quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Carta de Natal de um emigrante para o primeiro-ministro



O meu avô emigrou. O meu pai também. Eu também. Três gerações, gente nascida em 1910, em 1944, em 1976. Três gerações que cruzaram fronteiras para dar razão ao lugar-comum: uma vida melhor. O senhor sabe a história do nosso país, esta coisa que parece inevitável, a nossa gente espalhada pelo globo, uma mistura de orgulho nacional e aflição permanente. Olhe, ainda no outro dia conheci o senhor Américo num boteco aqui do Rio de Janeiro, o seu sorriso de empregado de balcão abriu-se assim que lhe topei o sotaque e lhe estendi a mão: “Estou aqui desde 1963, mas todos os anos vou lá.”

Lá: o senhor vive nesse “lá”, nessa terra, nesse país agora atormentado, e acredito que se esforça para que “lá” seja algo mais limpo e habitável e próspero. Tenho a certeza que preferia que o senhor Américo tivesse ficado junto da família, trabalhando e pagando impostos, celebrando o Natal com frio e pinheiros em vez de 35 graus e coqueiros. Essa é a sua missão, não é? Confesso que não lhe levo a mal o conselho – emigrem -, imagino que talvez o seu desespero seja igual ao desespero dos nossos compatriotas. Mas queria dizer-lhe uma coisa – sem amargura, sem raiva, com os olhos postos na janela que dá para o Rio de Janeiro, porto de chegada onde os portugueses vêm parar, há séculos, em momentos como este. Queria dizer-lhe que nem sempre é tão fácil partir como quanto o senhor fez parecer no seu discurso.

Não vou aborrecê-lo com a vida dos emigrantes. Nem sequer lhe vou dizer que somos vítimas chorosas, entregues ao infortúnio, lançadas num pranto porque saímos do nosso país. Não, claro que não somos. Mas posso dizer-lhe que, neste Natal, pode ter muito orgulho dos emigrantes portugueses. Olho para os milhares de jovens que chegam ao Rio, com quem me cruzo na rua, com quem troco ideias e conversa fiada, e fico orgulhoso, gente engenhosa e temerária, com uma capacidade de adaptação que faria inveja ao extra terrestre do “Predador”. Gente que fuça, que busca, que está disposta a trabalhar e a viver ilegalmente num país estrangeiro – são muitos. E olhe que não lhe falo dos portugueses que viviam na miséria das bidonville em Paris. Falo de agora, de rapazes e raparigas que abandonaram o privilégio da cidadania europeia, as maravilhas do Estado Providência, o passado da fartura e dos subsídios, que imaginámos que nos garantiria um futuro na terra onde nascemos.

Nada disso interessa agora para os que estão longe. Podemos ter os dentes todos, cursos universitários, conhecimento de outras línguas mas, tal como as gerações dos nossos pais e avós, tivemos de sair. E mesmo que nenhum de nós sofra de fatalismo crónico lusitano, tivemos de sair, percebe?

Por isso, quando lhe disserem que Angola ou o Brasil são lugares fantásticos onde os portugueses levam vidas muito mais felizes que em Portugal, onde enriquecem e fazem praia todos os dias, por favor tenha cautela.

Aqui, como aí, já se sabe, temos de fazer pela vida. Não estou zangado consigo. E desculpe a intimidade, mas sou emigrante e estou longe e é
Natal. Imagino que o senhor vá passar a consoada com a família. Eu não. E muitos outros portugueses que conheço aqui também não, impossibilitados de pagar dois mil euros ou mais para apanhar um avião e comer rabanadas junto da tal tia que oferece meias.

Quero desejar-lhe um bom Natal e sublinhar o orgulho que deve ter em nós, naqueles que estão aí e nos que estão longe. Temos saudades e sabemos que, nem que seja como o senhor Américo do boteco, voltaremos pelo menos uma vez por ano. Peço-lhe, por favor, que acredite no que lhe digo: por mais excitante que seja a luz ao fundo do túnel da emigração, há aqui muitos – mesmo muitos – portugueses que trocariam o Natal tropical pelo Natal das lareiras.

Natal sem ti (ii) e sem revisão de texto


Sento-me como se obedecesse a uma ordem, teclo como se fosse a única maneira de ainda chegar a ti, custa-me tanto escrever-te como me custa a tua ausência. Faz agora um ano que, nesta mesma cidade, manipulado pela saudade, me pus a escrever uma carta de Natal em formato de crónica – não era uma crónica, era a minha vida inteira sem ti, era a inevitabilidade de nunca mais voltar a ver-te. Eu sei que um homem da minha idade já não devia chorar, muito menos em público, muito menos usando o ofício que nunca pudeste conhecer.

Mas são agora 27 anos, 27 natais, tanto tempo sem ti.

Pensei que, tal como no ano passado, a fuga para um Natal tropical me salvasse desta saudade. Não dá. Desculpa mas não dá.
Por isso escrevo, escrevo para tocar-te e para receber os teus presentes e para que me digas para acabar o prato de comida na mesa. Fazes-me tanta falta quando estou assim longe e voluntariamente sozinho e sem saber onde me agarrar se não na escrita.
Olha, olha como escrevo bem, olha como escrevo para ti, para que tenhas orgulho e gostes de mim, para que passeies de mão dada comigo na rua e vás falar de mim às tuas amigas nas sessões de cabeleireiro.

Juro que ainda sou menino, podes ver como patino com o meu irmão – o teu primeiro filho – no terraço da casa, como me vestes t-shirts do Super-Homem ou tiras as natas do leite com chocolate – sabes que tenho pânico de natas, ainda hoje, se bebo leite, uso os incisivos como filtro. Sou tão pequeno quando te escrevo. Por isso talvez não possas saber como escrevo agora, achando que falo de coisas importante do mundo, guerras, favelas, senhores da política e tudo o que flutua como purpurina na actualidade mediática do globo.

Pudeste ver-me menino, mas não podes ver-me adulto. Não estás aqui, no Rio do Natal com duendes suando 34 graus, não estás na nossa casa com o cheiro de lenha na rua e frio nos pés – tu vinhas, calçavas-me as meias, puxavas o edredon para cima.

