quarta-feira, 28 de março de 2012

Pimp up my dream


Era um bar e isso dava-me algum conforto, uma vez que não sabia como tinha ido ali parar – as garrafas luziam atrás do balcão e a jukebox tocava Billie Holiday. O chão estava limpo embora eu soubesse – não sei como – que aquela era a hora de fecho e que muitos degenerados tinham passado por lá ao longo da noite.

Era um bar igual a tantos outros e foi isso que me descansou – o consolo de já ali ter estado, em muitas cidades diferentes. Um bar é um bar.

Ao fundo, na mesa perto das casas de banho, um homem seco como um pugilista peso-pluma demorava-se a beber, com estilo e deleite, um bourbon sem gelo. Disse:

“If it ain’t the dreamer himself.”

Resolvi aproximar-me. Era Frank Sinatra, jovem como quando fazia sucesso entre meninas adolescentes, rufia como o rapaz de Hoboken que largou a primeira mulher para dormir com uma stripper com doenças venéreas. Tentei falar inglês mas não sabia como. Disse:

“O senhor aqui?

Frank Sinatra passou a falar português. Era estranho, mais ainda porque falava com sotaque de Alfama.

“Vai buscar mais uma garrafa e senta-te aí.”

Foi isso que fiz – it’s Frank’s world, we just live in it. Estava a regressar com a garrafa quando Batman saiu da casa de banho e ordenou, com sotaque do norte: “Oube lá, ó trongamonga, traz aí um copo pró Batemã.”

Sentámo-nos os três e Sinatra disse: “Não sei como consegues mijar com essa merda”, e apontou para as partes baixas da armadura de Batman. “Nem imagino como será na intimidade, com senhoras e senhoritas.”

Bebemos a garrafa inteira enquanto as músicas iam tocando na jukebox. Eu disse:“Estamos à espera de quê?”


Sinatra respondeu: “Do super-homem.”

“Vá lá, a sério.”

Sinatra bateu palmas e, na juke box, começou a tocar a música do filme do super-homem. De seguida entraram no bar várias hospedeiras, de farda azul e cabelo loiro, que se sentaram à nossa mesa. Atrás vinha o super-homem e Sinatra segredou-me: “Não entendo aquela paneleirice de o gajo andar com cuecas vermelhas por cima de collants.”

“Eu quando era pequeno mascarei-me de super-homem”, confessei, estupidamente, e logo me arrependi.

Sinatra encheu o copo e cuspiu as palavras como se manobrasse uma navalha: “Tou fodido, isto hoje é noite para amadores.”

“Quem são elas?”, perguntei.

Super-homem respondeu enquanto acendia um Camel sem filtro: “São hospedeiras da Icelandic Air.”

“Eu vi isto num episódio dos Sopranos, havia uma cena em que o Tony estava numa suite, a fumar charuto, e havia várias hospedeiras da Icelandic Air.”

“Estavam vestidas?”, perguntou Sinatra enquanto Batman bajulava, com piropos chapa cinco, uma hospedeira parecida com a Bjork.

“É verdade”, respondeu uma voz familiar. “Eu posso validar o testemunho do rapaz”, disse Tony Soprano, no meio do bar, quando a música desapareceu. “E para lhe responder, mister Sinatra, as que se encontravam vestidas não ficaram assim muito tempo.” Todos se riram.

Perguntei: “Mas que raio se está a passar aqui.”

Fank respondeu: “It’s your fucking subconscious, kid, how the fuck should we know.”

Super-homem acrescentou: “E agora vai contar o sonho à tua terapeuta e arrotar cem pratas no final dos 50 minutos.”

Insisti: “Mas não vai rolar nada com as meninas?”

Uma delas disse: “Gostas de cordas?”

E claro que o despertador tocou no outro lado do espelho.

terça-feira, 27 de março de 2012

Trip down memory lane

Dois textos antigos. Um sobre uma viagem, com amigos, para ver os Black Keys em Amesterdão. E outro sobre Don Draper, para celebrar o regresso de Mad Men.


Rock & roll, um fim-de-semana em Amesterdão






Tighten up
Quem viajou com amigos sabe que é sempre assim. Começa logo no aeroporto: as piadas, as alcunhas, alguém que perde o cartão de embarque, alguém que pergunta: “Não é melhor comprar um volume de cigarros?” Quatro rapazes portugueses com escala em Madrid a caminho de Amesterdão.

No ar, a milhares de pés de altitude, as bolhinhas da lata de cerveja são mais bolhinhas no carrossel do sangue. Vai ser uma boa noite. Vamos ver os Black Keys em concerto. Apetece dizer, como nos filmes: “Rock & Roll.”

Chove na pista de aterragem, uma película que abafa toda a cidade, tornando os bares mais bonitos, um aconchego de madeiras e fumo e conversas disparatadas. Um dos amigos revela o segredo para entrarmos no concerto tão entusiasmados como a banda: “Beber shots de whisky.” Fast forward alcoólico: quatro rapazes portugueses diante dos cacifos da sala de concertos, incapazes de descodificar o seu funcionamento enquanto pessoas muito altas e muito loiras, sem dificuldade, guardam os seus casacos e fecham as portas de metal. Alguém diz: “Somos um bocado incivilizados.” Mas os rapazes, mais bárbaros por causa do halo de whisky em seu redor, até conseguem meter notas na máquina que dá fichas de bebida, provocando um barulho bom de jackpot e a mesma ansiedade feliz de quem acaba de entrar na discoteca e se dirige para o bar.

