terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Reflexões sobre a vida carioca


Um dia ela vai passar tanto tempo com o filho como passa com iPhone, o terapeuta e o professor de beach ténis. até lá, tem babá para botar o dvd preferido da criança.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

This is how it goes




dizem que a paixão o conheceu mas hoje vive escondido nuns óculos escuros

Al Berto



Ele tinha o coração arrancado da caixa torácica, que é muito pior para a saúde do que ter o coração partido. Ele tinha frio em casa – puta Europa e as suas frentes frias, uma cidade amarrada pelo vento, um apartamento apenas com um radiador que, numa noite de whisky solo em demasia, caíra sobre a carpete, iniciara um churrasco de ácaros, colapsara o electrodoméstico. Por isso, ele tinha frio, mas também tinha frio porque, com um buraco no peito e outro na carpete, estava mais susceptível a ser túnel para correntes de ar.

Ele não tinha coração e vestiu um sobretudo, calçou as luvas, saiu para a calçada escorregadia de uma cidade que parecia um banco de nevoeiro, aqui e ali um prédio ou um candeeiro público, o som dos bares e das casa de passe, talvez uma coxa com liga a assomar numa porta, apunhalando a nebulosidade que não parava de se instalar no buraco que ele tinha no peito.

Humidade. Ele era um homem cheio de humidade nos cantos e nos recantos, como a casa de uma velha junto ao mar.

Passou perto do rio e as coisas pioraram. Por trás de neblina que tinha sabor de sal e diesel, ouviam-se marinheiros ao estalo com travestis nas ruas com caixotes do lixo tombados e traficantes providenciando droga marada.

Fazia tanto frio na cidade e atrás daquele sobretudo, fazia tanto frio que ele levantou o braço para um táxi, procurando o aquecimento e os estofos. Mas já se sabe que por vezes as coisas estão irremediavelmente fodidas e o taxista explicou que o aquecimento se escangalhara há duas horas. Por trás do sobretudo sentiu algo viscoso, não uma dor escorrendo mas uma falta.

Ele enfiou a mão dentro do sobretudo, atravessou o corpo, tocou nos estofos. Nada de nada e, no entanto, a rádio tocava When you’re smilling, por Louis Armstrong, The Majestic Years.

“Suck my cock”, disse ele para o Universo, numa língua que não era a sua mas que, por ser franca, chegaria aos ouvidos do Buda ou da Mãe Natureza ou do Jezzy Creezy ou de quem fosse responsável pela cena fodida do amor que arranca corações.

Ele entrou no aeroporto, comprou uma passagem, sentiu-se como uma mula colombiana de cocaína quando os seguranças pediram que tirasse o sobretudo. Apreenderam o isqueiro que ele trazia no bolso das calças, mas foram indiferentes ao buraco que estava no centro daquele homem que apertava o cinto nas calças, com dificuldade, tal e qual a criança que se debate com os cordões dos ténis.

Um espectáculo tão triste como a mulher que ele vira semanas antes, chorando dentro de um carro, no parque de estacionamento de um hospital. Mas ele já tinha a sua dor e, como diz a canção, a dor é minha, a dor não é de mais ninguém.

Quando aterrou noutro continente nevava e os táxis eram iguais aos táxis dos filmes. Primeiro caminhou pelas ruas ventosas, jornais voadores despenhavam-se na cara das pessoas, havia muitos homens a beber álcool em garrafas pequenas, enfiadas em sacos de papel, ao mesmo tempo que esfumaçavam beatas e anunciavam o apocalipse.

Ele entrou no bairro onde não se ouvia um carro. As árvores, tão brancas de neve, tinham sido copiadas de um livro de banda desenhada japonesa. Ele subiu os degraus e tocou à campainha.

Fazia menos frio dentro daquele apartamento. Ela não disse nada. Foi ao frigorífico, afastou os chocolates e o queijo light, tirou o embrulho de papel, algo que se traz de um talho, um pedaço de qualquer coisa. Depois entregou-lhe o embrulho e disse:

“Devias ter vindo buscar isto há mais tempo.”

Ele abriu o papel melado como se fosse uma bomba. Passara demasiado tempo com aquele buraco. Como seria ter outra vez um coração a bater no peito? Por mais que a pergunta lhe parecesse um título de romance para mulheres mal fornicadas, o seu cinismo não era capaz de vencer a necessidade de sobrevivência. Ele pegou no coração e meteu-o dentro de si, encaixou aurículos, sintonizou ventrículos, apertou-o várias vezes para que voltasse a bombar sangue e calor. Disse:

“Já está.”