Queria dizer-te tantas coisas e no entanto é um soluço de palavras que me sai de algum lugar que ainda não cicatrizou, um lanho que se abre uma ou outra vez por ano e que me obriga a escrever-te. Mas como posso falar contigo de outra maneira, se não sou místico nem crente?
Por isso te escrevo, escrevo-te porque por vezes acho que é isto o que me salva – não é – e porque não te sei falar de outra maneira, porque não estás, porque não te posso ligar e muito menos abraçar.

Gostava de dizer-te: “Onde quer que estejas, espero que me estejas a ver.”

Mas não sei onde estás, deixaste de estar – 27 natais, 27 anos, tanto tempo sem ti.

Talvez para o ano, nesta ou noutra cidade, volte a tentar tocar-te, volte a olhar para a tua fotografia que trouxe na bagagem e me ponha a escrever, a escrever, a escrever tanto que vais saber que o menino cresceu e que sonha cativar-te com a escrita (onde estão os abraços, os mimos, o teu colo?)

É Natal, a família está a 10 horas de avião e tu estás ainda mais longe.

Gostava de dizer que um dia isto passa, que vou deixar de te aborrecer com as minhas cartas sazonais. É mentira. Poderei ter filhos e netos, irei sempre escrever-te.

Esta saudade não se cura. Por isso, se me vires a chorar, se os outros meninos me chamarem de mariquinhas ou, neste Natal tropical, souberes que me vou enfrascar como um marinheiro no primeiro dia em terra, sê meiga comigo.

Tantas letras para quê? Tanta coisa para quê? Apenas para isto: fazes-me tanta falta, mãe.

Rio Hard Core & Pulp Noir


Ray Cortese gostava de calor e de mulheres que se iam embora antes do amanhecer, mulheres entusiastas de quartos de hotel e de fumar na cama. Ray era um desses tipos duros como uma tira de couro onde se afia uma navalha. Praticou pugilismo em subcaves sem janelas, andou sozinho, a meio da noite, em bairros sem candeeiros públicos, foi atirador especial na guerra do Afeganistão. Cresceu nas ruas de Newark, filho de emigrantes portugueses, ágil nos esquemas, rápido de punhos, devorador de mulheres que cediam à sua mão, forte e precisa de atirador especial, segurando a cintura de um vestido, num canto escuro do bar, fumo nos olhos, álcool na língua, chamas nas virilhas.

Ray Cortese gostava de calor e de mulheres fáceis. Sentou-se numa esplanada da Avenida Atlântica, tirou o chapéu de palha – uma cópia tropical dos chapéus de detective que usava no hemisfério norte. Pediu um rum sete anos com gelo e uma rodela de lima. Enrolou um cigarro, cruzou as pernas, varreu todo o território em seu redor com olhos de matador profissional. Nenhuma daquelas pessoas suspeitava de como seria uma vítima dócil e sem hipóteses de fuga. Mesmo ao seu lado, estava um italiano balofo com olhos raiados de sangue e pele viscosa de suor. Tão bêbedo como um adolescente na sua estreia com tequila, o italiano babava para cima de uma negra de cabelos esticados até aos ombros. Seria tão fácil degolá-lo numa rua a caminho do hotel, dar-lhe um tiro na nuca com silenciador, oferecer-lhe uma cerveja com pozinhos que desfazem as entranhas e provocam gritos suínos de dor.

Ray reformara-se, não matava mais ninguém, fosse em guerras, fosse num quarto de hotel nos Emirados Árabes, a troco de uma transferência para uma conta bancária numa qualquer ilha onde os narcos vão branquear dinheiro e os políticos vão esconder subornos.

Ray passara por Lisboa nos primeiros meses da sua aposentadoria. Namorou uma fadista amadora, Rosa Maria. Não deu certo. Ela encharcava-se em vinho e oferecia-se aos guitarristas. Ray quis apontar-lhe uma arma, talvez dar-lhe uns tabefes, chegou a agarrá-la pelo pescoço. Mas Ray estava reformado e já não fazia mal a ninguém. Voou para o Rio de Janeiro.

Talvez viajasse pelo continente, costa a costa, do Rio a Santiago, só ele e um automóvel sem capota. Mas primeiro passaria algum tempo em esplanadas cariocas, fumando e bebendo, aproveitando a vista, deixando fortalecer a pulsão dentro de si, um crescendo musical, como uma orquestra, as cordas cada vez mais tensas, um constante rodopio de imagens de mulheres que se sentavam com turistas sexuais: pretas, brancas, sem peito, com bunda, safadas e tímidas, todas fazendo pela vida.

Ray não aguentava mais. Escolheu uma mulher jovem, longos cabelos de índia e boca de beijo na boca, lábios de negra e de fruta, corpo enxuto e olhos de quem gosta de aprontar. Ela quis sentar-se e pedir uma bebida. Ray perguntou:

“Como te chamas?”

E ela disse a primeira mentira da noite. No quarto de motel, ligou a rádio, sacou uma garrafa do minibar e disse a segunda mentira: “Vamos beber uma cerveja?” Ray não sentiu nada de estranho nas bolhinhas da cerveja gelada. Mandou-a tirar a roupa. Disse: “Fica assim, diante do espelho, agora toca-te. Mais devagar.”

Ray queria que ela tivesse prazer. Insistiu: “Estás a gostar?”

Ela não falou e veio sentar-se em cima dele, cavalgando-o sobre as calças, o púbis roçando no tecido. Ele agarrou-lhe os cabelos na base da nuca e disse:

“Quero beijar-te.”

“Então beija.”

Fade to black. O quarto escuro, uma nesga de luz entrando pela janela e alguém a bater na porta. Ray abriu os olhos e a cabeça estalou como um glaciar desmoronando-se sobre o oceano. Levantou-se, desequilibrou-se, mas caminhou para a porta.

"Quem é?
"
“Já passa da hora, senhor.”

“Que horas são?”

“Uma da tarde.”