Give your heart away
É por isto que acredito que a música é a arte mais física. Tenho o casaco enrolado no braço e salto como num videoclip, pratico air guitar, air drums, sinto o tecido da camisa tão colado no corpo como nas noites em que já não importam as manchas na roupa e as nódoas negras na pele. Só interessa a música, a aspereza harmoniosa da guitarra, a pulsação da bateria a comandar milhares de pessoas. Olho para os meus amigos e não é preciso dizer nada. Os seus corpos em efervescência, o suor na testa e no bigode, os lábios repetindo cigarros, lançando-se nos copos, gritando: “Thighten up your reigns, you’re runnning wild/ Running wild, it’s true”. São cavalos de corrida rasgando o fumo da sala, explosões químicas nos neurónios, apetite pela selvajaria pacífica, esticar a corda mais um bocadinho.


Toda a teoria da psicologia das multidões ganha mais crédito se houver banda sonora, ou seja, com os Black Keys a tocar não importa que os adolescentes translúcidos e sem T-shirt iniciem moches e façam o público abanar como um barco, não importa que as pessoas se toquem, suadas e bêbedas, não importa que façam figuras ridículas quando imitam os músicos no palco, não importa quase nada.

Teoria da psicologia das multidões num concerto dos Black Keys: o abandono, o momento antes da colisão, a cabeça seguindo a serpente encantada do rock, o corpo soltando-se como quem parte uma guitarra ou se atira de uma prancha ou rasga as alças do vestido e morde outra boca como se fosse fruta.
E depois acabou.

Same old thing
O resto do fim-de-semana é ocupado com esplanadas e passeios em parques e visitas a coffee shops. Passamos ao lado da casa de Anne Frank e alguém atira uma graçola: “Diz aí aos gajos na fila que ela não está, que foi de férias para a Polónia.” É assim há muitos anos. Os rapazes dizem disparates, roçam o mau gosto, repetem as mesmas piadas ad nauseam, provocam-se com os desafios que conhecem da escola primária, embora agora subam a parada: “Dou-te cinco mil euros se saltares para o canal.” Mas é na parvoíce, na liberdade de ser outra vez menino, na distância do despertador, da diplomacia social, das notícias apocalípticas, do semáforo que não abre, da miúda que não liga, é nessa distância – uma espécie de viagem no tempo – que também me sinto próximo dos gajos que são meus amigos.

Manhã, pequeno-almoço junto ao canal: “O que é que preferias, ser o velho fanhoso que estava a vender bagels naquela cave ou a prostituta gorda que vimos ontem na montra a comer esparguete?”
Same old thing.

Aeroplane blues
Quando um dos rapazes toma a liderança numa missão nublada ao coffee shop, alguém diz, gozando com a sede de poder do novo macho alpha do grupo: “One man wolfpack.” E a frase pegou. No entanto, esta não é uma alcateia de um homem só – a frase aplica-se mais a indivíduos como o Rambo, o Batman ou o John “yippee-kai-yay, mother fucker” McClane.

De regresso ao mundo dos grandes: a alcateia que nunca precisou de líder, unida mas cansada, está no aeroporto e o avião atrasou-se, os silêncios tornam-se mais longos, por vezes interrompidos por uma sessão de disparate, resquício das substâncias na corrente sanguínea, uma dormência, o regresso a casa, mais nada para dizer após um ataque de riso.

Olho para eles, répteis ressacados procurando o sol na janela do aeroporto, ouvindo música, enviando mensagens. E escrevo no caderno de notas aquilo que fica. Alguém dizer “É já aqui” e andarmos sempre mais meia hora. O jogo “Consegues lembrar-te da antepenúltima miúda gira que viste?”, que não é tão fácil como parece tendo em conta o número de miúdas giras em Amesterdão e o efeito da erva na memória de curta duração. Chaço = mulher muito feia. Espingardus = pessoas de nacionalidade francesa. O poder do whisky e as lágrimas nos olhos ao quarto shot. As luzes desfocadas na janela do táxi. E a guitarra eléctrica como um motor no lugar do coração, a loira que mandou um beijo antes de beijar o namorado, os meus amigos sem dizer nada, só a música, o estrondo, a subida da montanha russa, a certeza que o efémero também pode ser denso e que, quando acabar a viagem, alguém vai dizer:
“Para o ano há mais.”



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Don Draper




Os rapazes, desde pequenos, querem ser outra coisa. Obriguei a minha mãe a fazer-me um fato de super-homem, quis ser o meu irmão mais velho, imitei Marco van Basten no Euro 88 e houve dias que, se me chamassem Mr Sinatra, eu pagaria uma rodada. Mas com o passar do tempo, pensar ser outra coisa, fantasiar, é para alguns tão patético como ir ao pão com um pijama do Batman. É uma pena, porque a imaginação apura a existência ao mesmo tempo que nos alivia de peso, como a primeira descida de uma montanha russa. Eu, por exemplo, ando por estes dias com a certeza que quero ser Don Draper, o protagonista da série Mad Men, passada num tempo em que ainda se usavam chapéus. Não falo apenas da forma como enlaça as mulheres sem precisar de as agarrar pela cintura, das garrafas de álcool duro no escritório, de frases tão graves como os fatos que usa – “O amor foi inventado por tipos como eu para vender collants” –, frases que seduzem secretárias, artistas e clientes da agência publicitária onde é director criativo. Falo também das manhãs em que acorda com a roupa da noite anterior ou se esquece de ir buscar a filha ou tem um ataque de pânico ou aparece bêbedo numa reunião. É que já não acredito, como aos seis anos, que uma pedra verde de outro planeta seja a única fraqueza do herói. Quero ser Don Draper porque ele (a sua história) é a prova da distância entre aquilo que somos e aquilo que queremos ser, e porque depois do fracasso não desiste da fantasia: “Espero agora, serenamente, que a catástrofe da minha personalidade pareça outra vez bonita e interessante e moderna”.

