segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Depois de um dia difícil (o meu), sugestões de coisas boas


1
Os lisboetas podem recorrer a um serviço novo em Portugal nos seus iPhones. O Eat Out Lisbon foi criado por portugueses e está a ser um sucesso - o primeiro guia de restaurantes de Lisboa em formato mobile, inaugurado dia 20 de Janeiro, atingiu já o primeiro lugar na categoria de aplicações gratuitas da App Store, com mais de 5.000 downloads nos primeiros quatro dias.

2
Os cariocas têm de agradecer e aproveitar a iniciativa da perfeitura e do banco Itaú. Bike in Rio, ou Move Samba, como lhe quiserem chamar, tem tido uma aderência inesperada - o que só prova que o Rio está farto de carros e que deveria aproveitar a sua geografia e investir em mais ciclovias. As bicicletas são boas, o serviço também - apesar de algumas falhas a rectificar - mas, em geral, e tendo em conta que o serviço tem apenas dois meses, funciona bem.

É fácil (basta ter um celular) e muito barato (10 reais por mês). Estas magrelas laranja passaram a ser o meu principal meio de transporte na cidade. Agora só falta que os motoristas - especialmente os de ônibus - se convençam a dar prioridade aos ciclistas em vez de os perseguirem como num filme de terror. E os pedestres também, que caminham alegremente na ciclovia e, se avisados da falta, ainda nos insultam. Talvez um dia (sim, falta muito) os cariocas respeitem as magrelas como os holandeses.

3
No mundo da imagem a trezentos mil à hora, em que refilamos como crianças mimadas se o site não abre em dois segundos, ainda há quem se dedique a ouvir e a contar. O muito premiado programa de rádio This American Life pode ser ouvido online ou descarregado como podcast. E vale tanto a pena. Numa altura em que o jornalismo parece estar a ficar cada vez mais tonto, estes senhores são extraordinários contadores de histórias. Deixo aqui o link para o programa sobre os aventureiros e outro sobre a visão dos norte americanos sobre a crise do euro - este último deveria ser obrigatório em escolas mas também nos parlamentos de todo a Europa.

4
Por fim, porque tive um dia fodido, um pouco de música para, sem qualquer ruído do mundo cheio de arestas e motores, fechar os olhos e não pensar em nada.

When the going get's tough read a tough writer



"Bad luck, fate, may destroy a man, but if he mantains his own standards, he will mantain his dignity and not be defeated."

Ernest Hemingway

Gato sem botas


Zé Diogo Quintela não é misantropo mas prefere estar em casa. O humorista que já foi processado por Pinto da Costa fala de futebol, de fruta e da sua carreira como atleta de luta greco-romana nos Estados Unidos. Também cita um filósofo português.






É a primeira coisa que salta à vista quando entramos no escritório da casa: a fotografia de um mangas em mangas de camisa, cabelo com popa na dianteira, pele curtida na cara, olhar de ex-pugilista, qualquer coisa entre o pintas do bairro e o vilão do filme. Zé Diogo diz: “Já viste a confiança do gajo? Às vezes fico aqui a olhar para ele.” Comprou a fotografia do campeão da bazófia a uma artista portuguesa e continua a olhar para ela com espanto: “É um sem abrigo da Praia da Rocha. O gajo tem aquele ar de sou muito bom, um grande campeão. Gosto muito.” O escritório tem livros, uma secretária, um plasma rodeado de Dvds e o computador onde acontecem as coisas mais importantes: “Queres ver a minha equipa do Fantasy League?”. Enquanto abre a página da internet comenta a compra de Raul Meireles pelo Chelsea: “Não me parece que vá calçar.” Depois apresenta o seu onze inicial (Rooney e Torres na frente de ataque) e indica no ecrã a sua posição entre os mais de dois milhões de participantes: “Cento e dezassete mil quatrocentos e treze.” Pergunto: “Quem ganha isto, no final, ganha o quê?” Zé Diogo responde: “Quem ganha isto é um Deus do futebol”.

O futebol aparece na conversa em vários momentos. Por exemplo, assim que cheguei a sua casa, quando atravessávamos um longo corredor: “Aqui faço grandes jogatanas com os putos, já partimos umas molduras na parede.” No seu escritório há uma mesa cujo tampo é o emblema do Sporting: “Era de um dos miúdos mas já não cabia no quarto e iam mandá-la fora. Disse logo que não.” O futebol já aparecera, durante o almoço, num restaurante perto da casa de Zé Diogo, antes de nos sentarmos no escritório para analisar a sua equipa na Fantasy League: “Estava cansado de escrever sobre futebol, ainda por cima o Sporting ganha pouco.” Durante alguns anos, teve uma crónica no jornal A Bola, que deixou após uma polémica com Miguel Sousa Tavares: “Eu respondi a uma crónica em que o Miguel Sousa Tavares, também na Bola, sugeria ao Pinto da Costa que me processasse. Já tinha tido prazer de ser processado pelo Pinto da Costa, por causa de um sketch dos Gato, e de ter ganho. Mas a minha crónica foi cortada pelo director do jornal e publicada sem que estivesse na íntegra. Dava a ideia que a minha resposta era tíbia.” Zé Diogo abandonou a colaboração e pôs uma queixa na ERC, que lhe deu razão.

Mais futebol ao almoço: “Tudo é normal no futebol português. É normal que um árbitro visite o Pinto da Costa dois dias antes de ir arbitrar um jogo do Porto com o Beira-Mar, em que o Porto foi beneficiado. O Secretário devia ter sido expulso aos dez minutos. Os adeptos do Porto dizem que nessa época até foram campeões europeus. O Secretário não foi campeão europeu porque o titular nessa época era o Paulo Ferreira. Nesse jogo com o Beira-Mar, o Porto jogou com os coxos, onde se incluía o Secretário, porque tinha uma meia-final da Liga dos Campeões. O Marselha fez o mesmo quando jogou a final com o Milan. Comprou o jogo para o campeonato, antes da final, porque ia jogar com os suplentes. Foi punido por isso. Mas eu não vejo os jornais desportivos a fazer estas análises. Aliás, esses jornais têm pouco de jornalismo e de desportivos. Jornalismo fazem pouco, porque se limitam a escrever sobre as agendas dos clubes e a reproduzir conferências de imprensa. E desportivos não são porque só falam de futebol. ”

Zé Diogo tem uns óculos de massa estilosos. Pergunto: “Isso é da moda.” Ele diz: “Por acaso não, foram os óculos que usei no programa que os Gatos fizeram no fim de ano, parti os meus e só tinha estes.” Depois regressamos ao futebol: “O caso Apito Dourado reflecte o que é o nosso futebol e o nosso país. É normal que o Pinto da Costa ofereça fruta, que são putas, a árbitros. É normal que dê conselhos matrimoniais ao pai de um árbitro. Claro, se eu fosse árbitro e o meu pai andasse com uma puta também queria conselhos do Pinto da Costa. Nunca acontece nada. Está tudo nas escutas mas não ficou provado em tribunal, era a palavra de um contra o outro. O facto de uma coisa não ficar provada em tribunal, não significa que não acontece. Não costumo ler filósofos nem citá-los, mas no livro do José Gil (Portugal, Hoje: O Medo de Existir), ele fala da não inscrição, as coisas não ficam marcadas na memória, em Portugal as coisas acontecem mas depois parece que se passa por cima com rolo compressor.”