Ray abriu a porta: “Onde é que estou?”

“Em Copacabana.”

Ray olhou para o quarto e viu a sua roupa no chão, a carteira aberta, sem cartões ou dinheiro.

“Filhadaputa.”

“Boa noite Cinderela”, disse o homem.

“O quê?”

“Você foi roubado, doutor. Boa noite Cinderela: é uma droga que deixa você apagado, sem memória, buraco negro. Quer que eu chame a polícia?”

“Não.”

“O motel está pago, o senhor pagou na entrada. Tem como ir para casa?”

Ray caminhou até ao hotel onde estava hospedado pela calçada de Copacabana. O sol a pique e o barulho de martelos pneumáticos, o bufar dos ônibus que ameaçavam atropelamentos e o corpo moído da droga, obrigaram Ray a entrar numa loja de roupa feminina com ar condicionado. Uma mulher trouxe-lhe um copo de água. Ray esperou alguns minutos, agradeceu e foi para o quarto de hotel planear o crime que interromperia a sua reforma.

Pediu o jantar pelo telefone. Filet com fritas, mal passado, e arroz com feijão. Bebeu uma cerveja gelada, tomou um duche e prendeu o revólver entre a base das costas e as calças.

Nas ruas de Copacabana encontrou ainda o mesmo barulho, mas agora distorcido pelo álcool servido nos botecos, suavizado pelas coxas das moças e pela maresia que saía da praia como nevoeiro para se colar na roupa e diminuir a visibilidade.

Ray sentou-se na mesma esplanada da noite anterior. Reconheceu caras e bundas, voltou a ver os turistas que procuravam carne fresca e se chegavam à frente com a carteira sempre que aparecia uma conta, subsidiando romances tropicais com os euros das suas pensões, ordenados e cartões de crédito.

Foi fácil a Ray saber onde morava Cinderela. Pagou, falou curto, não ameaçou, mas ficou claro que alguém se podia machucar caso um endereço não fosse escrito num guardanapo. Uma das mulheres alertou: “Vai não, esse lugar é perigoso.”

Ray entrou num táxi e mostrou a morada ao taxista, que se recusou a fazer aquela corrida: “O senhor me desculpe, mas aí eu não vou não.” Ray entrou noutro táxi e atirou uma nota de cem euros para cima do banco do pendura.

Uma hora depois entrou numa rua cheia de barracos, na zona norte do Rio. Havia gente num boteco feito de madeira e chapas de zinco. Não eram dez da noite quando Ray saiu do táxi e viu Cinderela grelhando linguiças num braseiro, dois miúdos descalços brincando na terra, e uma televisão gritando reality shows no interior do barraco.

Ray sentiu a coronha do revólver. Olhou para as crianças. Cinderela não hesitou um instante. Caminhou na direcção de Ray e pregou-lhe a maior bofetada na história da indignação das putas: “Como você se atreve a vir na minha casa. Meus pais estão lá dentro. Me respeite.”

Ray afastou a mão da pistola e caminhou para trás. Ela disse: “Passe lá amanhã, pelas nove, que eu lhe devolvo tudo.”

No dia seguinte Ray vestiu-se como se para o baile do liceu. Foi sentar-se na esplanada. Ia esperar por ela. Dependia de uma puta ladra para, muitos anos depois do primeiro tiro, voltar a acreditar nalguma coisa.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Papai Noel deu sorte

Domingo de chuva num décimo segundo andar e, lá fora, as decorações precoces de Natal ficam distorcidas por causa da água nas janelas. Dia espesso com luzinhas a piscar nostalgia. No outro lado da rua, o Shopping da Gávea emitia o mesmo burburinho que começa a sentir-se em cidades de todo o mundo por esta altura do ano. Também aqui se inaugura uma árvore gigante com direito a festa e romaria. É no meio da Lagoa e podia ser a nave espacial do Homem de Ferro. Já reparei nos supermercados com cartazes de duendes e renas. Já estranhei o bafo quente das noites enquanto pinheiros iluminados brilham nos apartamentos cariocas. Não há aqui memórias de cheiro a pinhas, frio nos dedos quando se vai fumar um cigarro após a ceia, ruas nubladas pelo fumo das lareiras.

É domingo de chuva e, como se fosse visitada pelo fantasma do Natal passado, ela volta a contar a história do Papai Noel – já o tinha feito em Lisboa, já o fez no Rio. No início da carreira, ela trabalhava numa agência de publicidade. Um dos clientes, uma marca de lingerie, apreciava o arrojo e a polémica. Decidiu que queria fotografar um Papai Noel rodeado de gostosonas em trajes menores. Ela tinha como missão encontrar o Papai Noel mais vagabundo, desdentado, bebum, que só existe nos filmes ou em certos lugares do Brasil.

Depois de pôr anúncios nos jornais e fazer entrevistas a candidatos, encontrou o seu Papai Noel desgraçado, fodido e com má sorte genética. Trabalhava num shopping lá na Casa da Desgraça e a perspectiva de passar um dia rodeado de mulheres jovens e bonitas, meio despidas, e ainda ser pago por isso, era suficiente para dizer que sim, assinar o contrato, e aparecer no estúdio.

Tudo corria bem. O cliente gostou, a campanha estava a ser um sucesso, o Papai Noel deu sorte e tinha guita no bolso para pintar a casa, comprar uma TV ou espatifar tudo no boteco.

Antes do Natal ela começou a receber telefonemas do Papai Noel: os outdoors estavam por todo o lado, o centro comercial despediu-o por razões de conduta moral, os vizinhos não paravam de fazer piadas, as mães não queriam os filhos no colo do Papai Noel tarado. Não tinha trabalho. Disse: “Você desgraçou a minha vida.”

Os fantasmas do passado andam sempre connosco, seja na praia de Ipanema ou na casa da família portuguesa, onde o Natal é frio que dói mas podemos aquecer-nos no colo daqueles que são nossos desde nascença.

No final da tarde, já de saída, reparei no presépio da portaria do prédio. Além do burro e da vaca, um elefante com a tromba ao alto velava o Menino Jesus.

