quarta-feira, 31 de julho de 2013

Mundo cachorro


Para me sentir vingado, quando olham para mim com carinha de nojo, enquanto limpo o que o meu cão deixa na calçada, imagino sempre que se trata de alguém que, muito em breve, sofrerá de incontinência crónica.


terça-feira, 30 de julho de 2013

Los amiguitos del Papa





Juntaram-se três milhões de pessoas, de inúmeros países, na praia de Copacabana, para ver, ouvir e celebrar o Papa Francisco. Nem réveillon, Carnaval, Gay Parade ou um show de Roberto Carlos, alguma vez congregaram tanta gente. Sendo ateu e acreditando que as religiões foram e são, muitas vezes, instrumentos de controlo do indivíduo e providenciadoras de sofrimento e intolerância, seria muito fácil e, no entanto, limitado, queixar-me dos inconvenientes que esta visita papal causou na vida dos cariocas, do dinheiro gasto pelos cofres públicos, da atabalhoada organização ou dos maluquinhos da fé que se atiravam para cima da carro do Papa como se quisessem tocar no santo sudário a troco de um braço partido.

Ou então, apesar das minhas reservas papistas, poderia embarcar na onda unânime que acena com a cabeça e diz: "Este Papa é o máximo". Reconheço que este Papa está mais próximo daquilo que eu admiro na doutrina cristã e mais longe daquilo que representa o polvo da Cúria, também conhecida como a borucracia que se aproveita sagazmente da relação entre o homem e deus.

O Papa é fixe, bacano, sensato, sem manias, é verdade. Mas preferi olhar para esta semana - ou pelo menos tentei - com os olhos de um aborígene, de alguém distante, que não tivesse estudado num colégio católico ou uma avó que rezava o terço ou uma estatueta barbuda, em casa do pais, que durante toda a infäncia serviu de modelo miniatura para o que seria a grandeza do Senhor.

O que quero dizer: se um católico fosse testemunha de uma mega celebração da Cientologia ou do Xintoismo, possivelmente analisaria os rituais e as crenças com desconfiança ou, pelo menos, com um estado mental prático e lógico que normalmente não usa para analisar a sua própria religião.

Ou seja, é tão válido um católico não acreditar, como os cientologistas, que os nossos corpos estão possuídos por almas de extra-terrestres, como um xintoista não acreditar na história de um deus que envia o seu filho para a Terra, numa missão suicida. Filho esse que nasceu de uma virgem, foi concebido pelo Espírito Santo e que regressa depois de morto como um super herói.


Olhando para o que se passou no Rio de Janeiro durante a visita do Papa com os tais olhos do aborígene, ou do xintoista, parece muito estranho ver tantas pessoas emocionadas com algo que pode ser mentira, ou pensar que uma história improvável, desenvolvida, propagada e usada para criar um império nos últimos dois milénios, consegue mover tantos seres humanos, dinheiro, logística, horas de TV.

Se for consequente com o meu ateísmo, confesso que me espanta ver três milhões de pessoas a celebrar algo que será apenas uma invenção. Se deus não existe, se Cristo, em vez de divino, foi apenas um homem, um contrário, um líder da oposição, um guerrilheiro da paz, ver três milhões de pessoas alegremente desenganadas é uma peripécia extraordinária, uma Guerra dos Mundos 2.0.

No entanto, este ateu reconhece que a cidade ganhou, por esses dias, uma paz inusitada, mais decência e alegria limpa - com excepção dos habitantes de Copacabana que tiveram de ouvir jovens mexicanos cantar músicas de Cristo versão mariachi.

Continuo a perguntar se, para ser uma pessoa melhor e ter o outro em cuidado, o homem precisa de fé em deus e na sua cartilha moral, se precisa de uma organização global, com líderes e seguidores, se precisa da promessa de viver além desta vida. Não sei, esperava que não, mas vejo que tem sido sempre assim. Uma coisa é certa - e estas Jornadas da Juventude provaram isso -, para sermos pessoas melhores, precisamos de não estar sós, de fazer parte, de ter quem nos cuide e a quem cuidemos, de uma causa comum.

Se for o amor, melhor.


Ps - como se pode ver pelo traje na foto, o Papa é do Vasco da Gama.





  

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Geração Mutilada

Texto do cineasta António-Pedro Vasconcelos, para a revista Ler, sobre Enquanto Lisboa arde o Rio de Janeiro pega fogo, aqui publicado na íntegra.