quarta-feira, 21 de março de 2012

sem título










Dia mundial da poesia?
Poema não tem geografia
fuso horário ou mania
vai pro ar, pro mar, se manda
pula noite, vira dia
se desliga do twitter
não quer mestres nem feriado
e das regras tem fobia

quer o nada, o tudo, a fome
e saídas de emergência
pra fugir do dia-a-dia

e se
(por acaso)
rolar:
quer o êxtase das orgias.

Reality Van

Lá estava eu, metido numa van para fazer cinco minutos de caminho, porque o lugar onde ia ficava a meio de uma subida, e, com o calor do princípio da tarde, não estava para transpirar a T-shirt.

Lá estava eu, transpirando a T-shirt dentro de uma van sem ar condicionado, em pé porque não havia lugares sentados, prensado entre corpos porque o cobrador não parava de enfiar gente na van, mas feliz por causa da minha capacidade de adaptação. Eu era o gringo que se diluía entre os locais, o bacano que entra na onda, o observador que não se importa de participar.

Estava contente com a minha habilidade de, sem preconceitos ou frescuras, apanhar (mais uma vez) um meio de transporte que alguns dos meus amigos cariocas – por comodismo, classismo ou desinteresse antropológico – recusam utilizar nas suas deslocações pela cidade. Olhei à minha volta (a van ia para a Rocinha), e era o único branco. Depois o cobrador perguntou:

“Alguém desce na PUC?”

E como ninguém respondesse, uma das senhoras – negra como uma pantera escovada e gorda como uma tia beijoqueira – disparou:

“Se ninguém desce, vamos diretos pra Rocinha.” Todos se riram, houve um momento de cumplicidade coletiva, tal e qual como nas longas viagens de carro com amigos, e até eu, nascido e criado a milhares de quilómetros da Rocinha, me senti parte dessa comunhão na van em alta velocidade.

Mas eu não sei o que é ir e vir da maior favela do Brasil (ou viver lá), não sei o que é perder horas no trânsito (dentro de uma van, ônibus ou trem sobrelotados) ou levar os filhos à escola (dentro de uma van, ônibus ou trem sobrelotados) antes das oito da matina para, de seguida, vestir a farda e teclar numa caixa de supermercado ou tratar das crianças dos outros ou trabalhar de ascensorista num prédio do Centro.

Não houve, em mim, culpa burguesa, nem senti que tivesse de abandonar as viagens de van por não pertencer ao grupo. Mas percebi, apesar do meu genuíno interesse em misturar-me, que padecia de um orgulho indefinido, algo que resultava do simples facto de utilizar, nas minhas viagens, sem hesitações ou pruridos, os serviços de uma van.

É um prazer egoísta, é sentirmo-nos bem porque julgamos ser (em pensamento) boas pessoas – melhor do que realmente somos na prática. Lembrei-me do comediante Louis CK, que conta como, em várias viagens de avião para o Iraque e o Afeganistão, onde ia atuar para as tropas americanas, pensou em oferecer o seu lugar, em primeira classe, a algum dos militares que viajavam em económica. Nunca o fez, confessa, mas a fantasia do gesto, o desenrolar do filme na sua cabeça, o militar grato, os outros magalas dizendo uns aos outros como o Louis CK era um gajo porreiro, todo esse sonho altruísta lhe deu tanto ou mais prazer que o gesto em si – gesto que, repita-se, nunca realizou.

Foi exactamente isso que senti na van – um sentimento de bondade, “olhem como sou um cara legal”, tudo isso apenas por viajar numa carrinha que ia a caminho da favela.

Rosie Parks had it pretty worst.

Essa emoção – sentirmo-nos bem sem ter feito realmente nada de assinalável –, tão sabiamente definido e explicado por Louis CK, é um dos atributos da inteligência humana e da sua capacidade fantasista. Uns criam narrativas em que ganham a lotaria e dão (quase) tudo para instituições de caridade. Outros sonharão em salvar vidas após um acidente de avião, em adoptar duas crianças – uma africana, outra chinesa –, em fazer voluntariado num país fodido por humanos e esmagado pela Natureza. Há em nós esta capacidade para sermos os heróis da nossa própria odisseia sem mexer uma palha. É tão auto-satisfatório como a masturbação, um admirável truque da mente, substituto de psicólogos, drogas e reconhecimento de terceiros.

Há uma canção, de Ryan Adams, chamada “The fools we are as men”, foi nesse título que pensei ao saltar da van, muito antes da Rocinha, a meio de uma subida que não me apeteceu escalar por causa do calor. Os patetas que somos enquanto homens…

Senti, primeiro, uma certa vergonha. Depois veio o enternecimento com as criaturas carentes e falhadas que somos. E se, pelo menos em fantasias, julgamos ser melhores pessoas, talvez um dia o abstrato se torne material, e haverá pelo menos um soldado, num avião, a caminho de uma guerra, que poderá esticar as pernas em primeira classe.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Na volta do correio










Para o meu pai


Apesar da miopia, do estigmatismo, das limitações no sector da experiência de vida, do fraco porte físico e de não saber ler nem escrever, Minhoca queria ser o Cyrano de Bérgerac da companhia e o melhor soldado que já passara por Angola.