Já aceitei que agora o Natal será outra coisa. Um Papai Noel one hit wonder ou um Menino Jesus versão safari serão tão normais como as rabanadas da tia Albertina ou as crianças da família a abrir os presentes antes da hora.

Ela agora também é a minha família. Pela segunda vez consecutiva passarei a ceia de Natal em sua casa. Vou pedir-lhe que volte a contar a história do Papai Noel: é muitas vezes na repetição que encontramos o melhor dos consolos, o regresso a casa quando estamos longe.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Molecada da peladinha


"A gente não faz amigos, reconhece-os"

Vinicius de Moraes




Se me perguntam: “Qual é seu time?” Respondo: “Benfica.” Se me perguntam: “Qual é o seu time no Brasil?” Respondo: “Vasco da Gama.” Mas há uma grande diferença. Tal como não escolhi apaixonar-me por Sónia na primeira classe, também não decidi que seria do Benfica. Não me lembro do momento em que passei a ser benfiquista. Sou, fui e serei.

Ninguém aqui me pergunta porque sou do Benfica – quem gosta de bola sabe que essa questão não tem uma resposta objectiva, que a escolha do primeiro clube do coração, bem como aquilo que nos faz ser mais trogloditas, drama kings ou uma pilha de nervos no tempo extra do jogo, não pode ser apurado com precisão histórica e distância científica. No entanto, quando respondo “Vasco da Gama” – eles sabem que foi uma escolha –, as sobrancelhas levantam-se, os flamenguistas indignam-se, os vascaínos abraçam-me, os tricolores dizem que sou cliché – o Vasco é o clube dos portugueses, tem no emblema a cruz de Cristo em tempos propagandeada pelas caravelas lusitanas, os primeiros acordes do hino são os mesmos da “Portuguesa”.

É verdade, na busca racional que fiz para escolher um clube no Brasil, apoiar uma instituição fundada por portugueses parecia fazer algum sentido. Além disso, o Vasco foi o primeiro clube com negros no plantel, quando o Fluminense pintava os seus jogadores negros com maquilhagem branca, uma patética tentativa de burla, que levou o clube a ganhar o cognome de “Pó de arroz.”

Um dos meus músicos favoritos, Paulinho da Viola, é vascaíno. Um dos meus escritores brasileiros preferidos, Rubem Fonseca, e uma das suas personagens, Mandrake, mulherengo, advogado criminalista e Lone Ranger da Zona Sul, são vascaínos.

Mas mais que tudo, foi um amigo, antigo emigra portuga no Brasil, com quem estive no Rio em Dezembro passado, que me falou do Vasco da Gama com tanto entusiasmo e boas memórias, que me pareceu evidente que me tornaria vascaíno. Sei que talvez tenha havido também um impulso infantil na escolha de clube feita pelo meu amigo quando chegou ao Rio (ele chama-se Vasco; mas entende-se e perdoa-se, na pós-adolescência admito que usei um perfume Hugo Boss porque me chamo Hugo). Mas o que é o futebol se não a recuperação semanal da infância, como escreveu o madridista Javier Marías?

Não há nada de mal nesse impulso infantil, isso foi e será sempre uma parte das nossas conversas em botecos, em varandas com vista para a Xácara do Céu, nas sessões de parvoíce, na camaradagem, na amizade e na compreensão. Com o meu amigo, fui várias vezes ao estádio da Luz. Espero agora o dia em que entremos em São Januário para ver o Trem Bala da Colina, aka, Vasco da Gama. Sei que jamais agitarei a alma ou cansarei as cordas vocais, como aconteceu com o golo de Vata, o penálti de Veloso ou o 6-3 em Alvalade. Mas o meu coração, tal como o coração do meu amigo Vasco, é suficientemente grande para albergar a cruz de malta.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Breve história verdadeira sobre um portuga no Vidigal


O jogo da primeira mão entre Portugal e Bósnia passava na televisão de um bar no Vidigal. Os locais preferem dizer comunidade em vez de favela. O Vidigal fica bem perto da Rocinha, há até um caminho entre as duas comunidades. Três homens viam Cristiano Ronaldo na TV, havia cervejas nas mesas ao ar livre e uma vista para as ilhas Cagarras boiando no oceano. O meu amigo, habitante do Vidigal, entediado com o zero a zero, contou-me então a história de Nuno – nome fictício por razões que perceberão em seguida.

Nuno era menino de paitrocínio, tinha vindo para o Rio estudar ou estagiar ou fingir que procurava um emprego. Grande parte das divisas enviadas pela família portuguesa era gasta em sextas-cheiras, que passaram a ser também segundas-cheiras, terça-cheiras e por aí adiante, uma viagem para o abismo cocainómano do playboyzinho lisboeta. Nuno mudou-se para o Vidigal. Tinha um aluguer mais barato e estava perto dos seus abastecedores. O meu amigo contou que, certo dia, chegado de férias em Lisboa, subiu o morro e deu de caras com Nuno, metralhadora apoiada no braço, branco e magrelas e estrangeiro como mais ninguém naquele negócio. Nuno tinha entrado para o tráfico.

Nos botecos, nas calçadas, entre soldados e locais, rolava já a piada: se alguma coisa sujasse, o português seria o primeiro a ser entregue aos policiais. O meu amigo decidiu alertar Nuno. Disse-lhe que pensasse bem nos seus hábitos nasais e que ponderasse se fazia algum sentido um menino de Lisboa andar de fuzil nas favelas do Rio de Janeiro. Nuno não estava preparado para disparar aquela arma. Pirou-se sem beijinhos ou abraços, durante a noite, e deixou as suas coisas para trás. A casa foi pilhada pelos bandidos, que passaram a vestir a roupa de Nuno.