Já apresentei vários romances de estreia de jovens escritores, de outros com alguma obra feita, mas também de autores mais velhos do que eu, com uma longa lista de livros para trás, como esse extraordinário “fabro” da língua que é Rentes de Carvalho.

Confesso que me sinto sempre lisonjeado (quando os livros são bons, como tem sido sempre o caso, e mesmo excelentes, como o livro que vou hoje apresentar), mas também perplexo. Pergunto-me sempre: porquê eu?

É verdade que já publiquei livros (mesmo se nenhum romance), que escrevo com frequência (não tanto como gostava) em jornais e revistas, que já fiz crítica de romances (e prefácios a livros que amo e que ajudei a publicar, como foi o caso do “São Paulo” e de “O Penitente”, ambos de Teixeira de Pascoaes, da melhor prosa que se escreveu em Portugal no século passado), mas continuo sempre a não perceber porque me dão a honra de me escolher para apresentar romances. Porquê eu?

Talvez porque sou, também eu, através dos filmes que faço, um autor que acredita na função catártica da ficção, e porque os romances que me pedem para apresentar são sempre de escritores, velhos ou novos, que continuam a acreditar também eles (contra os efeitos devastadores de uma certa “modernidade” que trabalha contra o que é desde sempre a matriz da nossa cultura ocidental), continuamos a acreditar, dizia eu, no desejo que alguns seres inquietos sentem de contar histórias e de ter alguém que as queira ouvir, na necessidade que todos temos de magia e de ilusão, na vontade secreta que temos de acreditar que o mundo pode ser como nos romances: lógico e com sentido. E porque, como disse Eliot, “Human kind can’t bear too much reality”.

Mas a apresentação deste terceiro romance do Hugo Gonçalves, “Enquanto Lisboa arde, o Rio de Janeiro pega fogo”, tem para mim um significado especial e honra-me muito que ele se tenha lembrado de mim. Vou ter que explicar porquê. Para além de ser um grande romance, e a revelação (ou a consagração, como quiserem) de um fantástico escritor, há toda uma história pessoal à volta do Hugo, com vários e curiosos episódios, que não resisto a contar.

Primeiro, o Hugo faz parte de um trio, para mim indissociável, de jovens ficcionistas (todos da idade do meu filho mais novo), que eu tive a felicidade de conhecer em circunstâncias diversas e que me é grato, como disse, evocar aqui.

O Hugo viveu em Nova Iorque no princípio do novo milénio (que, historicamente, começou no 11 de Setembro), onde, durante dois anos, conviveu com dois amigos, o João Tordo e o Tiago Santos, trabalhando todos eles em restaurantes, ao mesmo tempo que frequentavam cursos de escrita criativa. Eu não conhecia nenhum deles, a não ser o João Tordo, porque conhecia a mãe, e o devo ter visto quando era bébé. Não conhecia o Hugo, mas vim a saber mais tarde que o meu filho Diogo o conhecia (tinham jogado futebol juntos), e, finalmente, desconhecia por completo a existência do Tiago.

A verdade é que um dia em que eu andava à procura de alguém para escrever comigo o script do que viria a ser o meu filme “Call Girl”, um ex-aluno meu, apresentou-me o Tiago como sendo um talentoso e promissor argumentista. E provou-se rapidamente que era verdade. Ele deu-me a ler um script original que tinha escrito em Nova Iorque, e foi o bastante para lhe propor trabalhar comigo.

Foi o começo de uma frutuosa relação. Vou começar dentro de dias a filmar o que será o nosso terceiro filme em conjunto - um record.

Sensivelmente pela mesma altura, recebi um email do João Tordo a pedir-me para apresentar o seu romance de estreia, “O livro dos homens sem luz”, uma proposta que me surpreendeu. Porquê eu? Respondi-lhe o que respondo a toda a gente: manda-me o livro, eu leio e, se gostar, terei todo o gosto em apresentá-lo. Será mesmo uma honra. Ao fim de umas dezenas de páginas, percebi que havia ali um grande escritor – coisa que a crítica, sempre cautelosa, só descobriu quando ele ganhou o Prémio Pessoa… Mas adiante.

Faltava-me o Hugo, de quem tinha lido um primeiro romance, “O Maior Espectáculo do Mundo”, a que se seguiu “O Coração dos Homens”, romances com um lado de premonição aterradora sobre os mecanismos do poder e do medo, uma espécie de antecipação científica, mas que me deixaram à espera do que viria a seguir.