É ainda durante o almoço que me fala da Carta dos Deveres da Celebridade. Há uns dias foi fotografado com a família na praia, por um paparazzo. Quando foi pai, os predadores da objectiva rondaram o hospital. “Pensei que se tens de mostrar à tua filha que por vezes é necessário bater em alguém, aquela seria uma dessas alturas.”

Mais tarde, com os pés em cima da mesa do escritório, descalça o sapato e a meia: “Fui à pedicura.” Pergunto por que é importante que um homem cuide dos pés. Zé Diogo explica: “Porque é uma ferramenta, temos de cuidar dela, dá para jogar futebol, correr e dar pontapés no rabo de um paparazzo.” Em tempos, um jornalista disse-lhe que as celebridades têm deveres. Zé Diogo respondeu: “Claro, os deveres das celebridades, consagrados na Carta dos Deveres da Celebridade que foi publicada no mesmo ano que a Carta dos Direitos da Criança.” Pergunto: “Também fazes manicura?” Zé Diogo responde: “Não, isso é uma mariquice.”

Quando fala dos jogos de futebol no corredor, da fotografia do pintas da Praia da Rocha ou da graça que tem acender um isqueiro para incendiar um traque, Zé Diogo tem postura de traquinas silencioso, o submarino da turma que apronta sem ser apanhado. Ele descreve a sua versão infantil assim: “Era um geek, sempre usei óculos e tinha uma pala no olho (por causa do estrabismo)”. Mas quando fazia composições preocupava-se em fazer os outros rir. E a família? “Tinha umas tias que me punham a fazer aquele jogo das diferenças no jornal. Nisso eu era muito bom.”

O último ano de liceu passou-o no Wisconsin, uma cidadezinha chamada Madison, com neve, liceu de filme de adolescentes e uma família de acolhimento: “Havia os jocks, os populares, os nerds. Eu era o estrangeiro. Também havia uma islandesa andrógina, um boliviano que era horrível e uma dominicana muito boa. Fiz luta greco-romano. Mas os gajos eram enormes. Perdi todos os combates” Pergunto: “E usaste aqueles maiots justinhos?” Zé Diogo responde: “Já não há fotografias disso.” Em Madison devorou séries televisivas como Seinfeld e Friends. Pensou que devia ser giro fazer aquilo. Mas antes de se tornar humorista houve o desinteresse com um curso de comunicação social: “Tinha professores que ditavam as sebentas nas aulas.” Descontente com o sistema educativo foi trabalhar para o protocolo da EXPO 98: “Levava o presidente da
Índia ou o ministro da agricultura belga a ver o Oceanário.”

Mandou uns textos para as Produções Fictícias. Como não lhe ligaram de volta, insistiu e foi recebido pelo fundador, Nuno Artur Silva, que lhe propôs, como teste, escrever dois sketchs para algum dos programas criados ali – Contra Informação, Herman, Maria Rueff, Conversa da Treta. Escolheu os dois últimos. Fez um workshop nas PF e acabou por ser convidado, juntamente com o Tiago Dores, para fazer parte da equipa que escreveu o Programa da Maria: “Lembro-me do excitamento de ver o primeiro episódio em casa e depois perceber que tinham mudado uma data de coisas. Era um rookie, claro que tinham de mudar.” Percebeu que podia fazer vida daquilo, os pais apoiaram-no e acabou por conhecer os restantes Gatos. Depois veio o blog, a participação no programa Perfeito Anormal, o programa Gato Fedorento na Sic Radical, o jogo do vai e vem entre a Sic e a RTP, e a entrada na política diária, durante a campanha para as legislativas de 2009, com o Esmiúça os Sufrágios. Ultimamente, as campanhas da Meo.

E agora?

“Agora escrevo a crónica do Público, os guiões, com os outros Gato, do Fora da Box e faço anúncios para essa grande empresa que é a Meo. Tens Meo? Não te convence a campanha?” Conto-lhe a opinião de Bill Hicks, comediante americano, sobre os humoristas que fazem publicidade: “É como beber um cocktail com um cagalhão lá dentro.” Zé Diogo ri-se e diz: “Isso é muito estúpido.” Esforço-me para explicar que Hicks, um espírito contrário, por vezes raivoso e pregador, que morreu de cancro, queria dizer que os comediantes perdem autenticidade e liberdade se são pagos por um empresa para promovê-la. “Isso não faz sentido. Há empresas que não me pagam e sobre as quais também não faço humor. O limite é aquele que me imponho. Mas olha, se calhar eu já bebi um cagalhão, na noite, quando saía e bebia tudo o que me davam.”

Não há planos para novos programas de televisão. Os Gato Fedorento não se querem repetir: “Não fizemos mais um Esmiúça os Sufrágios, nas últimas eleições, porque não havia nada de novo a dizer, já tínhamos entrevistado toda a gente, os temas andam sempre à volta do mesmo. Tens de terminar as coisas antes que o público pense que estás a repetir-te. Não valia a pena.” Diz que votou neste governo e espera não se ter enganado. Não mostra grande entusiasmo: “Não estou desalentado mas não tenho grandes ilusões com o estado do país. Custa-me ver amigos a ir para fora, tenho amigos na Polónia, em Londres, em Madrid, nos Estados Unidos, no Brasil.” Mesmo em tempo de crise, virou homem de negócios e investiu no negócio de um primo: “Pão que não engorda. Não, estou a brincar. É a Padaria Portuguesa. Pastelaria com boa relação qualidade preço e um ambiente cuidado.” Zé Diogo gosta de estar em casa: “Não sou misantropo mas sou um bocadinho anti-social.” Tem uma filha de seis meses: “Sou um stay at home dad”. O pai que fica em casa com a filha (e uma empregada), que dá passeios com ela pelas redondezas, que tem uma fralda ao ombro e um biberão.
Quando falamos das fotografias para o artigo, Zé Diogo pega na sua câmara e começa a auto-retratar-se. No email que me mandou mais tarde, com as fotografias, escreveu: “Podes pôr que o vaidoso humorista cedeu algumas das milhares de fotografias que fazem parte do seu espólio de auto-retratos. Zé Diogo só se fotografa a si próprio.”