O jogo terminou zero a zero. A selecção aborrecida no Vidigal. O meu amigo disse-me: “Ainda podes ver aí bandidos com camisolas da selecção portuguesa e do Benfica que roubaram na casa do gajo.” Um desses traficantes matou dois bandidos da Rocinha num baile funk. O meu amigo estava lá. Ouviu os disparos. Os corpos, conta-se no Vidigal, foram pendurados de cabeça para baixo, o sangue drenado. Em seguida foram cortados em pedaços. Terminaram como comida para porcos. O tipo que os matou nunca mais mostrou a cara no Vidigal. O meu amigo diz que há um vídeo no Youtube onde ele aparece com a camisola da selecção portuguesa. Fui ver e é verdade. Mas não tem cara de bandido. Desci o morro e entrei numa van a caminho de Ipanema. Dias depois o Vidigal foi ocupado pela polícia. Ninguém morreu e a vida continua.

sábado, 19 de novembro de 2011

Fado de Outono


Na praça da cidade montam um carrossel e cruzo-me com os miúdos pequenos nalguma visita de estudo, as professoras atentas como sentinelas de uma manada de crias, dois a dois e de mãos dadas, a idade de quem acabou de perder os dentes da frente, uma daquelas tardes sem cor no céu e com o vapor de transpiração infantil nas janelas embaciadas da sala de aula, exactamente como quando na segunda classe a Sónia de olhos azuis e franja de escandinava estragou uma das minhas canetas de feltro molin – logo a vermelha, num estojo de 12. Quando fosse grande como o meu irmão, dizia a minha mãe, receberia um estojo de 48 canetas que parecia um órgão com teclas a tripar LSD. Sónia, se te dei um pontapé na canela foi porque gostava demasiado de ti – quando fazias um desenho a ponta da tua língua equilibrava-te, apertando-se entre os lábios cor de melancia sem sementes. Sónia, se fui mandado para a rua e te deixei a chorar, foi porque desde o primeiro período da Infantil que queria encostar a minha boca nas tuas bochechas cor-de-rosa, tão quentes e pegajosas como a sala de aula naquela tarde, e tu nunca sequer suspeitaste. Sónia, agora que passou tanto tempo, agora que os outros miúdos estão no recreio e nós de castigo, presos na idade adulta, não chores mais porque o rimmel que usas não é à prova de prantos. Sónia, não podia ser mais importante: deixa que a minha boca sinta a tua pele de fim de tarde e prometo-te que um dia vou ter um estojo com 48 canetas de feltro. A vermelha é para ti.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Monsieur Camus e o amigo português


No aniversário do Cristo Redentor, o Rio foi tomado por um caso grave de nevoeiro londrino e até as senhoras putas, que não viam um palmo diante dos olhos em Copacabana, recolheram a casa. Pecou-se menos nessa noite. O Redentor devia estar contente, afinal de contas era o seu aniversário, ainda assim resolveu cobrir-se de nuvens, e não apareceu em nenhuma das celebrações que a cidade organizou em seu louvor.

No outro dia, nas notícias, anunciaram que uma mulher grávida caiu de um nono andar e sobreviveu. Entrevistaram-na na cama de hospital. Estava bem, o filho impecável.

E há uma semana, por exemplo, um amigo viu o Saci Pererê enquanto bebia cachaças e comia uma feijoada num restaurante do Jardim Botânico. Tinha a certeza que era ele, com aquele barretinho vermelho e sorriso trocista, aparecendo e desaparecendo entre as sombras da mata. Além disso só tinha uma perna, o que reforça o testemunho do meu amigo. Tudo bem, era noite de Halloween e havia gente mascarada, mas o que lhe quero dizer é que nesta cidade acontecem coisas estranhas. Por isso, não me espantei muito quando lhe pedi fogo e ouvi esse sotaque franciú e me dei conta que estava a falar consigo. Também vi no Facebook que esta semana fazia anos. Veio ao Rio para festejar a data?

(Foi só então que me calei. Ele já tinha terminado o primeiro copo de cachaça. Eu oferecera a primeira rodada. Ele tocou com a língua nos dentes e um silvo disparou na direcção do garçon, que olhou, esperando o pedido. Ele levantou dois dedos. O garçon perguntou: “Salinas?”. Ele disse que sim com a cabeça.)

O Waldislei é fanático do Vasco da Gama. Trabalha aqui há vinte anos. Você gostava de futebol, não gostava?

(Eu insistia em utilizar o pretérito imperfeito, como se ele estivesse morto. Mas ele estava ali, fumando cigarros de enrolar, golas do casaco levantadas, um homem bebendo e comendo carne seca na mesa do Caranguejo, um boteco de Copacabana. O meu desconforto não estava relacionado com os pormenores sobrenaturais do episódio. Se me encontrava nervoso e falador e pronto a embebedar-me mais, foi porque em tempos fui grouppie de Camus – o primeiro escritor que achei que podia fazer um road trip com Steve McQueen e que, descobri mais tarde, morreu num acidente de carro.)

E se fossemos a outro lugar?

(Entrámos na orla e caminhámos pelo calçadão. O vento desapareceu assim que passámos pelo Arpoador, o mar abrindo-se aos barcos que esperavam para entrar no porto da prosperidade brasileira. Lá ao fundo, apesar de desfocados pela maresia, estavam o Hotel Sheraton e a favela do Vidigal. Fomos avançando em silêncio, amparados entre o som das ondas e o galopar do trânsito. Camus desapertou o casaco e decidiu ir pela praia, onde arregaçou as calças e tirou os sapatos e as meias. De cigarro na boca entrou mar adentro, molhou-se até aos joelhos e saiu da água directamente para o quiosque onde pediu duas cervejas de lata. “Bem geladas”, disse, tentando imitar um carioca da gema. Sorria, por fim, o escritor. Sorriu com o barulhinho bom da cerveja assim que o dedo abriu a lata. Sorriu ao ver passar um rapaz de bicicleta que puxava uma garota de patins. Sorriu diante de um jogo de vólei de praia entre equipas femininas com calçõezinhos que encolheram na máquina de lavar.)

Se quiser podemos ir até ao Vidigal, um amigo meu vive lá, bebemos mais umas cervejas, vai rolar uma festa lá perto. Tudo tranquilo, malta do bem. Há uns quantos franceses a viver no Vidigal.