Quando finalmente o conheci, soube que tinha andado por Madrid e que depois partiu para o Rio de Janeiro, a tentar fugir aos horizontes mesquinhos da Pátria. E, de passagem por Lisboa, onde o conheci, tive oportunidade de acompanhar uns documentários que fez para a televisão e, sobretudo, uma crónica diária no jornal I, que achei brilhantes pela vivacidade, espírito aberto e pertinência. E disse-lho, com sinceridade e admiração. Depois, perdi-lhe o rasto. Até hoje.

Eu sei que é dele e do seu fantástico romance que é suposto eu falar. Mas não resisto a contar ainda uma pequena anedota sobre este trio.

Quando pedi ao Tiago para escrever o argumento do que viria a ser “A Bela e o Paparazzo”, estava longe de imaginar que ele iria introduzir no filme um trio de amigos que viviam juntos na mesma casa do protagonista, a que ele chamou João, como o João Tordo. Foi então que lhe sugeri que os outros se chamassem Hugo, como o Hugo Gonçalves, e Tiago como ele, para levar o private joke até ao fim.

A verdade, como vêm, é que tudo me liga, portanto, a este trio de jovens ficcionistas - talvez o trio mais brilhante que Portugal produziu na sua geração, e que ganharam muito seguramente em ter ido espairecer na idade certa e aprender umas coisitas sobre a escrita de ficção na pátria dos story tellers.

Mas quando aceitei o convite a minha apresentação. Com uma nota: quando, ao fim de uns capítulos, lhe confirmei, a ele e à Maria do Rosário Pedreira, que me sentia muito honrado pelo convite, não me dei conta de que me iria meter num enorme embaraço. Primeiro, porque o livro, à medida que o ia lendo, ia ganhando consistência, ia revelando página a página um grande escritor, que não hesita em acumular histórias, intrigas, personagens e peripécias, sem nunca perder o fio à meada, como aqueles malabaristas que atiram cada vez mais tacos ao ar sem deixar cair nenhum. E eu corria, como estou a correr, o risco de ficar aquém do livro que vão ler.

Depois, porque estava a preparar um filme, o terceiro escrito pelo seu amigo Tiago Santos, e, na minha cabeça, os meus personagens estavam sempre a interferir com os dele, a querer entrar na história e várias vezes tive que parar ler para os mandar sair dali!

Garanto-vos que não é fácil ler um romance quando se está a preparar um filme. Como um romance, um filme é um trabalho obsessivo e absorvente, e eu calculo que o romancista necessite da mesma concentração que o argumentista e o cineasta - que, para fazer um bom trabalho, como eu sempre digo, tem que adormecer e acordar com os seus personagens. E eu, durante os dias que levei a ler o romance, adormecia com os personagens do Hugo, e acordava com os meus.

Mas falemos então do livro, depois desta longa divagação. O que primeiro nos surpreende é a maturidade narrativa de um autor de 37 anos, uma prosa por vezes tão torrencial como a lama que, no fim do livro,  invade o morro e leva tudo à sua frente na enxurrada, uma sabedoria precoce, feita de experiência e imaginação, uma capacidade de criar personagens sempre enriquecidos com uma biografia, a lição aprendida com os mestres do Canon ocidental, de que fala Bloom, e que nos ensina que a arte de contar histórias é a arte de criar sempre novas peripécias, que põem à prova os personagens, uma tradição herdada da narração oral e do folhetim, que se foi apurando de Homero a Dickens; e, enfim, essa capacidade de nos envolver, que é marca dos grandes escritores, de nos fazer acreditar na história que o autor nos está a contar e de nos pôr do lado do seu protagonista: um jovem português acossado, que foge de Portugal para escapar à perseguição impiedosa de um gangster vingativo, e que vai encontrar no Rio de Janeiro um inimigo mais feroz que o obriga a fugir, a refugiar-se, a viver novamente acossado. E que acaba por ser recambiado para Portugal, depois de perder uma orelha, como Van Gogh.

A história é tão verídica na sua extravagância que, mal acabei de a ler, a primeira coisa que fiz foi verificar se o Hugo continuava com os dois apêndices de cada lado da cara.

E este insólito e inesperado acidente que ocorre no declinar da história, ajudou-me a perceber de que nos fala o livro. “Enquanto Lisboa arde, o Rio de Janeiro pega fogo” fala-nos de uma mutilação. Ou de várias mutilações, que concorrem, em sentido real ou figurado, para nos dar o sentimento de uma geração mutilada – a dele - a quem cortaram as asas.

