No último mês de aulas do ano letivo de 1987-88 só uma coisa nos comandava: futebol. Fazia calor e nem a brisa da praia do Tamariz entrando pelo recreio adentro impedia que as patilhas ficassem encharcadas, as golas da t-shirts encardidas e o ténis arruinados por tanto chuto ao poste, falta à canela, carrinho junto à linha de canto. Escolhemos equipas fixas e assim jogámos todos os dias, sem alterações, como se disputássemos o Campeonato da Europa desse ano. E para novelizar ainda mais o dramatismo e a emoção de tamanho evento, fazíamos a coleção de cromos da Panini.
Nesses
jogos de recreio, calhou-me ser da Holanda, e embora desejasse que me
chamassem Marco van Basten, tínhamos Jaime, o Pescador,
na equipa. E Jaime, que, mesmo quando jogava de galochas na lama tinha ginga para sentar
três adversários enquanto galgava para a baliza, colheu sem contestação o nome
do avançado holandês que marcaria um golo, sem ângulo, no jogo da final contra
a URSS, com uma precisão que parecia acaso, e com um aprumo que
só aqueles que voam podem alcançar.
No pelado
da escola fui Kieft – um avançado de segunda linha que marcou o golo da vitória
contra a Irlanda. E mesmo que padecesse, aos 11 anos, de um arruaceiro espírito
competitivo e quisesse ser o melhor marcador, estar ali, receber a bola de
Jaime, correr sem que parecesse que alguma vez me fosse cansar, era felicidade
suficiente para que celebrasse a maior das dádivas: faltar ao almoço na cantina
para jogar uma hora e 40 minutos de seguida. Esse
início de verão, quando as aulas estavam prestes a terminar e o Europeu passava
na televisão sendo recriado depois no campo do colégio, é uma das minhas
melhores recordações futebolísticas.
Não é a primeira vez que vou
acompanhar um campeonato da Europa ou do Mundo fora de Portugal. Mas é a
primeira vez que não me importa estar longe durante esse período. Mais: estou
feliz com a distância. Pensei que esse alívio
resultasse apenas da lonjura do ruído e da histeria típicos desta época de
tesão de mijo com a selecção: as reportagens sobre patetices, os jogadores
portando-se como personagens de um reality show, os anúncios de bancos, de
telemóveis, de tintas, com atletas (atores?) da seleção e referências ao Euro.
Há muito tempo que essa verborreia deixou de ser emoção para ser patologia. Mais ou menos como
o homem que tem uma linda mulher na cama mas prefere a pornografia do
computador. E, como os alcoólicos e os drogados, há muitos que recusam ver a
futebolização do país, essa fome de saciar o vazio, a raiva e a frustração. Já
não é alegria que se procura. É um anti-depressivo, um segredo mágico, uma
esperança vã.
Milhões de
pessoas depositam a sua fé em algo que é corrupto, que é dirigido por bandidos,
interpretado por donzelas caprichosas e que alimenta a mediocridade do
jornalismo. Admiramos, seguimos, celebramos e ocupamos as nossas vidas com algo sujo. Belo,
às vezes, mas na maioria das vezes sujo. É uma metáfora fácil para o país que somos? É, mas soa-me
tão verdadeira que magoa como talheres roçando num prato de loiça.
Adoro futebol e, não sendo
ingénuo para pensar que conseguirei capturar alguma vez a liberdade e a alegria
supremas naquele pelado em 1988, rasgando os jeans e sonhando que um dia estaria
na final do Europeu, lamento já não ser capaz de entusiasmo algum com esta seleção
– a que mais gasta em hotel, a que é liderada em campo por um egomaníaco.
Tal como Cristiano Ronaldo,
o país parece passar por um processo de MichaelJacksonização,
isto é, quando alguém começa a viver num mundo particular, só seu, alheado da
realidade.
Javier Marías escreveu que “O
futebol é a recuperação semanal da infância.” Quero contiuar a acreditar que
sim, mas se é para viver absorto, prefiro o recreio da infância do que a nação
zombie de agora onde (my oh my) se organizam corridas de apoio à seleção (?) e
se filmam os jogadores como se fossem protagonistas do Jersey Shore e tudo parece
tão falso e inconsequente como o pito da Barbie.
Conta-se que Artur
Agostinho, sportinguista, foi ver um jogo de Benfica e logo nos primeiros
minutos Eusébio marcou um golo monumental. O radialista levantou-se, mostrou o
bilhete e disse: “Este já está pago, agora vou ali comprar outro.”
Duvido que me venha a lembrar do Euro 2012. Mas se um dia tiver filhos é a história de Artur Agostinho, e o golo de Van Basten e a primavera de 88 num pelado junto à
praia, que lhes vou contar.
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