Não lhe faltava aprumo nem paixão.

No mato ou no quartel, era o mastim de fila do alferes Magalhães, que nunca participou nas piadas sobre a miopia, a dedicação à tropa ou o sono de pedregulho do Minhoca. O alferes tentava não tomar partido nas brincadeiras da companhia. Certa vez, meteram merda na cara de Minhoca, entre o nariz e o lábio, enquanto ele dormia. Outra vez ataram-lhe o cordão de uma bota ao pénis e colocaram-na em cima do peito – queriam que a lançasse para longe, em fúria, quando acordasse. Foi o que fez e por pouco não foi circuncidado.

O alferes Magalhães era um tipo que podia servir de emissário entre um palestiniano bombista e um israelita de espingarda apontada. Tinha trato, não esnobava, não abusava da autoridade. Punha-se a ouvir. Não falava muito. Os homens respeitavam-no. Era portador de tomates anti-bala e sabia comer à mesa. Escrevia cartas quando lhe pediam, escutava relatos de namoros, bebia com os soldados sem nunca perder as estribeiras.

Minhoca não tinha namorada a quem mandar aerogramas sobre o quotidiano no mato, em troca de juras de amor e notícias das ruas da Metrópole. Não havia uma rapariga que lhe escrevesse, nenhuma prima da aldeia, mesmo que em primeiro grau, que servisse de inspiração ao romantismo de Minhoca. Havia as revistas de mulheres nuas, mas quem o visse com elas na mão, a caminho das latrinas, não percebia nele um tocador de punhetas. O seu apego àquelas mulheres tinha uma devoção de altar.

“Quando for, é para casar”, dizia Minhoca.

Numa tarde sem nada para fazer no quartel, Jagodes, que era malandro do Bairro Alto e tinha aprendido a manobrar facas na profissão de talhante, tirou as revistas das mãos de Minhoca:

“Queres amor, escreve um diário. Estas gajas são para homens de pau feito.”

O alferes Magalhães aproximou-se de Jagodes:

“Essas revistas são suas?”

“Não, senhor”.

Jagodes devolveu a Minhoca o material para adultos, voluntariamente, sem amuo. O alferes Magalhães costumava estar certo, e essa certeza dava segurança aos soldados durante o combate.

Numa noite, no mato, Minhoca pediu ao alferes que lhe desse lições sobre como conquistar uma mulher.

“Eu sou casado, não tive muitas namoradas, não sirvo para professor de sedução. Posso falar-te da vida em casal, da minha mulher e dos meus filhos.”

Daí em diante, e porque Minhoca jamais receberia cartas de amor, o alferes resolveu ler-lhe em voz alta alguns aerogramas enviados pela mulher. Saltava os parágrafos que revelavam saudades de pele e alguns desabafos encapotados contra o regime e contra a guerra, mas oferecia a Minhoca a novelização da vida do casal com memórias, pormenores sobre a logística da educação dos filhos e crónicas do carinho familiar. O alferes lia:

“A tua sobrinha Matilde perguntou, ao ver uma cegonha, se era uma galinha do céu.”

“O teu primo comprou um descapotável.”

“Fui lanchar à Brasileira e lembrei-me de ti a descer o Chiado.”

O alferes lia e Minhoca efabulava.

Quando houve problemas com a entrega dos aerogramas, e as cartas ficaram suspensas, Minhoca sofreu mais com a ausência do carinho em papel do que o próprio alferes. Comia mal, rezava muito, não queria ir de licença. Diagnosticaram-lhe paludismo. Ele garantia que era desgosto.

O alferes voltou para Lisboa durante a seca de notícias por carta, mas deu ordem que entregassem o seu correio atrasado ao Minhoca.

“Eu depois devolvo-lhe tudo quando chegar a Lisboa.”

“Não precisas. São para ti. Mas liga-me assim que chegares. Estou aqui para o que precisares. As melhoras.”

“Meu alferes, queria confessar-lhe uma coisa.”

“Conta.”

“Sou virgem.”

Semanas mais tarde, Minhoca acabou por receber as cartas destinadas ao alferes Magalhães. Superou a guerra virgem, analfabeto e sem ferimentos. Ficou em Luanda, mesmo depois da independência, apaixonado e casado com uma mulata que também era míope.

O alferes recebeu, uns anos mais tarde, uma carta escrita à máquina. Era de Minhoca.

“Meu alferes, a minha mulher encontrou os aerogramas da sua esposa e acha que fui casado em Portugal. Nada a convence do contrário. Por favor, ajude-me”.

Miguel Magalhães, ex-alferes e advogado com escritório próprio, há muito que queria revisitar Angola. Levou a mulher consigo e passaram alguns dias com o casal Minhoca. Na despedida, já resolvido o desentendimento com as cartas, a mulher de Minhoca chamou o alferes e deu-lhe os aerogramas:

“Desculpe, fui eu que os abri, ele jamais leria as suas cartas.”

Minhoca despediu-se de outra maneira, olhando para os filhos:

“Meu alferes, já não sou virgem. E sei escrever cartas. Foi ela que me ensinou.”