Texto publicado na revista GQ de Outubro.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Mala educación


É incrível ver como são, tantas vezes, os cariocas privilegiados que se comportam como selvagens ou déspotas ou indiferentes ao outro - no trânsito, por exemplo, enquanto buzinam e falam ao celular. Na Gávea, aos domingos, a fila para a entrada do parque de estacionamento do shopping é um desfilar de bons carros e famílias com babás. Gente que buzina furiosamente e se acha no direito de incomodar os outros. Tal como se acha impune - parece ser uma característica de classe. Hoje passei-me com uma perua que não tirava a mão da buzina enquanto falava alegremente no seu iPhone. Fui pedir que parasse. Ela mandou-me passear. Já me disseram que um dia levo uma tareia. Que seja. Se para manter-me homo sapiens preciso de apontar o dedo aos neanderthal, arriscando-me a levar no trombil, que seja.

Frangos assados & galetos


Ia cortar a guedelha mas cheirou-me a frango assado e substitui a angústia de me sentar, uma vez mais, na cadeira de um barbeiro que não é meu patrício, pelo consolo da pelezinha tostada, as batatatas salteadas e o pão cortado em fatias que uso para limpar a molhanga do prato. Traumatizado por experiências capilares menos felizes nas mãos de russos, venezuelanas e italo-americanos, custa-me entrar num barbeiro e ter de começar tudo de novo. Devia haver uma ficha entre barbeiros, como há entre médicos, que explicasse a história do cliente: remoinho indomável na franja, entradas valentes, benfiquista que não se importa de falar de bola enquanto a tesoura faz o seu trabalho.

Há sempre uma desculpa para evitar cortar o cabelo – um frango assado na confeitaria Rio-Lisboa é mais que suficiente para interromper a minha busca e sentar-me na esplanada. Muitas vezes, quando saio de casa, não sei onde vou parar. Mas muitas vezes acabo na Rio-Lisboa, como a mesma gula com que uma criança obesa encara um Happy Meal. Frango assado, meia porção de batatas salteadas, pão, suco de melancia. O prazer prolonga-se por minutos tal como a combinação de sabores dentro da boca. Resta-me ficar, sem pensar em ler jornais, sem fazer o mapa de deveres, sem tirar apontamentos no bloquinho. Fico ali, como se numa cama de rede, observando e ouvindo. Não fazendo nada a não ser respirar.

É bom esvaziar a cuca dos apitinhos do telemóvel, jogar tempo fora, cagar no mundo da alta velocidade e perceber a importância das esplanadas nas esquinas das cidades. Saboreio o frango. Molho o pão, remato com um gole de suco de melancia. É como ver a canarinha de 82, tudo feito com suavidade e beleza, um gosto por gostar, diversão antes de eficácia.

Meia hora assim, somente respirando como o peito de Sócrates quando recebia a bola e levantava a cabeça para o império diante de si. Meia hora: este é o meu tempo para pensar nas coisas que não têm tempo para ser pensadas. Coisas como: isto não é um frango, isto é um galeto – assim chama esta galera aos frangos assados. Mas frango assado é outra coisa, é esperar no automóvel da família enquanto o meu pai ia ao Galego ou ao Jardim dos Frangos ou ao Manolo. Frango assado é os jantares de adolescentes que preferiam gastar a massa em vodka, dividindo as aves e empanturrando-se em batatas fritas e pão saloio. Frago assado é a rua das Portas de Santo Antão, em semana de santos, com turistas lambendo os dedos e indianos vendendo cães de peluche a pilhas.

Galeto é outra coisa. Galeto é este ritualzinho que começo a praticar todas as semanas. Sair de casa, dar um passeio, querer jogar minutos fora e seguir o cheiro da gordura queimada. Galeto será agora esta memória de sabores na boca e bulício de esquina carioca.

Quando se joga tempo fora comendo galeto é isto que nos vem à memória: uma alemã disse-me, em Nova Iorque, que dizer “orange” nunca seria o mesmo que dizer “laranja”. Perguntou: “Em que pensas se dizes laranja?” E eu pensei no Algarve, na casa dos meus avós, qualquer coisa com muito verão. Podia ter feito um anúncio para tv com tanta imagem solarenga.

Coisas que se descobrem quando há tempo para jogar fora: frango assado é uma coisa, galeto será outra coisa. Tudo isto usando a mesmo língua. Hoje, mordendo uma coxinha suculenta e vendo o tráfico de pessoas na calçada, percebi o privilégio de poder usar duas versões do mesmo idioma e o impacto que isso terá em todos os portugueses que vivem aqui e aí. Assustem-se os puristas, mas se há tantos milhares de jovens tugas no Brasil como se supõe, com o passar dos anos, com as viagens de vai-e-vem, com os filhos dessa gente crescendo aqui, a língua começará a ser outra coisa. Isso, confesso, não me assusta. E se por ventura esta miscigenação linguística acontecer, enquanto indivíduo que se diverte com este ofício, vejo o futuro como algo entusiasmante.

Ou talvez tudo isto seja apenas o delírio de quem tem tempo para jogar fora e procura epifanias no estado de transe provocado pelo galeto da Rio-Lisboa. Há quem reze, faça meditação, jogue búzios. Eu vou comer galetos para encontrar paz e clarividência e perspectiva. God bless the chicken. Ou como dizia o outro: “It beats working.”

Europa


Acredito na Europa, muito. Só não acredito no que fizeram com ela. E há anos que penso isto, melhor dito, claro, por Umberto Eco: "The university exchange programme Erasmus is barely mentioned in the business sections of newspapers, yet Erasmus has created the first generation of young Europeans. I call it a sexual revolution: a young Catalan man meets a Flemish girl – they fall in love, they get married and they become European, as do their children. The Erasmus idea should be compulsory – not just for students, but also for taxi drivers, plumbers and other workers. By this, I mean they need to spend time in other countries within the European Union; they should integrate."