E a cidade rebentou de luz como um fogo-de-artifício, em vez de neve as árvores eram mais verdes que uma selva tropical, havia cães na rua e as crianças andavam de triciclo, pais amavam os filhos e visitavam os progenitores em lares de terceira idade.

“Hoje será um bom dia”, disse ele.

“Isto está a ficar um pouco piegas”, disse ela.

E o coração dele falhou um batimento.

Ele abriu o sobretudo. A pulsão dela foi tão poderosa e veloz como a dentada de um bicho: arrancou-lhe o coração outra vez.
Ele saiu para a rua e sentou-se nos degraus. Estavam de volta a neve e o frio. Levantou as golas do sobretudo, pegou num cigarro e, com ele na boca, percebeu que não tinha lume. Ela apareceu na janela e atirou-lhe uma carteira de fósforos. Conseguiu acender o cigarro depois de cinco fósforos e olhou para cima, onde ela lhe dizia adeus.

Puxou o fumo e sentiu os pulmões substituindo os prazeres do coração.

Talvez regresse, em pouco tempo e com efeitos definitivos, para recuperar aquilo que é seu.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Consertar as coisas erradas


Uma dia vamos olhar para a proibição da adopção de crianças por casais do mesmo sexo como olhamos hoje para as placas que, em tempos, diziam: "White only."

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Olhar pessoas: a garota do bar de sucos



Chegas quando a tarde se enlaça na noite e há nuvens de mosquitos, como chuva, na contra luz dos candeeiros públicos. Chegas como se saída de um carro de outra época, uma época certamente bela, porque tens cabelo negro de espia ou dançarina de cabaret ou apenas de menina maldosa.

Chegas com um vestido preto e ténis que, com certeza, compraste em Berlim. Deves ter amigos artistas e designers e já beijaste mulheres na boca - ou pelo menos gostarias.

No bar de sucos, os empregados têm a gordura dos fritos na pele; os clientes estão de bermudas e areia nos pés. Mas tu aproximas-te do balcão como se no intervalo da ópera - em vez de champanhe, pedes um açaí.

"Pouco xarope, mas pouquinho mesmo."

E imagino que talvez sejas uma fanática da linha, uma comedora exclusiva das coisas que nos fazem bem, uma chata. Não é apenas isso, é a forma como as unhas vermelhas, há segundos enigmáticas como uma cicatriz, de repente parecem vulgares unhas vermelhas porque apenas se dedicam ao Blackberry.

E no outro lado do balcão, o empregado com cabelo de água oxigenada limpa a telinha do seu celular com um guardanapo, metódico como nunca foi na escola.

Os celulares mataram a solidão da espera. Será que já ninguém se senta num ponto de ônibus ou aguarda um açaí sem procurar a companhia dos outros navegadores da rede?

Ela saca do seu iPhone. Poderosa, ligada, antenada, dentro do esquema, mas fora da caixa. iPhone & Blacberry, a dupla de sucesso que a deixa mais enturmada com tudo. Mesmo tudo. Tudo, tudo, tudo.

Ela pergunta: "Tem Wi Fi?"

Tenho vontade de rir, mas não vou cuspir o suco de melancia. Amachuco o guardanapo que me limpou a boca e atiro-o para o lixo, pensando que podia dizer-lhe que há internet grátis ali ao lado, num shopping, ou então deixá-la enfrentar, sem ajuda de muletas electrónicas, a solidão mais apetecível do final do dia: comer um açaí num bar de sucos, ao balcão, ver os outros, respirar, sair da ondas hertzianas, estar apenas.

Apenas estar.

Despeço-me do moço do bar de sucos, olho para ela, bonita e dedicada ao Facebook no celular, e penso: o mundo virtual é cada vez mais um corta tesão.

Ou talvez seja apenas a sorte de viver numa realidade em que vou deixando de precisar de sucedâneos dessa mesma realidade. "A vida como ela é", declarou Nelson Rodrigues. Isso mesmo: a vida como ela é. No meu caso, e por isso agradeço, a vida empolgante como um livro de aventuras.

Garota do bar de sucos, encanto e desencanto, tão veloz como um post, tão passageira como um twitt, tão dispensável como uma aplicação.

