terça-feira, 19 de junho de 2012

Diário de um ficcionista: Prefiro toddy ao tédio



Escuto na rádio o verso cantado: "Rio de Janeiro, pode chegar que o povo é maneiro." Anunciaram chuva, mas faz sol, uma surpresa tão agradável como acordar pensando que é dia de escola e, de repente, darmos conta que afinal é sábado.

"Talvez eu seja o último romântico", canta agora a rádio e penso nos bordões positivistas que aprendi nesta cidade: "Estamos juntos", "Vai dar tudo certo", "Mais cachaça".

Ontem uma amiga disse-me:

"Não digo uma certa palavra."
   
"Qual?", perguntei, comendo pipocas, no lado de fora de uma livraria, enquanto uma fila de fãs esperava a sua vez para falar e autografar, com um abraço, o corpo do poeta dos caracóis, que sorria como os meninos em dia de ditado sem erros.

A minha amiga respondeu: "Não digo aquela palavra que é o contrário de sorte."

Eu tinha passado a viagem de carro, até à livraria, a falar do motorista de ônibus que matou cinco pessoas na calçada, indignando-me com a impunidade, alertando que o criminoso em questão já provocara três acidentes ao serviço da empresa de ônibus e continuara a dirigir desaustinadamente pelas ruas da cidade sem uma suspensão sequer.

Apesar dos milhares de fudidos nesta cidade, da galera atropelada e dos motoristas que ignoram o vermelho do semáforo, há aqui um otimismo que garante que as frutas continuarão a crescer nas árvores, o mar seguirá dando ondas e peixe e o frescor dos mergulhos, os morros continuarão verdes e pulverizando clorofila sobre a cidade.

A minha amiga não diz "azar", prefere focar-se no lado luminoso do binómio enquanto eu resmungo que não sou supersticioso, me zango com o trânsito do Rio, sentencio motoristas de ônibus em julgamentos tão sumários como imaginários, quero mudar o mundo com a rapidez de um par de estalos.

Outra vez a rádio da sala onde escrevo. Cazuza canta: "Eu sou mesmo exagerado." 

Regresso outra vez ao dia de ontem, horas antes de o poeta dos caracóis entrar na livraria, quando conversava com ele numa casa da Gávea. O poeta vestia uma T-shirt com a frase  

Prefiro Toddy ao tédio

e explicou-me: "O Cazuza usava essa camiseta, mas não dizia de quem era a frase. É de Ledusha, uma poeta de São Paulo."

Depois de saber que Cazuza não respeitava os direitos autorais decidi que iria embirrar com o cantor até que alguém me conte alguma coisa bonita ou interessante sobre a sua vida.

Na livraria a fila avançava devagar, mais pessoas se sentaram na nossa mesa, do lado de fora, mais bocas ruminando pipocas, bebendo cerveja, sorvendo coca zero pela palhinha/canudinho.

Na fila estava uma poeta portuguesa que podia ser índia e uma escritora que me proibiu de dizer a palavra poetisa. Convenceu-me de tal maneira que nunca mais serei capaz de dizer poetisa. Embirrei com poetisa como embirrei com Cazuza e com os motoristas de ônibus.

Na sala onde escrevo a rádio canta: "Reconhece a queda e não desanima, levanta, sacode a poeira, dá a volta por cima."

Faz sol e tinham anunciado chuva. O poeta dos caracóis esgotou o livro, a poesia dele esfregou-se nas pessoas e foi deambular pela cidade, foi fazer amor em conjugados, coberturas e quartos de motel, foi beber chopes, atacar a geladeira, escrever mais poesia, curtir a malícia, mergulhar na luz do Arpoador, foi dizer: "Vai dar tudo certo."

Faz mesmo sol. Posso vê-lo na janela. Vou sair para a rua em breve. Quero zangar-me menos. Pego no marcador preto e escrevo nos azulejos brancos da cozinha:

Para quê pensar que vem aí chuva se faz sol?

O primeiro verso do livro do poeta dos caracóis é:


invadir o corpo do mundo

Não poderia ser de outra maneira.


1 comentário:

  1. Há imensa coisa interessante e bonita sobre a vida do Cazuza!!! Devias ver o filme "O tempo não para", é muito bom e acho que toda a gente que o ve passa a gostar um pouco mais do Cazuza, que, mesmo não sendo musicalmente genial era um grande poeta. Aliás, acho que quer o Barão Vermelho (a antiga banda dele), quer a carreira dele a solo valem mais pelas letras do que apenas pela música. Mas claro, temos o direito à embirração... Eu embirrei com o Bono, e com o Chris Martin e até hoje ninguém me consegue fazer ouvir duas musicas dos U2 ou dos Coldplay seguidas. Um grande abraço transatlantico; continuamos à espero do livro novo!!

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