Minhoca continua vivo. O alferes também.

sábado, 17 de março de 2012

Zeitgeist



Desconfio de um mundo em que é preciso conhecer 56 tipos de sushi, todas as aplicações do iPhone, marcas de sapatos femininos e onde se reduz a vida a 148 caracteres ou a formato vídeo com menos de dois minutos porque se não neguinho dispersa.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Penalti








Meio século depois de ter defendido o penalti falhado por José no primeiro dia de aulas, João estava outra vez diante do colega de escola, num aeroporto internacional, na mesma sala de embarque.

Não se viam há anos, mas sentiram, ao cruzar o olhar, o mesmo eriçar dos cabelos, o dedo no gatilho da testosterona, os dentes arreganhados, tudo aquilo que tomara conta dos seus corpos de rapazes, no campo pelado da escola, após João ter dado uma palmada na bola, que subiu, bateu na trave e ficou a saltitar perto da linha de golo sem entrar, e de José ter investido sobre o guarda-redes, cuspindo palavras e gafanhotos:

“Não vale, não vale, tu atiraste-te antes de eu chutar a bola.”

O jogo estava prestes a terminar porque, em segundos, iria soar a campainha para se iniciarem as aulas da tarde. A equipa de João liderava por 9-8, e aquela grande penalidade seria a hipótese de um empate, que seria resolvido numa sessão de cinco penaltis para cada equipa, durante o mini recreio da tarde

José não parava de fazer a mesma acusação: “Não vale, não vale, tu atiraste-te antes de eu chutar a bola.”

Mas não havia repetições e as regras, se as houvesse, foram engolidas pela euforia do falhanço, a equipa de João ganhava o primeiro encontro entre alunos que se conheciam nesse dia, impunha respeito, colocava-se adiante na luta pelo domínio da matilha.

Porque ninguém o ouvia e alguns colegas de equipa já começavam a olhá-lo como culpado pela derrota, José puxou João pelos cabelos e começou a esmurrá-lo, parando apenas quando o professor de Educação Física o agarrou pelo cachaço, tal e qual um pastor alemão abocanhando um gato, e o segurou com dedos firmes que lhe deixaram nódoas negras nos braços.

José seria punido, suspenso, levaria uma coça do pai. Mas, para o resto da vida, todos aqueles miúdos se lembrariam do seu poder, da forma como triunfou, entre poeira, suor e cuspo, perante um adversário que nem conseguiu lançar um murro. O jogo de futebol, a defesa do penalti, seriam notas de rodapé numa história maior – aquela em que José partiu a boca a João numa arena esgotada.

Tinha passado meio século e ali estavam eles, fingindo mandar mensagens escritas ou fabricando um interesse nas notícias financeiras que passam num plasma. O voo estava atrasado. Mesmo que não quisessem, acabavam a olhar um para o outro, disfarçando logo de seguida. Não se viam há mais de uma década, talvez desde o final da adolescência, mas o tempo não tinha qualquer efeito apaziguador naqueles homens. Durante anos, após o incidente, se por acaso estavam no mesmo grupo de amigos ou se encontravam numa festa de aniversário, se por acaso trocavam cromos do Mundial ou olhavam para as miúdas na matiné de uma discoteca, José sentia a jactância dos vencedores com título vitalício e João, embora disfarçasse, sentia um fervor nas orelhas e o estômago recuava para mais perto das costelas.

Não interessava nada o que acontecera entre a última vez que se tinham visto e aquele encontro no aeroporto. Não importava quem era agora mais rico, famoso, aquele que tinha os filhos mais bonitos e a saúde mais intacta. Essas disputas seriam coisas de criança se comparadas com a rivalidade que nasceu no momento do penalti.

O voo tinha atrasado muito. José levantou-se para passear pelo aeroporto. João tinha ido à casa de banho.

Encontraram-se na loja de uma marca de desporto. Não precisaram de dizer nada. João abriu os braços e apontou para a sua esquerda e a sua direita, explicando aquilo que é praxe nestas coisas do futebol jogado na rua: a baliza vai dali até ali.

José pegou numa bola e contou nove passos a partir da linha da baliza. Respirou fundo, imitou a pose de algum jogador que idolatrou na infância, e meteu a bola lá no cantinho onde nem os gatos acrobatas chegam.

José celebrou como não pôde celebrar há vinte e cinco anos. Mas não teve muito tempo para festejos. João deu-lhe um soco no nariz, fazendo-o cair sobre um expositor com ténis de mulher.

O voo era longo e tanto José como João não precisaram de comprimidos para dormir – cerraram pálpebras e apagaram o sistema central como se após uma tarde de domingo a esfolar joelhos e a cansar coxas na peladinha de rua.

Chegados à cidade onde viviam, José cancelou a terapia e foi correr junto do rio. João comeu a mulher – após um ano sem lhe tocar.

Nessa noite, José e João tiveram mais fome que uma praga de gafanhotos. Teriam participado em orgias imperiais, conquistado cidades com muralhas, decidido a final do campeonato do mundo no último segundo da partida.

José pensou: “Que grande golo.”

João pensou: “Parti-lhe o focinho.”

Há muitos anos que não desfrutavam, com tamanho entusiasmo, de coisas tão simples.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Bobagens de gente graúda

O Globo de ontem contava a história dos dependentes de celular - não suportam mais de um minuto sem indagar a telinha - e da mulher que, depois de perder o aparelho, chorou mais de meia hora. Dizem que é uma patologia. Peste mais disseminada que dengue. Cura? Que tal um tapa na testa e um "acorda pra vida, mané?"