A vida é bela, garota do bar de sucos, por vezes, a vida apenas como ela é, pode mesmo ser bela.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Minha carne é de Carnaval, meu coração é igual


Um português acorda num domingo, no Rio de Janeiro, procurando a paz das ruas e um quiosque para comprar o jornal, mas em vez da placidez das manhãs de fim-de-semana depara-se com um grupo de legionários romanos, várias gatinhas, coelhinhas, diabinhas, e mais um sem fim de gente mascarada e agarrada a latas de cerveja. São os seguidores (mais de dez mil) do Bloco Suvaco do Cristo, que arranca da Gávea pelas oito da manhã.
Nota: não é sequer Carnaval, falta uma semana para os festejos oficiais, mas há dias que o português percebeu uma alteração na cidade, na disposição dos cariocas, algo que vai mais além das imagens do Sambódramo, que ele viu, durante anos nas notícias da televisão em Portugal, algo que vai mais além da imagem batida da mulata ou das reportagens sobre os vips da TV Globo nos camarotes da Sapucaí.

Para ler o artigo na íntegra, clique aqui.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Europa


Mais um episódio de grande qualidade do This American Life. Este mostra a crise europeia vista pelos olhos americanos. O que mais ficou: as declarações do braço direito de Delors, dizendo que todos sabiam, desde as conversações para o euro, que os gregos fabricavam números e que os alemães e os franceses só não os confrontavam por educação diplomática. Ele diz isto e ri-se e admite o ridículo da situação. Esta é a nossa Europa. Esta é a Europa em que todos são responsáveis (franceses e alemães também) e, como tal, deveria ser também uma Europa mais solidária - mesmo com aqueles a quem deixaram mentir.

Cenas que me passam pela cabeça



Quando tudo falha, quando a terapia, a religião, os martinis duplos, a internet, a masturbação, as drogas, a família e o amor ficam aquém, é no vazio antes da luz, que a escrita mais parece a saída de emergência, o sopro do ópio, a viagem para o espaço. O escritor que, na génese do seu ofício, procura a liberdade absoluta, é também ele escravo da sua dependência e da crença que, quando tudo falha, só a escrita o salvará. É verdade. Entre os milhões de motivos que levam pessoas a escrever um deles, pelo menos, é comum a todos: gostem de mim.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Homens que mijam em lavatórios e alguma literatura


É um tema meio secreto, pouco falado, mas há anos que me inquieta. Talvez tudo tenha começado com aquela bebedeira no primeiro jantar de turma da faculdade – bifinhos com cogumelos e vinho branco –, quando um colega resolveu, por sobrelotação da casa de banho, desgoverno alcoólico e aflição da bexiga, correr o fecho das calças e pôr-se a mijar para dentro do lavatório. Má sorte: foi apanhado pelo dono, arrastado para a vergonha pública da sala de refeições e atirado porta fora, enquanto tentava metê-lo para dentro das calças e sofria as dores de ter interrompido uma mijadinha a meio – os senhores que mijam de pé sabem do que falo.

Ou talvez tenha começado antes, quando li “A insustentável leveza do ser”, livro que a minha namorada começou a reler há uns dias. A dada altura perguntou-me: “Já leste?”

Eu respondi que sim e disse-lhe que uma das memórias que tinha desse livro era a conversa de um médico sobre os seus colegas de profissão que, como ele, preferiam mijar em lavatórios.

Mas nada disto se juntou dentro da minha cabeça até que, por acidente, encontrei na internet uma citação de Charles Bukowsky:

“Sometimes you just have to pee in the sink.”

Talvez exagere, talvez seja defeito de escritor que procura (inventa e força) verdade e beleza e sentido em tudo o que encontra pelo caminho, talvez nada disto tenha a importância que lhe atribuo. Mas quando li a frase do Bukowsky percebi, mais uma vez, a importância da literatura. Numa simples sequência encadeada de palavras, ele oferecia-me o final para a minha história de mijadores em lavatórios, dava-me uma epifania cheia de verdade, as palavras no osso, e até um certo humor que, arriscando-se a roçar o mau gosto, ascende muito acima da piada de casa de banho.

Mas de nada me interessam explicações. Antes pelo contrário. Sometimes you just have to pee in the sink. Está dito e redito. Para quê explicar, esmiuçar, ir procurar razões pelas quais os homens (quantos?) resolvem mijar em lavatórios ou se o fazem com mais frequência quando estão bebedos? Isso é trabalho para os jornais e para os cientistas da sociedade. O que importa é o estrondo, a clarividência e a identificação provocada pela simples frase:

"Sometimes you just have to pee in the sink."

Não faz todo o sentido?