A totalidade da entrevista pode ser lida no The Guardian, clicar aqui.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Rio de Janeiro rola que rola




"De todas as cidades onde vivi, esta é a mais montanha-russa. Dias de sol onde tudo parece avançar ao ritmo do entusiasmo da cidade são seguidos de dias de chuva onde a burocracia nos manda a três lugares diferentes, o agente imobiliário não aparece e o empregado de mesa traz o suco dez minutos após a sanduíche.
Mas, ainda assim, o Rio continua lindo."

Terceiro e último texto da série "Como mudar de cidade", que escrevi para o Dinheiro Vivo. Para ler na íntegra, basta clicar aqui.

Madrid me da la vida


"Esqueça o sofisma: os espanhóis não se esforçam por entender o que dizemos. De facto, por causa da nossa fonética muda, eles não percebem. É mais fácil um português aprender espanhol que o contrário. Não há outra solução: falar espanhol é preciso."


Segundo texto da série "Como mudar de cidade", que escrevi para o Dinheiro Vivo. Para ler na íntegra, basta clicar aqui.

I Still love you New York


"Na primeira vez que entrei num supermercado saí sem comprar nada, assustado com o preço de uma pêra (vendida avulso) e com o delírio de produtos estranhos – “I can’t believe it’s not butter”. Comer sai caro em Nova Iorque. E a obsessão dos nova-iorquinos com os restaurantes já levou alguém a questionar a utilidade de saber-se o nome de 76 tipos de sushi."


Primeiro texto da série "Como mudar de cidade", que escrevi para o Dinheiro Vivo. Para ler na íntegra, basta clicar aqui.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Nêguinha literária





Ela decidiu ser escritora porque não sabia fazer mais nada e porque achou que seria uma carreira com benefícios – sem hora para acordar, sem hora para dormir, libertinagem em forma de pesquisa, viagens interiores, férias em cidades distantes, muitos groupies com livros para autografar, gente que despiria a roupa sob seu comando.

Mas ela só tinha escrito uns poemas e uns contos, coisa pouca, escritora bissexta e sacerdotisa da procrastinação. Publicou poemas na revista da faculdade, escreveu uma frase num muro de Santa Teresa, chupou o pau de um escritor que nunca lhe escreveu nada, nem um puto soneto ou um bilhete com o número de telefone.

Sexo para atingir a ascensão literária é uma merda, pensou ela, quando saiu do apartamento de um vate com prémios ganhos e traduções múltiplas. Antes tivesse fodido para receber um carro ou um vestido, pensou. Antes se deslumbrasse por alguém que pagasse as contas da luz e da internet mais o condomínio e jantares e um passeio que não acabasse sempre na cama, com ela recebendo a virilidade vaidosa de poetas, romancistas, letristas e editores.

Queria um senhor que tomasse conta de mim, pensou ela. Que se foda o feminismo e a literatura cocktail molotov. Eu quero colo e botox nas rugas na testa. Eu quero a geladeira cheia e uma casa na Ilha Grande.

Levava anos a escrever e nada. Os benefícios eram agora mais pragas que bênçãos. O seu fígado compadecia-se em certas manhãs, acordar tarde já lhe tinha custado alguns empregos, e nunca ninguém aparecera no seu quarto de hotel, durante um festival literário, pronto para adorá-la e para, mesmo antes de gozar, gritar bem alto: “A sua escrita mudou a minha vida.”

Putaquepariu para esses velhos da academia, comernocu romancistas preyboys, vãosefoder poetisas das colectâneas e roteiristas de merda nenhuma.

Ela decidiu que ia arranjar um emprego, um namorado com mastercard, visa e american express. Ia dar para ele todo a noite antes de deitar, ia dar ordens para a empregada, ia dar passeios enquanto as babás tomavam conta dos pequenos, ia dar o que fosse preciso para receber o que lhe fazia mais falta.

Literatura é coisa de veado e de putinha, pensou ela.

Literatura é coisa de teen gótica e de egomaníacos eloquentes, pensou ela.

Desde esse dia nunca mais frequentou saraus, recitais, lançamentos, entregas de prémios e camas com velhos romancistas – um deles disse-lhe que não tomava viagra porque a atenção dos jornais e das fãs, durante os dias do festival literário de Parati, garantiam dureza e desempenho de manhã à noite.

Literatura é coisa de velho tarado, pensou ela.

Literatura é coisa de mulher que fica para tia e não se masturba, pensou.

Havia uma milhão de razões para ela não ser feliz escrevendo.

Podem vê-la agora em bares de hotel e restaurantes sugeridos por uma qualquer revista, bebendo e jantando com homens de camisa social, relógio e perfume comprado no free shop. Podem vê-la também no calçadão, coberta de roupa e de protector solar para não ficar com a pele morena dos pobres. Nêguinha quer ar condicionado e vidros fumados e a ordem e o progresso que este país promete. Nêguinha já não é nêguinha. É princesa. Nêguinha ficou tão branquelas na alma como uma tarde de shopping no Leblon com valet parking e vinho argentino na esplanada de um bar.

Nêguinha já era. Agora tem de falar princesa. E princesas, como se sabe, não precisam de literatura para serem adoradas.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Curva e contra curva






Uma tarde a passear pela cidade com Soraia Chaves tornou-se numa conversa nocturna com vinho e comida sobre a mesa. A actriz, que prefere viajar ou estar em casa a ver filmes, aborrece-se com jornalistas e gosta de cocktails fortes.

O nosso plano era comer um gelado no Santini, depois dar um giro por Lisboa antiga com direito a viagem de eléctrico e miradouros e talvez compras nalguma loja de roupa. Faz muito calor em Lisboa e a fila para os gelados mais populares da cidade derrama-se para a rua. Recombinamos o encontro, num sítio com ar condicionado e onde a espera seja amenizada com livros nas prateleiras. Na Fnac, pensa este jornalista, talvez haja pretextos para lançar a conversa com a actriz que mais gente leva ao cinema em Portugal e que deixa homens de pernas bambas só de olharem para um poster.

Afinal, mulheres bonitas ficam bem em livrarias.
Soraia desce as escadas rolantes e olha para o livro que o jornalista tem na mão – “Man without women”, de Ernest Hemingway – (um truque para começar a conversa com a actriz). Mas não é literatura que lhe interessa nesse momento, ainda que confesse a sua fidelidade a autores como Charles Bukowsky ou Philip Roth – acabou de ler, recentemente, o “Teatro de Sabbath”, a história de um velho artista de marionetas, manipulador de mulheres e entusiasta de sexo a abrir e fora da norma. “Gosto de escritores masculinos”.