De facto, o protagonista perde a mãe muito cedo (primeira e brutal mutilação, de que o autor nos fala ao longo de todo o livro), é obrigado a fugir da Pátria – outra perda, outra mutilação – por despreocupação e gentileza, esses pecados fatais da juventude de que falava Rimbaud; no Brasil é envolvido numa história de vingança, e vítima de uma feroz perseguição que o priva da sua liberdade (outra mutilação), vê partir para Portugal a sua paixão – Margot – (querem pior mutilação para um jovem do que a perda do primeiro grande amor?), perde a bicicleta que, para ele, significava a liberdade, perde o livro em que trabalhou durante anos e o que outro que estava a escrever; é preso, perde a liberdade de ficar no Brasil, perde o dinheiro que tinha deixado em Portugal. E, por isso, quando perde a orelha, num desabamento de terras que parece um dilúvio bíblico, parece-nos que, de todas, essa é a menos dolorosa das mutilações.

Mas a pior mutilação, a que percorre todo o livro, é a perda de horizontes, um mundo onde só o presente conta, onde o passado parece um pesadelo absurdo de esperanças e medos sem futuro, e onde nada conta para além da sobrevivência e do prazer.

No meio desse vazio existencial, o protagonista agarra-se a três coisas - três bóias com que espera salvar-se: Margot, a escrita de um romance e uma bicicleta. Ou seja, o essencial: o amor, a ficção e a liberdade.
O que o impede de soçobrar é que ele recomeça a cada mutilação, como as cobras que mudam de pele. Com uma mestria rara, o Hugo diz-nos, nas últimas 18 linhas do livro, que tudo pode sempre recomeçar. Que tudo se pode recuperar sobre outra forma, que o importante é aprender a ser céptico sem ser amargo, a ser lúcido sem ser cínico, a relativizar os julgamentos morais sobre os outros sem ser complacente com a História, a manter-se disponível para a novidade e para a aventura.

No final, devolvido a Portugal e a Lisboa (uma Lisboa, como ele diz, romantizada pela saudade), uma Lisboa que ele ama com a mesma intensidade com que ama o Rio de Janeiro, com as suas fantásticas contradições (leia-se o brilhante capítulo RJ-LX), no final, dizia eu, em poucas linhas (18, mais exactamente), derrotado, mutilado, céptico (“neste momento a verdade não faz parte dos meus planos”), sem projecto e sem destino, o protagonista, num ápice (são 18 linhas, repito!) abre-se novamente à possibilidade do amor e da escrita.

Só lhe falta encontrar uma nova bicicleta. Mas eu diria que das três perdas (um livro, uma paixão e uma bicicleta), a última é, talvez, a mais fácil de voltar a encontrar.


sexta-feira, 26 de julho de 2013

Das Kapital


Durante a filmagem de Glengarry Glen Ross, os atores chamavam-lhe Death of a fucking salesman, em alusão à peça de Arthur Miller e ao número de palavrões do guião que interpretavam - escrito e dirigido por David Mamet. Tanto  Death of a salesman como o filme Glengarry Glen Ross - adaptado de uma peça de teatro -, têm vendedores como personagens principais, o arquétipo norte americano da procura do sucesso apesar das contrariedades - são eles os protagonistas da ideia de que o sonho americano se materializará se formos implacáveis na caça, mas que só nos restará desmerecimento e exclusão se ignorarmos as oportunidades que nos são dadas pelo sistema.

De uma forma mais prosaica, diria que misturar testosterona com dinheiro, num ambiente competitivo, é um excelente motor para o bom funcionamento do capitalismo glutão, para a indústria de iates, do gel de cabelo e dos botões de punho que custam mais do que um carro.

Há algo de sexual e primitivo nessa busca - o estado mental de um rapaz adolescente. Henry Kissinger dizia que o Poder é o maior afrodisíaco e, por consequência, acrescento eu, o dinheiro, o status, os brinquedos para adultos. Há qualquer coisa de atrativo, algo bestial e animalesco, nessa forma de ser, quando o triunfo do eu e os bónus importam mais do que a decência e a compaixão.

Nesta cena, Alec Baldwin é THE  fucking salesman, atrai a presa para golpeá-la sem piedade. E, ainda assim, é capaz de conseguir a atenção fascinada da audiência.


quinta-feira, 25 de julho de 2013

SP Tough Love


Como eu escrevo



Há umas semanas ligaram-me da Time Out Lisboa, convidando-me a escrever um texto sobre os meus hábitos de escrita para a rubrica "Como eu escrevo".