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

The boceta kid




Antes

Pedrinho foi ver um Benfica Porto lá no boteco do Joaquim, na Cupertino Durão, fodido da carteira e sem um rolé de cama há meses. Mudara-se do Porto para o Rio com perspectivas de emprego e um filme editado na cabeça: mulheres morenas, de pernas malhadas e marcas de biquíni; mulher loiras com lábios devotos ao sexo oral e tanta ternura depois, como malícia antes; mulheres mulatas, japonesas, negras como o café da manhã, mulheres que compensassem a sua adolescência casta e a idade adulta com pouca quilometragem – três namoradas, duas visitas a prostíbulos do Porto.

Pedrinho era do Boavista e estava-se a cagar para o jogo. Tinha combinado com JP, um belenenses com cartão de sócio, que também dispensava o clássico, mas que gostava de cervejas baratas e confusão ao fim da tarde. Sem prestarem atenção no ecrã ou sequer nos outros portugueses com cachecóis ao pescoço e “filhadaputa” na ponta da língua, JP e Pedrinho puseram-se a sorver cachaças e chopes, acabando, como sempre, dedicados ao tema que mais desassossego provocava a ambos: boceta.

“Eu sou movido a boceta, tenho de admitir. O meu motor de arranque são gajas. Sou assim desde pequeno, não consigo estar num bar só com homens, fico inquieto.” JP interrompeu o discurso e ficou a olhar para uma milf que regressava da praia comendo um picolé. “Estás a ver o que te digo. Basta sair à rua. Sabes o que disse Buñuel?”

“O toureiro?”, perguntou Pedrinho.

“O gajo do cinema, que fez aquele documentário sobre os pobrezinhos ali perto de Salamanca, e que matou uma cabra para tornar aquilo mais dramático.”

“Não faço ideia.”

“Caga nisso. O Buñuel tinha 70 anos e disse: ‘Com esta idade ainda não me livrei do tirano.’ Entendes? Isto é uma tirania.”

“Não entendo.”

“O sexo, a boceta, o pau duro, um gajo ir ao supermercado e entrar no corredor dos produtos de beleza só porque viu uma gaja boa passar.”

“Que romântico.”

“Por falar nisso. Quantas quecas é que já te valeu esse romantismo desde que aterraste no Rio?”

“Não sou como tu. Não gosto de pegação. Não é a minha cena.”

“Tu és um mestre Jedi. Como é que consegues suportar os meses de abstinência?”

“Nunca ouviste dizer que a espera intensifica o prazer.”

“Essa foi a coisa mais gay que te ouvi dizer nos últimos dois dias.”

“Estou aborrecido.”

“Jogo de merda.”

“E tu, tens triunfado?”

“Ontem foi lá a violinista a casa.”

“E então?”

“Foi fixe. Mas acho que não vou repetir.”

“Terceira vez?”

“Quarta.”

“Bate certo, é o teu padrão.”

Pedrinho foi ao banheiro, as solas das havaianas chapinharam na película de mijo e água e papel higiénico. Balançando diante do urinol, pôs-se a pensar que, quando saísse daquele boteco e entrasse na rua, tudo iria mudar. De peito inchado pela confiança da cachaça, almofadado pelo airbag alcoólico e sem medo da rejeição, Pedrinho decidiu que o que tem de ser tem muita força, acabavam-se ali as longas conversas e o cavalheirismo, ia partir directo para a sacanagem, pegação a toda a ordem, vamos varrer geral.

Depois pensou no conselho que JP lhe dera, semanas antes, durante uma festa: “Tens de saltar-lhes à boca. Não digas nada. Chegas lá e saltas-lhes à boca.”

Pedrinho voltou a terra firme e passou pelas mesas do boteco, olhou as mulheres susceptíveis de serem beijadas após três cachaças e seis chopes (60 por cento das presentes), imaginou-se a saltar à boca de uma delas.

Mas logo se acagaçou, pensando que agarrar uma mulher, sem “com licença” ou “por favor”, e meter-lhe a língua na boca, era missão para os rangers de Lamego ou os forcados de Santarém.

Pedrinho estava habituado a cafezinhos e mais cafezinhos antes de receber um beijo nos lábios. Lidava melhor com programas tradicionais: cineminha no dia que era mais barato, lanches em pastelarias, um pé de dança numa discoteca e férias na loucura de Vilamoura – localidade onde, depois de muita insistência de Pedrinho e outros tantos copos de sangria, a sua namorada se masturbou para ele, pela primeira vez, em sete anos de relação. Nunca se falou no assunto. Muito menos se repetiu a prática.

No boteco era diferente. Tudo era possível. Pedrinho sentou-se e informou JP da epifania resultante da sua visita ao banheiro.

“Eu sou como um jogador de futebol brasileiro na Europa, mas ao contrário.”

“Come again?”