(Fez-me a primeira pergunta da noite. Seguiram-se várias enquanto caminhávamos entre o posto 9 e o posto 11.)

“Que festa é essa?”

É uma festa numa casa antiga, uma vista animal, alto jardim, e paga-se para entrar. É organizada por gente de lá, da comunidade, mas é frequentada por muitos estrangeiros.

“Caminhamos?”

Podemos ir de van.

“O que é uma van?”

São veículos para quinze pessoas que por vezes levam vinte. Basta levantar o braço e a van pára para te apanhar ou largar em qualquer lado. Tudo isso com a emoção da velocidade e o privilégio de ouvir as conversas telefónicas dos outros passageiros. Só custa dois reais e trinta. Do Leme à Rocinha. Da Barra ao Centro. E algumas até oferecem ar condicionado.

(Entrámos numa van e Camus quis pagar ao cobrador que, com metade do corpo enfiado na janela, gritava para a calçada: “Vidigal, Rocinha, tem lugar sentado”. O escritor recebeu o troco e pôs-se a olhar pela janela. Decidi calar-me. Tinha prometido que não pediria um autógrafo, que não me armaria em stalker da Feira do Livro, que não declamaria a primeira frase de “O Estrangeiro” nem juntaria as mãos gratas, informando que “A Peste” me levou a ser escritor. A fase em que eu tinha sido grouppie de Camus não era apenas resultado do pretensiosismo do rapazote adolescente que descobrira um escritor. Eu admirava Camus como admirava o Homem-Aranha, o Sherlock Holmes ou algum detective privado numa série de TV. Mais do que escrever, queria ser como Camus – o sucesso precoce e o destino trágico dos ídolos têm um enorme poder de atracção nas mentes e nos corações jovens. Eu queria ser Camus e fumar aqueles cigarros e usar aqueles casacos e aparecer naquelas fotografias a preto e branco.

A van deixou-nos na entrada do Vidigal. Saltámos para a confusão, cheirava a churrasquinho e a gasolina. Expliquei como íamos subir o morro.)

Eu pago o mototáxi. Não se importa de ir sem capacete?

“Quais são as probabilidades de ter um acidente mortal duas vezes?”

Tem razão.

(Cada um saltou para a sua moto e os nossos condutores aceleraram morro acima, desviando-se de outros veículos e animais e pessoas, produzindo em mim – e aposto que em Camus - essa contradição entre o medo da queda e a voragem pela velocidade. Entrámos na rua onde vivia o meu amigo português, comprámos cervejas de garrafa no bar do Carlão e gritei para a janela.)

Rodrigo, Rodrigo, sou eu. Ele deve estar a dormir ou a tomar banho, vamos até ao fim da rua, tem ali um mirante, vai-se passar com a vista.

(O escritor acendeu novo cigarro e afastou um mosquito da cara. Eu disse: “Cuidado com o dengue.” Ele disse: “Não será um problema tendo em conta a minha condição.” E outra vez o silêncio seguido de um sorriso. Ele abriu uma das garrafas, usando o isqueiro para fazer saltar a carica, e bebeu e sorriu outra vez, os seus olhos voando sobre o Rio, sobre as luzes do calçadão que delimitam a costa, sobre a praia branca onde ainda há pouco ele tinha molhado os pés.)

Eu não disse que era uma vista do cacete? Vamos lá ver se o meu mano Rodrigo já abriu a pestana.

(Em pouco tempo chegaram mais pessoas, estrangeiros e locais, uma mistura de idiomas e sotaques, um festa antes da festa, mais cerveja e música, o escritor dançando com uma mulata, ouvindo histórias sobre o tráfico, bebendo mais, ouvindo mais histórias, sempre atento e com a mesma alegria que mostrara no mirante. Eu olhava para ele e era como se visse um menino sábio, uma criatura capaz de deslumbrar-se ainda com tudo mas detentora de clarividência e de paz, como se estivesse drogado ou tivesse super poderes ou fosse exactamente aquilo que eu gostaria de ser. Saímos de casa. Rodrigo não trancou a porta – “Aqui ninguém rouba nada”. O meu amigo portuga, que abandonara o corporate business de S. Paulo para montar a sua micro empresa na favela do Vidigal, começou a chinelar pela calçada e explicou ao escritor a origem do nome da festa onde íamos. “Lamparina. É a festa do Lamparina mas a maioria das pessoas que lá vai não faz ideia de quem era o Lamparina. Um dia foi dormir e não acordou.” O escritor perguntou-lhe a causa da morte. “Olha, porque se cheirava desde os 14 e já tinha uns 40. Mas cheirava como quem fuma cigarros.”

Passámos em frente a um bar – balcão, três mesas e seis cadeiras na rua – e alguém comprou alguma coisa ao mulato com uma bolsinha a tiracolo. O mulato, na sua esquina, era guardado por dois brothers com metralhadoras. O escritor cumprimentou toda a gente, parecia habitante da comunidade, vizinho de longa data. O Rodrigo disse-me: “Este teu amigo é cá um ninja.”

Entrámos na festa com um desconto conseguido pelo Rodrigo, que passou parte da noite a conversar com o escritor e a apresentá-lo aos convivas. Eu perdi-me. Havia muita gente nos dois níveis do jardim. Também me lembro de um longo corredor, com areia e velas, que ia desembocar no banheiro feminino. Encontrei o escritor nesse corredor.)

Não lhe faz confusão estar numa festa, na favela, no meio de gente que podia estar numa festinha em Berlim? Não o faz pensar? Não estou a dizer que está bem ou mal, mas não o faz pensar?

(Eu queria mostrar ao escritor que reflectia sobre as coisas, que me preocupava com a existência dos outros, que tinha interesses. Ele olhou para o lado e uma mulher, negra e magra como uma pantera que faz ginástica, saiu da casa de banho para os seus braços. Deixei-os a sós. E mais uma vez ele sorriu. Sobre a festa posso dizer que tinha muitas mulheres bonitas e bem vestidas e encantadas pela música e pela vista. O escritor dançou, bebeu e flirtou. Já era quase de manhã quando voltei a falar com ele.)