Ernest Emingway era um entusiasta de dry martinis, chamava-lhes “silver bullets”, porque, atraentes e prateados, chegavam ao cérebro sóbrio como a velocidade de uma bala. É uma desculpa para perguntar, tendo em conta a fila para o Santini: “E se fossemos antes beber um copo?” Soraia concorda que um cocktail é mais pertinente que um gelado numa conversa entre adultos.

Na alcatifa silenciosa da livraria, há ainda tempo para falar das trivialidades da estação: “Onde vais passar férias?” Soraia responde enquanto ascende nas escadas rolantes: “Tinha pensado passar um mês na Índia, mas tenho trabalho. Vou amanhã para Berlim, passar uns dias com uma amiga que vive lá.” Tem uma saia comprida, um top, uma écharpe e uns óculos escuros, muito mais discreta que a modernidade da indumentária dos frequentadores do Chiado, que sobem e descem a rua Garrett – brincos, tatuagens, fatiotas com inspiração londrina, calçõezinhos tão curtos que parecem ter encolhido na máquina. Soraia não dá nas vistas e raros são aqueles que percebem quem ela é. Avança como se fosse comprar o jornal ou apanhar o autocarro.
Pergunto-lhe se tem truques para passar despercebida, como Robert De Niro, que aconselhou Leonardo DiCaprio a usar óculos de ver porque são a melhor forma de descaracterizar uma cara que aparece em ecrãs em todo o mundo. Ela responde: “No meu caso é a simplicidade, as pessoas têm uma ideia de mim muito produzida, por causa dos filmes, mas ando de chinelos e calças de ganga e t-shirt. Por vezes olham para mim, mas não têm a certeza se sou eu.”

Se é verdade que, como disse o realizador António Pedro Vasconcelos, que a dirigiu em “Call Girl” e “A bela e o paparazzo”, a câmara adora Soraia Chaves, fora de um plateau a actriz é muito menos personagem – sente-se pouco cómoda em entrevistas, não gosta de falar da sua vida, esconde-se um bocadinho das perguntas e das máquinas fotográficas.

Sentamo-nos na esplanada do restaurante Pharmácia, com relva, vista para o Tejo, para a ponte e para o entardecer de fogo de Lisboa. Soraia pede uma imperial e explica porque, sendo ex-modelo e actriz, não tem grande desenvoltura diante de jornalistas: “Sinto-me mais desconfortável a fotografar do que quando comecei como manequim. Acho que tem a ver com o facto de me sentir mais observada. Com a exposição de “O Crime do Padre Amaro”… Na altura foi um bocado (longa pausa). Não sei, foi estranho, as pessoas saberem o meu nome, saberem quem eu sou. Inicialmente era muito genuína e sentia-me à vontade em entrevistas. Tinha uma certa inocência. Depois começaram a surgir as notícias falsas dos namoros, os rumores. Diziam que eu tinha provocado um divórcio ou que andava com o Cristiano Ronaldo, que namorava com este e com aquele, comecei a sentir-me invadida, isso tornou-me mais reservada.”

Os jornalistas da imprensa cor-de-rosa queriam colar as personagens sexy e arrojadas na pele da actriz. Inventaram-lhe casos, apareceram no aeroporto para ver quem a ia buscar, chegaram a plantar-se na porta de casa dos seus pais. E é por isso que quase não fala da família, que é grande e feminina: “Tenho quatro irmãs, sou a penúltima, e em minha casa havia sempre muitas mulheres. Cresci na Trafaria, perto da praia, andava muito de bicicleta, apanhava fruta, fui muito livre, quase como crescer no campo, não tem nada a ver com a vida citadina que tenho hoje. Ter crescido entre mulheres marcou a minha forma de ser. ”

Chega o primeiro cocktail, prova dos hábitos citadinos da actriz. O jornalista acompanha, escutando o relato de uma infância que, nas palavras de Soraia, foi “muito muito girly”: “Passava muito tempo com as minhas irmãs, fazíamos personagens, uma era a mãe, outra a filha, brincávamos às casinhas, víamos filmes e dançávamos e ouvíamos
música. Era tudo muito teatral.”

Não frequentou a faculdade mas sempre gostou de estudar: “Adorava a escola, adorava aprender”. O seu primeiro desgosto escolar – aos dez anos teve uma doença que a obrigou a ficar todo o primeiro período em casa –, acabou por resultar em boas notas. Mesmo fechada em casa, pedia a matéria e estudava. Quando foi fazer os testes, em Dezembro, apresentou-se como aluna de satisfaz muito bem. No entanto, tinha uma falha, como devem ter todas as personagens de cinema. No seu caso era a Matemática. A outra falha: ingenuidade. Escolheu, no décimo ano, a área de jornalismo, efabulando com viagens pelo mundo e reportagens em terras longínquas. Soraia não chegou sequer a perceber, na prática, que o jornalismo nem sempre é romântico.

Com 14 anos começou a trabalhar como manequim: “Nos anos 90 houve o boom das super modelos com a Claudia Schiffer e a Cindy Crawford, eram lindíssimas, havia todo aquele glamour da moda e isso influenciou a menina que eu era. Mas não sonhava ser modelo, queria apenas saber como era fazer uma sessão fotográfica, ter aquela experiência.”

Estava no 9º ano quando participou no concurso de uma revista para adolescentes. Escreveu uma carta e mandou fotografias: “Encontrei uma dessas fotos no outro dia, espero não ter enviado essa, estava de biquíni e com a gata da família ao colo, chamava-se Branquinha.” Soraia ri-se do seu relato, como se não se levasse muito a sério, capaz de fazer humor com a narrativa da sua vida diante de um jornalista.
O fotógrafo gostou da postura daquela miúda de 14 anos e sugeriu-a à agência Elite. “Eu nem sabia que havia agências de manequins”. Ganhou o concurso Elite Model Look e foi representar Portugal no estrangeiro. Viajou para Nice e teve uma revelação: “Existem muitas mulheres bonitas no mundo. Não tinha a menor hipótese de ganhar, não era convencida mas aquilo foi um reality-check, deu-me perspectiva.” O concurso, claro, foi ganho por uma holandesa alta, loira e linda.