Sofri para encontrar casa no Rio


Um guia para procurar casa no Rio de Janeiro que bem podia ser um guia de sobrevivência





Reality check
Tinham-me avisado que não estava fácil, que os senhorios tinham perdido a cabeça, que havia gente disposta a pagar rendas – aqui dizem “aluguel” – mais caras que em Nova Iorque. Mas eu cheguei confiante e de peito feito, afinal tinha procurado apartamento em Manhattan quando o mercado imobiliário nova-iorquino praticava preços obscenos e, para se encontrar um apartamento, era preciso tirar vários dias de folga, indo de porta em porta, de desilusão em desilusão, até encontrar alguém com quem dividir uma caixa de fósforos num quinto andar sem elevador.

Para ler o resto do artigo clique aqui.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Série mulheres que amamos (e nos fazem chorar)

Série mulheres que amamos: Lauren Bacall


Porque aos 19 anos, em To Have and have and have not, disse a Steve: " You know Steve, you're not so hard to figure. I know what you're going to say some of the time. Most of the time. The rest of the time ... the rest of the time you're just a stinker."

Série mulheres que amamos: Maria Madalena


Porque certamente deu para Cristo e porque a Igreja nunca engoliu que fosse uma mulher a primeira pessoa a ver JC após a ressurreição. How do ya like them apples, Ratzinger?

Ps: esta representação de Maria Madalena pouco terá a ver com a original - que seria mais morena pele azeitona e cabelos mediterrânicos. Mas as ruivas têm graça.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Dia XX

odes, romances, filmografias completas
mini poemas nipónicos
bibliotecas, civilizações inteiras
jardins com estátuas e palácios vazios

viagens no tempo, teletransportadores
manteiga de amendoim e melancia
pantufas, controlo remoto, duches frios cariocas
bar aberto, room service, todas as espécies do Jardim Botânico
e jacarandás de Lisboa, erva de Amesterdão, sonhos onde podemos voar

troco tudo isso
(mais os poderes Jedi e o sentido de aranha)
pela linha imaginária que começa na nuca, escorrega pelas costas,
desenha bunda, coxas, promessas
e fecha o espanto no calcanhar

não és segunda na linha, nem filha de costeleta
és princípio, engenho e armistício
dá-me teu colo, dou-te meus braços
dou-te meu Y dá-me teu X

e todos os dias, vos juro, eu fico grato
porque há dois XX
na criação

Sobre as crónicas que não querem ser crónicas ou A pieguice do cronista


Já se sabe, até ao enjoo, que todos os cronistas, em algum momento, começam uma crónica falando da falta de assunto. Nunca o fiz e prometi que não o faria, embora as minhas resoluções nem sempre tenham a abnegação de um general dos antigos, vacilam nos joelhos diante de uma tentação como adolescentes japonesas no camarim de um ídolo pop teen. Como se diz por estes lados: “Sou facinha.” Mas não será ainda hoje que venho para aqui compadecer-me da falta de assunto.

O meu problema são as crónicas que não me apetece escrever – por preguiça, aborrecimento e procrastinação patológica –, mas que se vão empurrando contra a minha pele, seres alienígenas que germinam dentro de mim, esperando poder saltar cá para fora a fim de se mostrarem, vaidosas como são as ideias, as impressões e os bitaites, mas permitindo-me dessa forma seguir adiante com outras obsessões. E por isso há um alívio quando se emancipam, cruzando derme e epiderme, e seguem seu caminho.

Essas crónicas que não quero escrever começam do nada, um grão, um microfilme, pode ser uma frase, uma imagem, um gesto. Por exemplo: há umas semanas, numa noite desse calor que faz estalar os insectos, caí nas águas voluptuosas da piscina de uma amiga. E estar ali, no verão, rodeado de crianças que faziam bombas e garotas que falavam e davam risinhos literários nas espreguiçadeiras, estar ali, banhado no azul e no cloro, olhando as árvores, o céu, as estrelas e todas as cenas que fizeram das nossas noites de verão algo de memorável, estar ali foi motivo para que a imagem de uma piscina noctívaga se acendesse dentro de mim, desde então, como as luzes debaixo de água. Talvez porque tudo o se parece com as férias grandes, quando as férias grandes iam de uma ponta à outra do verão, nos leve a pensar em viagens épicas no dorso de bicicletas e beijos em miúdas e alguém que partia um braço a fazer qualquer coisa estúpida como saltar do muro para a piscina.

Guardei a imagem da piscina para outros escritos. Mas havia mais um bicho a crescer dentro de mim, uma criatura que nasceu da observação do comportamento dos zombies da tecnologia – amigos que cruzam um almoço passando o dedinho na telinha do iPhone, as crianças que me foram apresentadas num jantar, mas que nem levantaram as carinhas robotizadas do jogo no iPad, o adolescente que, no elevador do meu prédio, fitava qualquer coisa no seu gadget prateado com o mesmo olhar de uma vaca com quem, há alguns anos, me cruzei nas planícies verdes da Dordogne.

Consegui refrear, até agora, o crescimento desse bicho – sei que quer atingir a maioridade e ir por aí, decretando sentenças sobre o uso dos telemóveis, lamentando o impulso que nos leva a querer saber tudo a toda a hora sobre toda a gente, sobrecarregando-nos e poluindo-nos com informações tão dispensáveis como ruidosas. Turn it down a notch. Vão com calma. Tirem o dedo da telinha.