“Não se diz que, por vezes, os jogadores brasileiros levam tempo a adaptar-se ao futebol europeu?”

“Ya.”

“O mesmo acontece comigo aqui, mas no campeonato do engate. Eu estou num processo de adaptação, mas chego lá.”

“É isso que eu gosto de ouvir. Hoje vais ser o Ronaldinho e eu o Ronaldo Fenómeno.”

“Não posso escolher outro?”

“Ok, podes ser o Mozer.”

No intervalo do jogo pagaram a conta e caminharam para lado nenhum. JP falava como numa palestra:

“Tem tudo a ver como a forma com encaras o determinismo biológico do teu género. Nós fomos feitos para espalhar a semente e um dia podemos até ficar obsoletos, mas enquanto aqui estivermos é melhor aceitar esta tirania do que reprimi-la. O sexo faz muito bem à saúde. Tens ideia da quantidade de doenças que a prática continuada de sexo previne?”

“Sífilis? Sida? Gonorreia?”. Pedrinho estava mais solto, esta seria a sua noite.

JP pegou no telemóvel, levantou uma mão para que Pedrinho se calasse, e abriu o livro da lábia chapa cinco:

“E aí, bonitinha, onde você anda? Está com amigas?”


Depois

Pedrinho apareceu no quarto de JP a meio da manhã, abriu as cortinas com intenção de causar danos nas córneas do amigo, e começou a desaparafusar o aparelho de ar condicionado. JP sentou-se na cama:

“O que estás a fazer aqui a estas horas?”

“Não sou eu, é o tirano.”

“Como é que entraste?”

“O tirano convenceu a tua companheira de casa que era um assunto urgente.”

Pedrinho já ia no quarto parafuso quando JP reparou na caixa de ferramentas.

“Que merda é esta?”

“O tirano veio cobrar. Uma das tuas amigas acabou lá em casa. A meio da noite pediu-me duzentos reais mais dinheiro para o táxi. Quando disse que não, que não tinha acordado nada com ela, apareceu-me um negão lá em casa.” Levaram-me o ar condicionado como garantia de pagamento.”

JP saltou da cama, abriu os braços em louvor ao universo.

“Tu não percebes? Tudo mudou. Olha para ti, cheio de auto-confiança. Entras aqui, nem se nota que estás de ressaca. Todo decidido. Tiras o ar condicionado da parede, falas alto, estás mais contundente. Não percebes o que está a acontencer? Isto é coisa de Mr. Miyagi, wax on, wax off. Tu estás finalmente preparado. Os teus níveis de masculinidade estão a bater ferros. As mulheres adoram isso.”

Pedrinho pousou o ar condicionado na cama. De facto sentia-se mais pujante desde que estivera com aquela mulher. O tirano precisava de ser alimentado.

JP enfiou-se nuns calções de banho. Não vestiu t-shirt: “Agora é uma questão de continuarmos com o programa de treinos. Vamos lá beber um suco à rua.”

Pedrinho olhou o amigo: “Achas mesmo que a minha sorte vai mudar?”

“E eu alguma vez te ia mentir sobre uma coisa destas?”

“Então vai andando que eu vou montar o aparelho outra vez.”

“Faz isso. Olha, tens aí vinte reais que me emprestes? Nice. És um bacano. E não te esqueças: wax on, wax off.”

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Casa



“Vê se vês terras de Espanha
areias de Portugal
olhar ceguinho de choro.”


para Gonçalo Salgado


Não lhe chamemos visão que, de místico, isto não tem nada. Digamos antes que, na ribanceira do sono, me apareceu a memória de algum lugar onde já estive sem saber ao certo qual. Era uma rua de pedra, uma rua cor de terra como só há em Espanha, com luzes acesas nas casas, nos bares, nos corações da gente callejera que oferece cigarros e bebe e conversa até altas horas. Um desses lugares onde parávamos nas viagens pelo sul da Europa, comendo franguinhos assados numa pensão para poder beber cervejas em discotecas da moda. Por exemplo, o fiasco de um final de ano em Cáceres, com baratas a subir as paredes de um bar – Faunos – que rapidamente se revelou um prostíbulo da subcave do bas-fond, o que levou um dos nossos amigos a disparar porta fora receando as investidas de uma marroquina que, até hoje, suspeitamos chamar-se Muhammad ou mesmo José Luís. E aquela estação de comboios onde se comiam churros a desoras, o portuga da malandragem que nos serviu de guia e que, soube-o anos mais tarde, montou um negócio de sites porno. E a erva de produção caseira, transportada numa lata de Herbalife, quando eu ainda não fumava – soubesse o que sei hoje e esses dias em Cáceres teriam sido muito mais doces, mais de fumo e risota imparável.