Nas pausas dos trabalhos como modelo, Soraia voltava a comer hambuguers e gelados. Nunca quis saber muito de moda nem da linha – adora comer –, não chegou a deslumbrar-se com o universo glamouroso, trabalhava e regressava a casa para estar com os amigos que, mais que adoradores da nova estrela da Trafaria, sempre souberam brincar com a exposição da amiga. Também os pais que, durante a adolescência, a acompanharam nos trabalhos como modelo, contribuíram para que não descolasse os pés do chão e perdesse a cabeça.

Depois de uma temporada na África do Sul, onde trabalhou como manequim, resolveu regressar a Portugal com a certeza que queria ser actriz: “Já o sabia há muito tempo mas tinha que fazer alguma coisa para isso.” Paul Auster diz que as boas histórias só aparecem a quem sabe contá-las. Parece que esse foi o caso de Soraia. Um dia depois de regressar da África do Sul, recebeu uma chamada para fazer uma audição para “O Crime do Padre Amaro.” O filme mais visto de sempre em Portugal deve muito desse sucesso ao magnetismo sexual da actriz e, com tantos voyeurs encapotados e adoradores reprimidos da nudez feminina na audiência, tornou-se num fenómeno de bilheteira.
Para esse filme, Soraia trabalhou com o realizador João Canijo, durante dois meses, antes de começar a filmar: “O João Canijo não esteve ligado ao filme, mas foi contratado para me ajudar a perceber o ofício de actriz, chegámos a trabalhar textos de Fassbinder e Shakespeare. A nudez para mim é fácil, o difícil é abordar o texto com verdade. Isso sim é que me interessava.”

O público, já se sabe, prefere gajas nuas. E as revistas sabem disso. Quando começou a perseguição mediática, Soraia mandou-se para Nova Iorque. Esteve lá três meses, estudou representação, não fez amigos, ia ao teatro e a concertos sozinha. Escrevia muito em caderninhos, nos cafés, ninguém a reconhecia. Depois chegou-lhe o guião de “Call Girl”, sobre uma prostituta de luxo e a corrupção em Portugal. E ela regressou a Lisboa.

“Não tiveste receio de repetir um papel muito sexual?”

“Claro que não, eu queria fazer aquela personagem, que era fortíssima. Não queria simplesmente ser uma actriz medíocre, queria fazer o melhor. Por isso sempre investi na minha formação. O meu objectivo não é aparecer nas revistas mas tentar ser o melhor que consiga.”

Foi para Madrid em 2008 onde esteve três anos, a estudar na escola de Juan Corazza, o mesmo que treinou Javier Bardem. Com os espanhóis diz ter aprendido outra forma de estar, mais aberta e livre: “Foi bom para mim porque sou muito reservada e fechada, ajudou-me a tirar algumas das minhas capas de protecção. O anonimato também foi bom.”
Os seus amigos vão chegando ao restaurante, o tempo da entrevista esgota-se, os pratos e as garrafas de vinho aterram na mesa. Não houve tempo para compras em lojas de mulher – Soraia não é adepta das tardes de shopping – nem para passeios turísticos por Lisboa. Com a noite acaba a conversa. Iniciam-se os copos. Soraia gosta mais de estar à mesa com comida e amigos do que diante de um jornalista que faz perguntas. E não acredita que haja um sex symbol que seja em Portugal – nem mesmo ela. Aliás, essa conversa, de tão batida, aborrece-a. Também não faz questão de falar dos seus filmes e actores preferidos: “Não sei, nunca sou capaz de fazer essas listas. Gosto de Gena Rowlands, dos papéis que fez com o John Cassavetes. E do Daniel Day-Lewis.” O jornalista percebe que estes temas perdem para o convívio da actriz com os amigos, o vinho e os pratos na mesa. Mas o jornalista insiste, olhando para os homens das obras que desmontam andaimes ali ao lado: “E as pessoas, os homens, metem-se muito contigo?”

“Não, nem por isso.”

Há uns meses o jornalista estava no mesmo bar que Soraia, com amigos comuns, e viu como um homem se aproximou sorrateiramente, tentando encostar-se a ela, sem dizer nada, sem cojones para falar-lhe frente-a-frente. Conto-lhe esse episódio. Ela responde: “Isso, acredita, acontece a todas as mulheres. Nós já estamos habituadas.”


Texto publicado na GQ de Agosto

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

O morro e o asfalto


Há um mês e meio, quando subi o Vidigal pela primeira vez, havia homens com metralhadoras na rua enquanto outros despachavam saquinhos com drogas – pastilhas, maconha, cocaína. Faltavam algumas semanas para a invasão da polícia e aplicava-se ainda a lei dos traficantes. Não era um estreante em favelas (também não era um perito), sabia que a maioria dos seus habitantes não quer nada com o crime. Mas, enquanto passageiro pendura no dorso de uma moto, foi impossível não reparar primeiro nos soldados do tráfico, que seguravam armas automáticas, enquanto a vida de bairro corria normal, como pano de fundo, com crianças a jogar futebol, senhoras carregando compras e uma das melhores vistas do Rio de Janeiro.

Ia encontrar-me com Gonçalo Pires, um português de 28 anos, habitante do Vidigal, opositor dos lugares-comuns sobre as favelas e conhecedor da tendência que os jornalistas de fora têm para ver apenas homens com armas. Gonçalo não tem telemóvel – “Era muita informação”, justificou-se –, por isso combinámos um encontro através do Facebook. Explicou que era preciso subir o morro de mototáxi, ir para o Bar do Carlão, na rua 3, e perguntar onde vivia o portuga. Gonçalo partilha um apartamento com o amigo e sócio alemão, André Koller. Chegou a São Paulo em 2005, trabalhou como designer, viajou pelo Brasil durante um ano, tem uma prancha de surf e um skate: “Vim para o Rio sem grandes perspectivas, estava farto do trabalho de escritório. Precisava do mar.” Na varanda de sua casa é o mar que aparece: uma vista de quarto de hotel cinco estrelas com direito a ilhas tropicais no horizonte. Gonçalo chegou ali há dois anos, depois de viver no chique bairro do Leblon e de trabalhar para grandes companhias. Montou a sua empresa de design e web design – “Vidigalo”, um estúdio de comunicação visual – e trabalha a partir de casa. Numa favela carioca, um português e um alemão desenvolvem projectos para empresas de todo o mundo.

