que queria ser um mito
O curso de Marketing, no IADE,
era apenas um álibi, um lugar onde ir, “estavam lá pessoas”, diz Salvador, que
não ia às aulas. “O que fazia? Tentava ser engraçado durante o curso. Antes de
conhecer esta vida era muito engraçado fora de palco, criava histórias para ser
um mito. Queria ser um mito. No IADE, simulei o meu suicídio.”
Interrompendo o professor,
levantou-se e anunciou para todos: “Desculpe, mas esta aula não está a correr
como eu quero e vou-me suicidar.” Saiu pela janela e desapareceu. Tinha-se
agachado. Depois levantou-se e disse: “Estou a brincar professor”. Noutra
ocasião disse que fora escolhido para a novela “Olhar da Serpente”.
“Tenho ainda a mesma necessidade
de aplauso, mas agora tornei-me menos engraçado na vida do dia-a-dia, tenho
local e hora certa para ser engraçado. A vida assim é mais fácil.”
Depois de quatro ou cinco
actuações no “Levanta-te e ri” deixou de ser chamado. Teve uma fase em que
andou “um pouco perdido.” Só anos mais tarde percebeu o que tinha feito de
errado. “Ainda hoje me encontram na rua e dizem ‘Brutal, eras dos melhores do
programa’. Não era nada.”
Fundou os “Alcómicos anónimos”
com Rui Sinel Cordes, Alexandre Romão, João Miranda e José beirão. Escreviam e
apresentavam skecths e stand up ao vivo, em teatros. Faziam de tudo um pouco:
“Eu gosto de fazer várias coisas, produção, direcção, estar envolvido com
tudo.”
Seguiu-se a Sic Radical, com Fogo
Posto, Pokerada e Alex & Salvador. Por fim, o canal Q, onde teve durante
dois anos um programa – “Especial” – que foi substituído pelo novo “Nada de
especial.” O canal Q permitiu-lhe ter um espaço para fazer tudo o que queria:
“Vivo da comédia, estou la há dois anos, fiz mais de cem talk shows de uma
hora. Posso fazer tudo. Já comecei uma entrevista com dois minutos de silêncio.
Chego a casa contente”.
Stand Up
No dia seguinte
entro na sala de teatro do Shopping da Gávea. Mais tarde Salvador mostraria o
seu espanto com a beleza, o ar perfumado, e a frequência do shopping – os seus
olhos sempre atentos aos humanos e aos seus hábitos. Encontrei o humorista num
canto, junto ao palco, com os outros comediantes do grupo “Comédia em Pé”, que
roda o Rio de Janeiro, em várias salas, com um alinhamento de humoristas de
stand up. Salvador chegou ali porque, como diz, não espera o telefone tocar.
Diz mais: “Esta oportunidade surgiu-me como todas as oportunidades surgem em
Portugal. Fui eu que a criei. O telefone nunca toca eu é que o faço tocar.
Ninguém recebe um email de alguém a dizer ‘Vi a tua piada num blog e quero
contratar-te, estão aqui 2500 euros e vais ser capa da Visão como o novo génio
da comédia’.”
Salvador
conheceu Fernando Caruso, um famoso humorista brasileiro, em Lisboa. “Ficámos
amigos, houve química e acabámos a mamarmo-nos na boca.” Salvador ri-se. “Não,
a sério, demo-nos muito bem e ele disse para eu passar por cá que ele me
arranjava espectáculos.” Salvador ligou mesmo. E durante três semanas subiu ao
palco quase todos os dias.
Fernando Caruso
está no grupo de artistas que espera a sala encher para começar o show. Tem,
como Salvador, uma cara incomum. Talvez por isso se dêem tão bem. Foi ele que,
no Brasil, abriu as portas dos clubes e salas de teatro ao português – “e até
as portas de casas de má vida”, disse Salvador.
Inútil seria
tentar replicar aqui a prestação de Salvador. Mas posso garantir que a
audiência se riu muito, que uma velhinha atrás de mim disse várias vezes, para
a amiga, “Ele é tão bonitinho”, e que é no palco que o simulador de suicídios
com cara estranha melhor sacia, com dedicação, arte e pertinência, a sua
necessidade de aplausos.
Em seguida fomos beber copos numa
esplanada com toldo enquanto a chuva tropical tomava a cidade. Em determinado
momento Salvador perguntou a Jorge Vaz Nande, escritor português, que vive em
São Paulo e que colaborava na produção de um documentário sobre a viagem de
Salvador para o canal Q: “Onde está o meu caderninho?” E aprontou-se a escrever
nele alguma coisa. Salvador Martinha: um sniper nunca desliga.
O documentário, já agora, está em http://jvnande.com/salvador-no-brasil-a-serie-que-gravei-com-o-salvador-martinha ;)
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