Vou andando.

“Eu vou também.”

(Descemos o Vidigal a pé, a comunidade amanhecia e já cheirava a café e a pão na chapa. Meninas sofisticadas e meninas hippies desciam também, saídas da festa, cruzando-se com o ruído dos mototáxis e com as negras a caminho do trabalho na zona sul. O escritor entrou na primeira van que viu. Descemos na praia de Ipanema quando o sol, da cor da lava, aparecia sobre a pedra do Arpoador. Disse que tinha de ir ao supermercado. O escritor sacou de uns óculos escuros e perguntou: “Está aberto?”)

Está aberto 24 horas por dia. Tenho de comprar pão e água. Não beba água da torneira. Quer dizer, você deve poder beber e comer tudo que nada lhe faz mal. Quer alguma coisa?

(O escritor tinha a serenidade de um guerreiro Jedi. Queria falar com ele sobre as favelas, sobre o Rio, sobre a matéria-prima literária a cada esquina. Queria que ele tivesse orgulho de mim. E foi então que ele falou como se tivesse escutado os meus pensamentos. “Não te preocupes. Gostei muito desta noite. Não te preocupes tanto e com tantas coisas. Eu estou muito bem.” Ele sabia mais que eu, entendia mais que eu, está em algum lugar de lucidez que eu ainda desconheço. Bastou olhar para ele e percebi que não tinha de explicar-lhe nada sobre favelas ou sobre as idiossincrasias do Rio. Ele deslizava acima do meu conhecimento, fluido e silencioso como um jacto telecomandado.)

Podemos ir ali ao corredor dos doces? Tenho uma cena inacreditável para te mostrar. Quando vi isto pela primeira vez os meus olhos quase saltaram como nos desenhos animados. Vê bem isto e tripa. Ovomaltine para barrar no pão. O Brasil no advento da inovação. Felicidade pura e à colherada.

“É isso aí.”

(O escritor abriu o frasco, enfiou o indicador lá dentro, e lambeu-o.)

“É isso aí.”

(E depois voltou a sorrir.)

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Preto, branco e poucos cinzentos



Há cerca de um ano subi a favela do Cantagalo e dei por mim fora de pé, num planeta distante, tão perdido e sem referências que, ingenuamente ou porque não sabia o que dizer, perguntei ao antigo armeiro dos traficantes se o seu ofício de arranjar e limpar armas de bandidos era uma actividade perigosa. Ele olhou para mim como se eu fosse uma criança atrasada mental incapaz de entender o seu mundo e disse: “Moço, eu trabalhava para traficantes e era procurado pela polícia.” O meu interlocutor, de cognome ACME, é hoje um artista plástico que descobriu Jesus, casou, teve filhos e se livrou do vício do crack e de ser fuzilado por um dos maus da fita – contou-me como um traficante não quis acreditar que uma das armas mais caras, que lhe entregara para limpar, já estava escangalhada quando chegou ao seu barraco/oficina. ACME explicou-me ainda que foi preciso sorte e perseverança para convencer o chefe dos bandidos a tirar o dedo do gatilho, convencendo-o de que não era responsável pelo defeito do fuzil. Safou-se mas não foi a única vez que teve uma arma apontada.

Quando visitei o Cantagalo, experimentei cheiros inéditos e um calor opressivo, que escorria das paredes de tijolo como suor numa cela solitária. Tudo era tão novo como estranho e desconfortável e fascinante. Muitas vezes fiquei calado, sem que a minha expressão facial soubesse reagir a histórias como: “Se um moleque rouba roupa do varal leva um tiro na mão dos traficantes.”

Comigo (e com a amiga que me acompanhou nesta viagem) seguiu durante algum tempo um bêbedo que me avisava da merda de cachorro no chão e que me disse: “Isso aqui é ruim de mais, mas isso aqui é bom de mais.” Há pouco tempo, um amigo português, que também vive no Rio, contou-me o que dizia Tom Jobim: “Viver em Nova Iorque é bom, mas é uma merda. Viver no Rio é uma merda, mas é muito bom.”

E este fim-de-semana, lendo um artigo sobre a falta de civismo no trânsito numa rua do chique bairro do Leblon – carros em terceira fila, atropelamentos, flanelinhas (arrumadores) – um taxista entrevistado dizia: “Todos têm razão e ninguém tem razão.”

É o maior lugar-comum sobre o Brasil mas é a verdade: os contrastes aqui são tão intensos como o calor num dia de verão com a humidade a bater no vermelho. Um dia passo-me da cabeça com a burocracia medieval e no outro dia espanto-me com a qualidade de alguns serviços. Um dia oiço na rádio que o estado do Mato Grosso anda a ceifar a floresta sem pejo ou consciência e, no mesmo dia, leio que o estado do Rio de Janeiro vai plantar milhões de árvores até 2016. Uma dia vejo um grupo de crianças miseráveis e meio nuas a pedir na calçada e no mesmo dia estou numa festa com gente que fala francês e que bebe gin Hendrick’s com pepino.

Há aqui uma constante sensação de choque e deslumbramento. De manhã espanto-me com a notícia que na última década foram desviados 720 mil milhões de reais de dinheiro público e de tarde espanto-me com o trabalho comunitário na favela do Cantagalo – workshops de música, a construção de um museu, a solidariedade entre os habitantes desse espaço onde me senti um extraterrestre.

Uma das tendências inevitáveis de quem vive no estrangeiro é comparar o lugar onde está com o lugar de onde veio – fiz isso quando vivi em Nova Iorque ou em Madrid. Faz parte da condição humana. Já ouvi aqui portugueses a queixar-se do Brasil e brasileiros a queixar-se de Portugal. Disse a um amigo que tinha sido mal tratado numa repartição pública e ele, carioca, disse-me que fora enxovalhado no aeroporto da Portela. É muito fácil ceder a esse impulso de comparação, mas começo a perceber que é um exercício ingrato e desgastante.