Por insistência do jornalista e porque a invasão policial estava para breve, Gonçalo falou do tráfico: “Os bandidos já sabem, estão todos a bazar. Não vai haver tiros como no Complexo do Alemão no ano passado.” Dias mais tarde, as autoridades informaram aquilo que os locais já sabiam: Rocinha, Vidigal e a Xácara do Céu, favelas contíguas na zona sul do Rio de Janeiro, com uma população total em volta dos 150 mil habitantes, seriam ocupadas pelas forças policiais que, pela primeira vez, ficariam depois da invasão, instalando uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP).
Em Novembro de 2008, a secretaria de Segurança do Rio instalou a primeira UPP no morro de Santa Marta. Desde então, a polícia entrou, ocupou e permaneceu em mais 18 favelas. O resultado imediato: os cabecilhas do tráfico fogem ou são presos, e deixa de haver bandidos armados na rua.

Gonçalo pensou fazer um stencil com um polícia a pilhar uma televisão. Queria espalhá-lo pelo Vidigal antes da ocupação. Como outros habitantes da comunidade, Gonçalo tem esperança que o paradigma da corrupção seja alterado mas ainda desconfia da polícia. Conhece o acordo entre bandidos e fardados: os primeiros pagam bem, os segundos não entram no morro. São frequentes as notícias sobre a “banda podre” da polícia: um oficial que mandou matar uma juíza, um agente que fazia parte da escolta de um traficante, as declarações do chefe da Rocinha, Nem, que, depois de capturado, anunciou que metade do dinheiro do tráfico era para a polícia – e tudo isto só no último mês.

Gonçalo lembra-se da invasão do Complexo do Alemão, em 2010, com tanques do exército, tiroteios, traficantes que escaparam por um túnel e uma transmissão em directo para todo o Brasil. Foi a mais mediática das invasões, uma prova da determinação do Rio em limpar-se perante a comunidade internacional antes do Campeonato do Mundo de Futebol (2014) e dos Jogos Olímpicos (2016). Mas quase um ano depois, o Complexo do Alemão não tem ainda uma UPP e os habitantes queixam-se dos abusos e dos roubos da polícia.
No dia antes da ocupação do Vidigal, os bandidos que não tinham mandado de captura estavam na praia, era dia de folga. Nem, o líder do grupo criminoso Amigos dos Amigos (ADA), que controlava a Rocinha, o Vidigal e a Xácara do Céu, foi preso dias antes da invasão. Gonçalo nunca chegou a fazer o stencil e, durante ocupação do Vidigal, na madrugada de 13 Novembro, não se disparou um tiro.

Na primeira vez que entrei no Vidigal após a ocupação, foi fácil perceber o que tinha mudado da noite para o dia. Além da presença do Batalhão de Choque da Polícia, com camuflados cinzentos, coletes à prova de bala e metralhadoras, os mototáxis estavam parados onde antes era uma “boca de fumo” – entreposto de venda de droga. Fui informado que passara a ser obrigatório o uso capacete.

Não havia traficantes armados na rua. Mas o tráfico continuava, muito mais silencioso e escondido. O próprio secretário de segurança, José Beltrame, disse que as UPP não servem para acabar com o tráfico. Em primeiro lugar, são a entrada do Estado em territórios dominados pela magistratura dos traficantes há décadas. Pretendem tirar as armas da rua e evitar cenas impunes de violência como aquela que aconteceu num baile funk, no Vidigal, quando visitantes chegados da Rocinha se desentenderam com um local. Pertenciam todos ao mesmo grupo criminoso, ADA, mas o bate boca acabou com dois homens abatidos a tiro de pistola.

Na última vez que subi o Vidigal, antes de escrever este artigo, encontrei três portugueses, sem t-shirt, descendo a ladeira. Gonçalo ia almoçar com amigos. Um deles, Diogo, é dono de confeitarias no Rio. João estava apenas de visita mas, tal como Diogo, procurava terrenos e casas para comprar no Vidigal. Gonçalo apresentou-os a alguém que sabe do mercado imobiliário do morro. O homem, sogro de um português que vive no Vidigal, ofereceu ajuda: “Se eles percebem que vocês são gringos vão aumentar o preço. Falem comigo que vou junto.” Há quem diga que os preços duplicaram num ano, que já tinham começado a subir com a perspectiva da pacificação. Um barraco de tijolo, quarto e sala, pode custar 20 mil euros. Mas há prédios no Vidigal. E moradias que podiam aparecer em revistas de arquitectura. Um desses prédios, bem alto, na parte baixa do morro, tem a cobertura à venda: 840 mil euros.

Na procissão de cumprimentos e conversas que são os passeios com Gonçalo – parece que conhece toda a gente no Vidigal – apareceu alguém da VDGTV, televisão local, vista por 50 mil pessoas, com quem a empresa de Gonçalo colabora – a sua empresa também está envolvida num projecto de formação profissional no Complexo do Alemão e adoptou o sentido de entreajuda da comunidade como manual para o negócio: “Vivi dois anos no Leblon, não conhecia um vizinho. Aqui, se o meu fusca (volkswagen carocha) avariava, vinham logo oito pessoas a correr para me ajudar. Ninguém faz nada sozinho, uma
pessoa só não dá em nada.”

O orgulho de morar no Vidigal é honesto, a gratidão também: “Desde que vivo aqui que o meu trabalho mudou. Podes ir ver as coisas que fazia em São Paulo e os meus projectos desde que estou no Vidigal. Nota-se a diferença. É muito diferente criares alguma coisa depois de duas horas de trânsito, em São Paulo, dentro de um ônibus, ou acordares com esta vista e ires trabalhar depois de uma surfada.”

Gonçalo e André, europeus emigrantes de longa duração no Brasil, querem participar da mudança no Vidigal, sabendo que umas coisas continuarão na mesma enquanto outras podem transformar-se demasiado depressa. Só a Rocinha terá obras no valor de 310 milhões de euros até 2014. Muitas casas receberão, pela primeira vez, saneamento e abastecimento de água, bem como serviço de correio, limpeza das ruas e recolha de lixo – no primeiro dia em que os serviços municipais trabalharam na Rocinha, foram recolhidas 135 toneladas de lixo.

Agora, sem traficantes armados, com a presença da polícia e a promessa de ruas urbanizadas, aproveitando ainda a localização privilegiada na geografia do Rio, o eixo Rocinha, Vidigal e Xácara do Céu pode tornar-se na próxima zona da cidade a sofrer o aumento dos preços e a especulação imobiliária. E há quem tema que a normalização da favela seja também sinónimo do aumento do custo de vida, levando os habitantes a mudar-se para a periferia.