Esta semana falámos, por email, e quando tu devias ir deitar os teus filhos e eu devia estar a cozinhar os bifes de frango, estávamos antes a trocar emails disparatados exactamente como quem troca piadinhas na aula de Biologia da Dina – numa dessas aulas, com a barriga em desarranjo, fui duas vezes à casa de banho para, no regresso, ouvir o coro: “Cagão, cagão”. Tenho a certeza que também gritaste. Eu teria feito o mesmo.

Nesses emails falámos de trabalho mas logo te puseste a dizer que tinhas um treinador igual para cada um dos nossos amigos – e até foste buscar o Marinho Peres ao fundo do baú.

O que ter quero dizer é isto: esqueci-me, durante muitos anos, o que era uma casa. Sabes que andei por aí, de cidade em cidade, de pessoa em pessoa, dizendo que a minha vida cabia em duas malas de viagem, um slogan de t-shirt que achava tão dogmático como acessório para conversas de engate. Talvez seja da idade, talvez seja o segundo acto disto que andamos para aqui a fazer, talvez tenha sido o inferno de alugar um apartamento no Rio, quatro meses e cinco casas depois, um nomadismo que me traumatizou, fui enganado, enrolado, fiquei especado, perdi, preyboy.

Mas exactamente no dia do teu aniversário, entro por fim na casa onde viverei, espero, por uma longa temporada. É um dia importante para mim, o céu amanheceu tão azul que uma nuvem se dissolveria caso arriscasse aparecer no horizonte. Uma daquelas manhãs em que sabemos que tudo rolará impecavelmente, manhãs com o mesmo aroma das manhãs de praia quando éramos crianças e a maré baixa era campo de futebol, cenário de guerra de areia, território de piscinas. Numa manhã destas sabe bem ter uma casa, ser parte de um bairro, falar com o vizinho quando vamos ao pão, como aconteceu há umas horas, assim que pus o pé na rua e me lembrei que era o teu aniversário.

Nessa viagem matinal pensei em ti e soube, já o sei há algum tempo, que ter uma casa me fazia falta. E não falo apenas do apartamento na Gávea que, espero, visitarás e onde repetiremos as mesmas histórias de sempre – os estaladões do professor de francês Sales Gomes, o capotanço de tequila algures no Algarve, as desventuras do Guilherme Pancadas, do Fernando Jabum, do senhor Herculano que tomava conta dos balneários e transpirava bagaço.

Não falo apenas do meu apartamento. Falo de todas essas coisas, das conversas sobre o Marinho Peres às cenas de pancadaria com forcados de Santarém, mas também aquilo que, ao longo dos anos, por orgulho macho ou apenas porque sim, não foi preciso dizer.

É nas tais ruas de Espanha que cruzámos vezes sem conta de copo na mão e a esperança de algo extraordinário, no pelado do Vale de Santa Rita onde as tuas qualidades de central incluíam golos em cantos e pontapés de canela, nos reencontros em que a parvoíce é o veículo de comunicação mais usado, nas recordações do senhor António da mercearia, que conduzia de cabeça à banda, do senhor Henrique, que nos treinou com a famosa táctica do fole, do setôr Bagaço, que mandou a turma inteira para a rua, é em tudo isso que também se encontra agora alicerçada a minha casa.

Talvez tenha sido necessário ter viajado milhares de quilómetros, durante anos, para perceber a importância de um porto de abrigo. Tu já o sabias muito antes de mim.

Parabéns, com cadeiras pelo ar e gajos pendurados nos candeeiros.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Sport Lisboa e Ipanema


Quem rola pelo calçadão de Ipanema pode ver a bandeira do Benfica desfraldada no areal, no conhecido e apregoado Posto 9, entre a Rua Vinicius de Moraes e a Farme de Amoedo. Fosse a praia carioca um bairro lisboeta e estaríamos no Chiado.
Em vez de miúdas descendo a Rua Garrett temos garotas de biquíni, em vez de pastelarias e lojas de cadeias internacionais, temos panteras negras - caipivodka black com fruta - e sportings no menu da barraca do Chico, que desde dezembro passou a ser também a barraca do Sport Lisboa e Benfica no Rio de Janeiro.