Talvez tudo o que escrevi até aqui seja tão inconsistente como a longa desculpa do aluno, que não tendo feito os deveres, tenta adiar a previsível confissão: “Não fiz.” Talvez todo este engonhar, esta ladainha de empata-crónicas, este deixa ver onde isto vai dar, tenha sido apenas vergonha de dizer que, há semanas, há outra coisa a crescer dentro de mim, outra ideia, imagem e alegria.

Quando saio de casa para correr, de manhã, entro na rua que tem árvores e casinhas e duas escolas. É tão tranquila como se no campo. E ali estão as mães, dezenas delas, esperando as escolinhas abrirem, brincando e dando colo aos seus filhos de creche, todos vestidos com t-shirts e calções vermelhos, simpáticos e espantados com o mundo inteiro: com os cachorros, os insectos, as pessoas que eles não conhecem mas a quem dizem adeus. Tudo é novo e bom.

Hoje um dos rapazes dava festinhas numa menininha e ela retribuía – as mães encantadas, eu feliz por estar ali e ser de manhã cedo e ter o mar tão perto. Pensei se me acontecera o mesmo que a Stephen King: depois do atropelamento, o escritor chorou ao ver o filme Titanic, e questionou-se se alguma coisa no quartinho das emoções, lá no andar onde mora o cérebro, não teria sido afectada com o acidente.

Mas não bati com a cabeça em nenhum lugar nem tomo medicação. E se para me livrar desta criatura adocicada que acabou de sair cá para fora, escrevendo sobre a sua felicidade matinal diante do decorrer mundano e, no entanto, tão pungente, tão cintilante e leve, da vida normal dos outros, se para evitar a pieguice de falar, no futuro, do sorriso das crianças e das manhãs de verão, tenho mesmo de sacrificar esta crónica, então seja.

Bem cedo, quando saio para correr e os termómetros ainda não alcançaram os 30 graus, passando naquela rua, vendo as mães e os seus filhos, percebo que sou muito mais piegas do que gostaria de ser. Resta-me o consolo que, para chegar a esta conclusão, não precisei de ser atropelado.

terça-feira, 6 de março de 2012

Palavra Final









amai-vos uns aos outros
e o resto que se foda



Nicolas Behr, in Laranja Seleta

Fotografia de Nan Goldin

sexta-feira, 2 de março de 2012

Trópico do umbigo



No dia de aniversário do Rio de Janeiro (ontem), escrevi sobre como o Carnaval me ajudou a perceber melhor a cidade, o tempo carioca e até os portugueses

História e as lições do passado
Entrei no Carnaval como os primeiros portugueses entraram no Rio de Janeiro, devagar e com cerimónia, com interesse, mas pouco empenho. O Rio foi descoberto em 1502 mas apenas 53 anos mais tarde, quando os franceses já tinham montado colónia no território, os portugueses, liderados por Estácio de Sá e disparando canhões, expulsaram franceses e mataram índios tupinambás, decidindo que ali seria fundada a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Demoraram meio século mas vieram com tudo.

Também demorei. E só dei uma de Estácio no final da tarde de terça-feira de carnaval – os meus amigos já tinham ido aos melhores blocos, levavam dias de festa; eu estava relutante porque na última semana tinha enfrentado, fosse no supermercado ou num passeio pela orla, as multidões nas ruas, lixo e mais lixo no chão, gente apertada e suada, qualquer coisa entre a Queima das Fitas e o Oktoberfest, embora com 30 graus e menos roupa. A cidade emperra, ônibus, vans e táxis rolam sobrelotados ou ficam empatados no trânsito. Tentei entrar no Carnaval a fundo, mas o pré Carnaval, que começa duas semanas antes, já tinha drenado o meu entusiasmo.

Cheguei tarde, mas vou a tempo

Tal como os portugueses, que demoraram para tomar o Rio de Janeiro, demorei a perceber o encanto, a importância e o significado do Carnaval para um carioca.

O meu momento Estácio de Sá aconteceu quando a tarde tombava para a noite, no Jardim Botânico, no bloco Último Gole. Terça-feira de carnaval. Quando tudo deveria estar acabando, estava, afinal, apenas no começo. De t-shirt e calções, levava uma mascarilha de má qualidade que, confesso, estava mais para o S&M do que para o Zorro. Como vi poucas pessoas mascaradas, comentei que talvez abdicasse do disfarce ambíguo. Uma amiga, que nos dias anteriores se fantasiara de Marylin Monroe e cowgirl, disse: “Esse não é o espírito. No Carnaval vale tudo. “

E eu fiz o que ela mandou.

Coisas que aprendi com o Carnaval

Há sempre gente em todo o lado, a qualquer hora, como se numa cidade de zombies foliões que não dormem. Durante o Carnaval mais de cinco milhões de pessoas saíram para rua. A cidade arrecadou 650 milhões de dólares.

O Carnaval não são dois dias. São três semanas, com pré e pós carnaval. E uma dessas semanas é tão intensa – para miúdos e graúdos – que parece uma viagem de finalistas, umas férias com amigos, uma oportunidade para não pensar em mais nada se não em folia. Os jornais fazem manchetes e cadernos dedicados ao carnaval. É disso que se fala, é isso que interessa.

Para um português, que nos últimos tempos foi, como os seus compatriotas, recipiente de sermões sobre austeridade e contenção, todo aquele desprendimento carnavalesco me assustou – e o desemprego? e os impostos? e a mão na cabeça em arrependimento? Talvez por isso só tenha entrado no Carnaval a fundo na quarta-feira de Cinzas. E fui mais obediente à sabedoria da minha amiga – “Esse não é o espírito. No Carnaval vale tudo” – do que ao discurso oficial da parcimónia. Atirei-me para o bloco “Me beija que sou cineasta” a fim de perceber o que é isso do carnaval carioca.