André Koller, 37 anos, que se mudou para o Vidigal antes do burburinho mediático, não tem ciúmes dos novos namorados do morro. Durante um almoço, lembrou os anos, antes da sua chegada, quando os ADA disputavam o Vidigal com o Comando Vermelho, numa constante guerra entre facções, com execuções, tiroteios e cabeças expostas. Num português carioca com leve sotaque germânico, André disse: “É normal que estas pessoas queiram aproveitar o momento e ter uma vida melhor. Foram muitos anos… Quem cresceu aqui joga com as cartas que lhe foram dadas, não pode escolher. Na Alemanha a maioria das pessoas pode escolher as cartas. Lá temos todos mais ou menos a mesma vida, a mesma educação, as mesmas hipóteses. Lá toda a gente tem um Golf, aqui é uma festa ter um Golf. Eu adorava carros, tinha um Mercedes. Agora tenho uma moto velha. Vim para aqui para ter uma vida diferente, mas percebo que as pessoas queiram ter coisas. Eles não entendem porque não estou na Alemanha, dizem-me que a vida dos alemães é um sonho. Para mim o sonho é isto.”

André saiu de Hamburgo para São Paulo em 2001, diz que gosta do espírito de vizinhança do Vidigal, fala sobre o homem que lhe entrega pão à porta e que não aceita gorjeta, do vigor e juventude do bairro: “Aqui há muita fome de vida.”
De acordo com um levantamento feito pelo jornal “Globo”, nos últimos três anos as UPP reduziram os homicídios a metade e houve menos 11 mil assaltos nos bairros circundantes a favelas com UPP. O Vidigal e a Rocinha esperam agora as UPP Sociais para aplicar políticas de saúde, educação e assistência social – algo que não aconteceu em outras favelas, como o Complexo do Alemão, e que leva os críticos a apontar um favoritismo das autoridades em relação às favelas da zona sul, onde se hospeda o turismo do Rio e onde o mercado imobiliário tem mais potencial.

O jornalista Zuenir Ventura escreveu “Cidade Partida”, um livro que popularizou a expressão “o morro e o asfalto”, e que tratava do fosso entre as favelas e o resto da cidade, uma separação intensificada na década de 80 quando a polícia deixou de entrar nas favelas. Numa entrevista, Zuenir Ventura disse: “Uma vez, vi a cena de um menino de dois anos que teve desidratação. O traficante chegou e o levou para o hospital. Vai explicar para a mãe do menino que ele é um malfeitor... Esse vácuo do poder público, naquele primeiro momento, foi ocupado pelo tráfico.”

O aslfalto não visitou o morro durante anos. As autoridades foram substituídas pelos traficantes. Os moradores da favela aprenderam a viver assim, mas a violência e a pobreza estigmatizaram as pessoas que todos os dias saem do morro para ir trabalhar no asfalto – porteiros, empregadas domésticas, caixas de supermercado. É verdade que há cada vez mais estrangeiros a participar no quotidiano e desenvolvimento da comunidade. Mas também é verdade – apesar do medo e até dos preconceitos classistas – que há cada vez mais habitantes do asfalto a frequentar o morro.

Diz-se que esta cidade não é apenas o que se vê do Pão de Açúcar. A favela – não é novidade – também não é só homens armados, estrangeiros com capacidades de adaptação, motocicletas desgovernadas, bailes funk e polícia corrupta. E quem visita o Vidigal percebe que alguma coisa está a mudar: um fim-de-semana depois da ocupação, Djs europeus tocaram no ponto mais alto do morro; toda a gente passou a usar capacete nos mototáxis, há portugueses a sondar o mercado imobiliário. A favela, como o resto do país, também quer aproveitar a crista da onda da prosperidade e do orgulho brasileiro.

Na última vez que estive em casa da dupla luso-germânica, André chegou com roupa de corrida, feliz por ter subido ao topo da Rocinha, aproveitando uma vista antes só desfrutada pelos bandidos, que tinham o cume do morro como quartel-general. São mudanças simples e ao mesmo tempo magníficas. O Rio menos partido, mais inteiro, menos asfalto e morro.

Hugo Gonçalves, no Rio de Janeiro

Texto publicado na revista do jornal Sol.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Samba enredo


Rio é lindo
Rio é foda
ou você se adapta
ou você se dobra
ou você se mata
ou você adora

não se canse
não se trate
não tem fórmula
Rio é lindo
Rio é foda

Rio fica nublado
você é enrolado
ninguém chega na hora
mas logo faz sol
você tem amor de sobra
sozinho você não fica
escuta as cordas e a cuíca
Rio é gente ruidosa
ônibus letal selva assombrosa
Rio é pássaros e bichos
noites de cama e sacrifícios
carnavais, seriados e solestícios
drama queens e deixa pra lá
Rio te pega, te mastiga e te chupa
Rio é taxas e condomínio
peruas botox e babás de branco
é chuva ácida e martírio
poço de escravos, festas de espanto

Rio é lindo
Rio é foda
ou você se adapta
ou você se dobra
ou você se mata
ou você adora

não se canse
não se trate
não tem fórmula
Rio é lindo
Rio é foda

Do boteco do Zé no Catete
ao shopping bem cheiroso do Leblon
Rio é torto mas chega lá
tudo demora, tudo se espera
em todo lado tem a maior galera
Ninguém diz não
O Rio é convívio com a mesa do lado
e se combinam uma refeição
o tal almoço, "te ligo irmão"
não desespere não fique danado
o Rio te ama mas te deixa na mão

Rio é lindo
Rio é foda
ou você se adapta
ou você se dobra
ou você se mata
ou você adora

não se canse
não se trate
não tem fórmula
Rio é lindo
Rio é foda

Da praia dos fumetas sem nesga de areia
à Lapa das garotas que caçam gringos
todos gritam, tudo se incendeia
tudo se ajeita para dar um jeito
aqui uma folga, ali um aperto
se quebra eu conserto
te dou minha camisa te ofereço meu peito
porque se hoje me falha
amanhã o Rio vai fazer direito


Rio é lindo
Rio é foda
ou você se adapta
ou você se dobra
ou você se mata
ou você adora

não se canse
não se trate
não tem fórmula
Rio é lindo
Rio é foda

Miniaturas


Haiku da noite de fim de ano

esperando as drogas bater
esperando a civilização ruir
esperando o novo smart phone




Haiku do global warming

nuvens cruzando a manhã
frente fria no jornal
verão brocha: não fode nem sai de cima