Encontro-me com os produtores desta ideia quando o Sol está a pique e as havaianas fervem na calçada. Diogo Anjos e João Viana Ruas descem comigo para o areal, cumprimentam Chico, o dono da barraca, e Diogo questiona um dos empregados: "Galo, você viu os vídeos do Benfica que postei no Face?"
Um guarda-sol montado e três cadeiras na sombra depois, Diogo e João, amigos há cinco anos e companheiros de negócios no Brasil, começam por pedir sportings. A explicação aparece no cardápio que Galo me entrega: "Sporting: garrafa de água, ou seja, não faz mal a ninguém."


O resto do texto poder ser lido no site do Dinheiro Vivo.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Trezentos e sessenta e dois dias






“Not that I want to be a god or a hero. Just to change into a tree, grow for ages, not hurt anyone.” -Czeslaw Milosz





Miúda da Gávea,

Nunca imaginaste que as manhãs pudessem ser tão limpas e importantes, com tanta luz a elevar o teu corpo quando pedalas na orla e a maresia é uma viagem no tempo: outra vez a Praia Grande e o fôlego da Serra de Sintra, miúdos a gritar na areia molhada da maré baixa, os teus pais tão novos como és agora, a tua irmã precisando de ajuda para ir ao banho.

Nunca imaginaste que os dias começassem assim que o sol aparece sobre a pedra do Arpoador, logo tu, bicho de metabolismo nocturno, exemplo máximo da prática do verbo inglês to linger: na cama, no sono, nos dez minutos após o despertador.

Linger on, miúda da Gávea.

Desde que o barco zarpou de Lisboa, já foste miúda de Ipanema, garota do Alton Leblon, tiveste um pé (uma perna, a curva do pescoço) no BG. Chegaste, por fim, a porto seguro, numa rua com o nome do verdadeiro santo padroeiro de Lisboa.

Por mais voltas que dês, há este fio de vai e vem, duas cidades, os aurículos cá e os ventrículos lá, a pulsação dessintonizada. É, para ti, uma inquietação nova. Mas deixa-me dizer que faz parte da bagagem de quem dá o salto. Deixa-me dizer que é bom andar para trás e para a frente nesse fio e que os regressos a Lisboa serão sempre tão assombrosos como os regressos à infância que fazes todas as manhãs assim que entras na maresia. No regresso, não receberás apenas a beleza e o amor de um lugar que será sempre teu - terás também o jogo de espelhos, a perspectiva do viajante, vais chegar diferente e mudada a um lugar que imaginas igual - embora nunca esteja. E isso também conta.

Ainda que tenhas demorado dez horas de avião para chegar ao Rio de Janeiro, a verdade é que só meses depois, tantos como a viagem da corte em 1808, pareces chegar a porto seguro - demasiadas casas, agruras burocráticas, azares do acaso carioca. Estás cansada da viagem, mas não apareces de cabelo rapado, como as aristocratas que, depois de uma praga de piolhos a bordo, tiveram de recorrer a navalhas, surgindo ao povo do Rio com turbantes. Dizem que chegaram maltrapilhas e sujas, mas eu vi-te chegar ao aeroporto do Galeão, e garanto que se as mulheres portuguesas usam turbante, hoje ou há duzentos anos, será sempre por questões de estilo. Ficam-te bem as fitas na cabeça e esses óculos escuros. Come and star in my movie.

Dez horas de avião, alguns meses depois, estás por fim na tua nova casa. Na tua nova cidade. Na tua nova vida.

Muitos anos antes de saber que viverias no Rio ou que estaria a escrever-te neste momento, um escritor português que te conhece bem, abria o romance de estreia com uma frase: "Acendam-se as luzes para o mundo começar."

Estava, sem saber, a referir-se exactamente a este dia.

Linger on as long as you like, miúda da Gávea.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Mudar de vida


Para os meus sobrinhos, Manuel e Francisco, que me levaram ao Zoo de Lisboa. Espero que cresçam num Portugal melhor que este

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Ele quis ser primeiro-ministro durante muitos anos, mas a meio da legislatura já tinha olheiras de turno da noite e a cabeça afectada por dentro e por fora: a calvície acelerada, os cabelos brancos que, em vez de charme, anunciavam fadiga, sinapses que produziam sound bites, discursos de inauguração num quartel de bombeiros, em conferências de imprensa, em comícios de domingo. Ele quis ser primeiro-ministro, mas não aguentou a falta de horas de sono, as viagens de avião, a presença dos seguranças, o telemóvel em efervescência permanente.

Não tinha filhos nem mulher. Não teria tempo para eles e jamais conseguiria força para mudar fraldas, ajudar com a Matemática, sintonizar o relógio do leitor de DVD, namorar no sofá no intervalo de um filme. Havia demasiada gente a pedir a sua atenção para que quisesse uma família.
De manhã encontrava-se com embaixadores, almoçava com autarcas, participava na condecoração de atletas ao lanche, passava o pôr-do-sol com os assessores, no gabinete, preparando uma entrevista. Era maquilhado, desmaquilhado, não desligava o telemóvel durante o sono.