E eu escrevi isto:

O caubói escritor


Osmir Fuks foi escritor e bandido. Pouco se sabe da sua obra e talvez tenha produzido mais patifarias do que literatura. O Correio de Cuiabá, edição de 3 de Dezembro de 1988, publicou um perfil com referências biográficas duvidosas e chamou-o de “Cangaceiro punk”. O texto conta que Osmir sangrara inimigos com facas de cozinha e amara mulheres até que perdessem os sentidos. O artigo vinha ilustrado com um desenho – a cara de um matador parido no Mato Grosso, a dormência ocular dos degoladores. Encontrei o texto por acaso, enquanto fazia pesquisa para um livro. Esqueci Osmir durante semanas, até que, num alfarrabista em Copacabana, encontrei a “Biografia dos hábitos dos caubóis e dos escritores ”, edição artesanal, de 1990, com uma reduzida biografia na contracapa: “Nasceu e ainda não morreu.”  

O livro ensina a capar bois, a selar cavalos e relata as manias de autores que não encontrei na internet ou nas enciclopédias: Cigala Estevez, poeta chileno e canibal, Fernando Fernandes, português de narrativas porno que se tornou pastor evangélico em Parada de Lucas, Rio de Janeiro, Zona Norte. Misa Whitman, que escreveu uma ode à procrastinação pela via da masturbação.

“Rimbaud ficou perneta, Camões zarolho. E quantos outros escritores não andaram aflitos de sífilis e achaques da alma?”, questiona Fuks, no capítulo “Maleitas resultantes do ofício & acidentes causados por desvarios românticos”. Osmir escreve ainda que os escritores perguntam aos seus pares sobre os hábitos de escrita porque querem ter a certeza de que não estão loucos, de que há outros para quem a solidão é um farol apetecido, e porque, paradoxalmente, querem companhia para um propósito que parece obsoleto: escrever livros. “A escrita precisa de tempo como o rio precisa de séculos para definir seu leito”, escreve Fuks, e depois insiste na estranheza de um ofício que vale menos do que um cirurgião empunhando um bisturi em caso de apendicite – uma coisa que nem se pode chamar de profissão e que, se pararmos para pensar, é tão estranha como pessoas a dançar sem música.

“Os hábitos dos escritores, quando revelados, servem para alimentar a suspeita da sua singularidade, instigam a soberbia, dão importância e ritualizam desnecessariamente o caráter mundano da criação. Mas também é muito possível que eu esteja falando merda.”

Osmir Fuks não tem endereço conhecido. Um repórter de Passo Fundo disse-me que ele trabalhava numa fazenda no Uruguai, e que era procurado por bigamia, burla e lesões corporais. No livro, Fuks escreve: “Se um dia uma menina da TV ou das revistas vier me perguntar sobre como escrevo, eu invento uma história na hora.”

Nisso, senhor Fuks, estamos de acordo.




terça-feira, 23 de julho de 2013

É isto um homem?




Por causa de um podcast da BBC, fui, finalmente, ler o primeiro livro de Primo Levi. Porque a edição brasileira estava esgotada - entretanto a Rocco fez uma nova edição -, mandei vir pela Amazon uma versão em inglês que contém também o segundo livro do autor - Truce.

Is this a man?, o primeiro livro, conta a chegada e permanência de Primo Levi no campo de concentração de Auschwitz, em Novembro de 1944, terminando com a chegada das tropas russas em Janeiro de 1945.

O segundo livro, Truce, conta o regresso a casa do químico italiano - que atravessa toda a Europa para chegar a Turim. Levi escreve com uma beleza e entendimento da natureza humana notáveis para quem podia apenas escolher a raiva e a autocomiseração após o que passou, viu e sofreu em Auschwitz.

É isto um homem? não é um livro sobre o Holocausto - palavras que Levi não gosta pois a sua origem é religiosa e significa sacrifício pelo fogo o que, tendo em conta os fornos e as chaminés do campo onde foram mortas mais de um milhão de pessoas, é de um mau gosto idiota.

Trata-se de um livro sobre os homens e a sua capacidade para se aniquilarem e sobreviverem, para serem medíocres ou fora de série.

O livro, soberbamente escrito, agarrou-me tanto que dei por mim a lê-lo enquanto caminhava na rua. E, a todo o momento, eu pegava na caneta para sublinhar frases como esta:

“A country is considered the more civilized the more the wisdom and efficiency of its laws hinder a weak man from becoming too weak and a powerful one too powerful.” 