Talvez seja arriscado para um estrangeiro tentar decifrar aquilo que outros levam anos vivendo. Mas como estrangeiro, habituado a carnavais de kispo e salas de aula com zorros encasacados e princesas de galochas, é assombroso perceber a importância destes dias na ordem natural das coisas cariocas.

Ninguém romantiza namoros de Inverno. É no verão que a memórias mais se impregnam na carne. E aqui o Carnaval é no verão, durante as férias grandes. De dezembro até ao carnaval a cidade é mais eléctrica, as pessoas estão mais na rua, há mais lugares onde ir e coisas que fazer. É um constante crescendo que atinge o climax com o Carnaval.

E agora, depois do êxtase, as crianças regressam à escola, há menos gente na praia, a cidade fica mais serena ao entrar no outono. Por isso, o Carnaval é a felicidade antes da obrigação, as coisas boas antes dos deveres, o excesso antes da vida regular.

Vi velhos pulando como se nos loucos anos 20, vi e senti a pulsão das massas se cantam um samba em conjunto, vi uma boa disposição geral, uma simpatia e disponibilidade, apesar dos bêbebos, das toneladas de lixo, da exasperação das filas, de acordar às oito da manhã por que passa um bloco diante do prédio tocando muito mais alto do que a aparelhagem do vizinho.

Vi actores beijando actrizes, actores beijando actores e actrizes beijando actrizes. Vi mulheres vestidas de trepadeira com botox nos lábios, vi o povo invadir a exclusividade do Leblon e a cidade tornar-se tão democrática como entupida. Vi gente tão criativa e com sentido de humor como o rapaz que, por estar dentro de um elevador, sobreviveu a uma derrocada de três prédios, em Janeiro, no Centro. Neste Carnaval, o rapaz saiu para a rua mascarado de elevador

No dia de aniversário do Rio de Janeiro, com céu azul e 39º de máxima, vi crianças no regresso à escola e desapareceram da rua, por fim, os banheiros químicos do Carnaval. Reabrem-se as agendas. Diz-se por aqui que “agora sim começa o ano”. E perante a responsabilidade desta evidência, o Carnaval faz agora muito mais o sentido.

Me beija que sou escritor


Na quarta-feira de cinzas não se matam os modos exagerados nem há parcimónia. Na praça Santos Dumont, pai da aviação, os foliões do bloco “Me beija que sou cineasta” disparam para os céus com a música, a maconha, a temperatura a bater nos 30 e muitos, os sakolés chupados entre bisnagadas e beijos na boca a desconhecidos. Vi pelo menos um actor, que já fez de bandido, tripando na multidão – seus olhos faziam adivinhar o outro lado do espelho, onde as pessoas e as plantas e até o lixo eram muito mais bonitos.

Mas nada que se compare com o grupo de amigos, homens e mulheres, que, todos os anos, vestidos de noiva, desfilam no bloco Boitatá sob o efeito de ácidos (ao pé disto saltos de pára-quedas são para meninos).

O “Me beija que sou cineasta” é um bloco de artistas e, já se sabe, essa gente gosta de explorar e experimentar. Não é Sodoma nem Gomorra, nem os beijos são tão vulgares como no carnaval de Salvador. Mas a galera é livre, bonitinha e procura emoções.

Como os artistas são adeptos do ócio, este bloco não desfila, fica sempre no mesmo lugar, o que transforma a praça numa festa a meio da tarde, ao ar livre, onde aquilo que muitos consideram exageros, são, para outros, uma expressão da sua natureza, uma celebração do belo, um palco para as coisas boas que a vida e o corpo nos oferecem – uma amiga disse que, passada uma semana a vestir fantasias, regressou ao seu guarda-roupa de sempre e percebeu o aborrecimento dos dias comuns.

Não era o Eyes Wide Shut. Mas eu tinha uma máscara e entrei num restaurante onde o empregado, português e solidário com o seu patrício, me abastecia e reabastecia de rum porque a cerveja de lata vendida na rua devia ser placebo.

Foi então que ela apareceu, brilhando como as princesas, morena e de lantejoulas douradas, cabelo longo, caminhando na minha direcção em fast forward. Vinha da fila do banheiro e, mais bélica que lasciva, trotou para mim. A minha educação e respeito pelas mulheres impede-me de usar as dimensões da princesa como efeito cómico, mas há coisas que têm graça, por isso que se dane a diplomacia entre sexos: ela era pesada, massiva, com ombros de nadadora. E ainda que, como Mandrake, eu ame todas as mulheres, não esperei que o meu primeiro beijo de sempre no Carnaval carioca fosse um atropelamento.

Voraz e sem dar-me tempo para dizer o que fosse, a princesa não acertou com a boca na boca, dando-me uma queixada e um encontrão que me fizeram cair, qual Kramer, sobre a mesa de comensais lambuzados de picanha e chope.

Quando me levantei, ela já não estava lá. Mas toda a sala olhava para mim e sorria.

Fiz uma pequena vénia para sacudir a vergonha e entrar na onda. O garçon português esperava-me com um rum. Sempre soube que os escritores perdem para os cineastas, os músicos e os Dj’s. Mas não passava ainda das duas tarde e a quarta-feira de cinzas parecia sábado de Carnaval.