2
Durante a visita à maior fábrica de enchidos do país, os jornalistas perguntaram-lhe sobre uma revolução que acontecia longe no mapa e ele repetiu o que outros líderes mundiais tinham dito nas notícias – uma mensagem produzida automaticamente, soando como a voz gravada que anuncia as estações de comboio. Lamentou a perda de vidas de inocentes e desejou a chegada da democracia, por fim, àquele território já tão fustigado. Entrou no carro e não se lembrava do nome do país em questão. Não sentia empatia pelos familiares dos mortos nem desprezo pelo ditador. Estava exausto e não conseguia sentir nada. Assustou-se. Durante o resto da viagem, ficou com uma perna dormente, depois um braço, os dedos deixaram de tocar os estofos. Fazia frio por causa do ar condicionado e a alta velocidade da comitiva oficial deixou-o tão enjoado como na noite em que ganhou as eleições na universidade e bebeu vários litros de vinho. Há anos que não bebia, não fumava, há anos que não esquecia as horas para falar e beber e comer com os amigos.

Entraram na cidade e o primeiro-ministro pediu ao motorista para parar o carro. Dispensou os seguranças, desligou o telemóvel, deixou para trás a gravata e o casaco, despenteou-se um pouco, ordenou que ninguém o seguisse. Caminhou debaixo do sol, sentindo na pele o vigor das temperaturas altas. Entrou no primeiro lugar bonito que encontrou.


3
Há anos que não ia ao Jardim Zoológico. Ficou a olhar os tigres durante quase uma hora, apreciando como se espreguiçavam e abriam a boca sem cerimónias e se empoleiravam nos vidros como se quisessem brincar com as crianças. Ele gostava de ter a vida dos tigres.

Não se deu conta das famílias gordas, equipadas de câmaras de filmar nos telemóveis, que o gravavam, sentado e com as mãos nos bolsos, nem se incomodou com os guinchos dos miúdos mal comportados. Quando os tigres pareciam dormir, avançou zoo adentro, passando pela aldeia dos macacos onde os habitantes se catavam mutuamente, um nepotismo símio, uma promiscuidade que lhe parecia familiar. Um dos edifícios da aldeia dizia “Hotel da Barafunda” e de repente, olhando para aqueles macacos, pensou quão parecido era o código genético dos macacos com o código genético dos humanos.

Invejou a placidez dos gorilas, deu folhas a girafas com línguas malabaristas, enterneceu-se com lémures, crias de leopardo e hipopótamos bebés. Junto do fosso dos leões pensou no que faria se uma criança caísse lá dentro. Estava outra vez com delírios de grandeza, os mesmos que o impediram de reconhecer que não tinha cabedal para ser primeiro-ministro. Esse não era o seu destino. Esqueceu o salvamento das crianças em apuros e foi ver o espectáculo dos golfinhos.

Ela era tratadora, muito bonita, aguentava mais de um minuto debaixo de água e dava beijos no focinho dos golfinhos. Os animais empurravam-na para o fundo da piscina e depois catapultavam-na para a superfície – um salto gigante acima da água que pôs o primeiro-ministro a bater palmas e a dizer “uau” como as crianças de infantário em visita de estudo na plateia.

Ele tinha cometido um erro e soube-o, com toda a certeza, diante do esplendoroso salto daquela mulher: não seria capaz de mudar o país nem de solucionar todos os anseios do seu povo. Não estava feito para aquilo. Sentia-se cansado, desiludido e encardido. Talvez o país lhe perdoasse se ele fosse para um alto cargo internacional, mas não entenderia que deixasse o poder assim, sem avisar, um desistente apaixonado por uma mulher que tratava de mamíferos aquáticos, uma mulher que ainda nem sequer conhecia. Os aliados no partido iriam desertá-lo, os inimigos dariam entrevistas para falar da irresponsabilidade do primeiro-ministro. Mas alguma coisa tinha de ser feita para não perpetuar o erro. Ele gostava muito de vê-la saltar acima da água.

Nessa noite, depois de informar o país da sua decisão, procurou informações sobre golfinhos na internet. No dia seguinte voltou ao zoo. Não sairia dali enquanto não soubesse o nome da tratadora. Caso fosse necessário mergulharia no tanque a meio do espectáculo. Já tinha feito coisas bem mais ridículas por causas menos importantes.