No Youtube, há ainda um documentário italiano, com legendas em inglês (escolher nas opções) sobre o regresso de Levi ao campo, em 1982.

É isto um Homem? deveria ser leitura obrigatória.




segunda-feira, 22 de julho de 2013

Esta é a madrugada que eu esperava




Texto publicado no blog do Prosa & Verso, do Jornal Globo.


Fujo, voluntariamente, do Rio de Janeiro. Quero sair, preciso afastar-me. Na orla de Ipanema, o mar revolta-se na janela do carro, mar de ressaca ou, como se diz em Portugal, marés-vivas. Só agora – dois anos depois de viver no Brasil e habituado a falar “mar de ressaca” – percebo que, ao longo da minha vida, disse “marés-vivas” sempre de uma forma utilitária, como quem diz “garfo” ou “pneu suplente”, sem alguma vez dar-me conta da beleza da combinação dessas palavras: “marés-vivas”, uma poesia mínima, com dois signos apenas, mas que surge na boca com o alvoroço das ondas e o poder da correnteza. Algo se renova e se movimenta se digo marés-vivas.

Estou a caminho de Paraty, ainda no início da viagem, nesse momento empolgado em que revisitamos o sobressalto das crianças com o tiro da partida. Sair para outro lugar, para longe da cidade, é uma forma de fintar a dormência dos hábitos. Quando viajamos, desemperram-se as sinapses, somos mais suscetíveis a tudo o que é novo. A velocidade e a distância da viagem permitem perspectiva, garantem-nos que há mais vida além do nosso trajeto diário casa-emprego-casa, mais histórias além das propagadas no Facebook. Viajar, escreveu Pío Baroja, é a melhor forma de curar o nacionalismo – porque se é verdade que aprendemos muito sobre os lugares aonde vamos, descobrimos mais ainda sobre o lugar de origem e sobre quem somos. Viajar cura cegueiras, inquieta dogmas e tira-nos do caminho traçado da repetição.


Para ler na íntegra clique aqui.

domingo, 21 de julho de 2013

Quebra-quebra, mata-mata




No ano passado morreram no Brasil 42 mil pessoas em consequência de acidentes de trânsito e o país continua em primeiro lugar no número absoluto de homicídios - foram 49,322, em 2010-, sendo que a impunidade (outra forma de violência) se revela na baixa taxa de resolução desses crimes. Na rádio, há uma campanha, em forma de canção, que apela para a serenidade em caso de altercações pequenas, domésticas, de bar ou no trânsito, uma vez que muitas das mortes violentas são o resultado, desproporcional e trágico, de pequenos desentendimentos quotidianos.

Talvez as mortes no trânsito não assustem tanto como o número de homicídios, uma vez que, no trânsito, todos somos prevaricadores e vítimas. Pedestres, ciclistas, motoristas de ônibus, taxistas, puxadores de carretas, todos parecem enfrentar o trânsito com uma lógica egotística de salve-se quem puder, sem noção do perigo de vida que os nossos erros e infrações podem causar, ignorando, tramando e insultando o outro, como se fizéssemos parte de algum reality show selvagem de sobrevivência.
O Brasil é uma país gentil e um país muito violento.

Os incêndios, a pilhagem, o frisson da destruição e do confronto com a polícia, que marcam as manifestações, são muito mais uma consequência desse Brasil violento do que resultado dos atos de protesto. No país onde é comum ler a palavra “chacina” nos jornais, onde os polícias andam com o fuzil fora da janela e sobrevoam favelas em helicópteros, no encalce de um traficante , disparando metralhadoras sobre casas como se estivessem a invadir um país, os protestos de rua foram uma oportunidade para mais uma revelação desse vírus, o mesmo que se manifesta todos os dias no trânsito ou numa execução.

Não é uma sintoma, é a própria doença.


quinta-feira, 18 de julho de 2013

inverno




Estes dias de inverno no Rio, com a luz tão clara e manhãs de calor manso, lembram as primaveras portuguesas, mas sem a aflição hormonal típica da estação dos corpos em flor no hemisfério norte - apenas uma placidez das tardes sem escola, ruas onde se ouvem pássaros, o cheiro da comida caseira escapando pelas janelas para as calçadas. Neste generoso inverno,  há qualquer coisa de máquina do tempo. E é por isso que me sinto tão menino pedalando pela cidade.