Um amigo português que vive em Madrid há quase dez anos, mas que está a pensar mudar a sua empresa para São Paulo, disse-me em tempos: “Não é importante ser o mais forte mas o que melhor se adapta.” É isso que tento fazer aqui. Se assim não for, mais vale a pena fazer as malas e voltar para casa dos papás onde tudo é confortável e conhecido.

Ninguém disse que ia ser fácil. Ninguém disse que ia ser apenas sol e meninas bonitas na praia e caipirinhas de tangerina a meio da tarde.

Hoje, um deputado responsável pela investigação das milícias (polícias mafiosos que controlam os serviços ilegais de fornecimento de luz, tv cabo e protecção em algumas favelas), está a caminho da Europa, com a família, a convite da Amnistia Internacional, porque corre risco de vida. Hoje, ouvi a nova música de Marisa Monte e vi cajus frescos numa feira e li um poema de Drummond de Andrade e beijei uma mulher bonita.

Ninguém disse que ia ser fácil, mas já me disseram que, no final, vai valer a pena. E essa é a eterna e a maior esperança do Brasil.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Santíssima trindade sob a influência do calor

Escreve aí no teu bloquinho a minha história. Há coisas que precisam ser ditas e gente jovem para impressionar. Tu metes isto num blog ou num jornal? Podes ligar o gravadorzinho. Depois manda-me o ficheiro de som para guardar nos meus arquivos. Ontem esteve cá a Rolling Stone Brasil e para a semana vou ao Jô Soares. Já visitaste S. Paulo? Ias gostar. E já andaste de helicóptero? Bebes dry martinis? Querias ser tão bem sucedido como eu?

Estás pronto?

Eu tinha chegado ao Rio de Janeiro com a crise a morder-me os calcanhares. Em Portugal não tinha trabalho, voltei a viver com os meus pais, a minha namorada emigrou para Londres e ao fim de uns meses mandou-me um email a dizer que tinha conhecido uma pessoa e que cenas à distância só nos filmes.

Soube que havia aqui emprego e apanhei o avião. Mas as coisas pioraram antes de melhorar. Dividia casa com Wilson, um rockabilly que tomava speed e fazia versões de Sinatra na sua guitarra heavy metal. O apartamento mantinha-se em bom estado porque, por vezes, depois de tomar um speed, ele se punha a fazer a faxina em fast forward enquanto eu espiava o Facebook da galdéria londrina. Fiz uns biscates como designer gráfico e quando o meu pai telefonou e lhe disse:

“Ando a fazer uns bicos para me safar.”

Tive de explicar que aqui “bicos” são biscates. Entre nós esta historieta tem graça, ficava bem numa página de revista. Podes usar. Mas em algum momento o meu pai visualizou a imagem do filho a soprar na gaita de outro homem. E isso não tem piada nenhuma.

Em frente.

Eram tempos de desalento e chovia muito. Um dia o Wilson entrou no meu quarto e disse: “Portuga, quero que você conheça um amigão do peito.” Enchemos a cara de cachaça e fumámos tudo. Eu e o Wilson, porque o convidado, The Show Man, um gadelhudo de túnica, com cara de último dos moicanos, não intoxicava o corpo seco e musculado de mestre de kung fu.
The Show Man vendia sanduíches vegetarianas na praia, dava seminários de pinanço tântrico e tinha máximas pouco originais para todas as ocasiões.

“Escuta o que o teu corpo te segreda.”

Eu não ouvia nada a não ser o zumbido da minha consciência alterada por substâncias várias. Pode ter sido da moca, mas o momento foi místico. Wilson via porno no computador, eu acendia um baseado e The Show Man comia melancia. Levantou um dedo e repetiu várias vezes, criando um mantra:

“Maconha Sexo Melancia.”
“Maconha Sexo Melancia.”
“Maconha Sexo Melancia.”

Escuta, eu nem sou muito espiritual, mas uma pessoa chega a esta terra e sente a força dos morros e da selva e do bafo verde. Fosse o que fosse, aquele mantra mudou a minha vida.

No dia seguinte acordei muito cedo. Fui dar um mergulho e lutar contra as ondas. É o que te digo, há aqui uma cena marada, não é por acaso que há terreiros, pulseirinhas do Bonfim e igrejas em todas as esquinas. Já reparaste na quantidade de autocolantes (eles dizem adesivo) a favor de Jesus Cristo colados em quiosques, portas de barracos e tabliers de taxistas? Há muita gente a explorar a cena mística. É um grande negócio. Maior do que o meu.

Mas adiante, fosse o que fosse, tive uma visão. Pus o plano em marcha. Primeiro tinha de testar o produto. Pedi erva ao Wilson, combinei um chope com uma amiga gótica do Wilson e pus a melancia cortada em cubos – que o Wilson tinha comprado – dentro do frigorífico.

Já estiveste com uma gótica? Pois, eu também gostava de dizer que tudo começou com a prima mais jovenzinha da Malu Mader, mas foi com uma gótica que testei o produto. No entanto, faça-se justiça: ela ficava muito melhor nua do que vestida.

Maconha.

Fumámos um, ligámos as colunas ao computador, começámos a ouvir os instrumentos musicais com mais precisão, percebemos a sensibilidade apurada da pele, o aquecimento dos músculos, a doce tesão do fumo espalhando-se no sangue.

Sexo
Desapertámos botões e forçámos as costuras da roupa, beijámo-nos como se fosse uma viagem numa nave espacial, fornicámos tresloucadamente, depressa e devagar, mais beijos na boca e mãos amarradas.

Melancia
Quando os corpos regressaram à calma, o peito arfando e a cabeça num lugar qualquer, um lugar mais leve, então levantei-me e fui buscar a melancia: a boca ficou fresca, os olhos reagiram, a polpa desfez-se na língua e activou de novo o sangue. Estava fechada a minha peça magistral.

Maconha Sexo Melancia.

Experimentei com outras mulheres antes de fechar um plano de negócio. Projectei workshops, apresentações na televisão, um livro, claro, centros de atendimento espalhados por todo o país, mais tarde pelo mundo, uma rede de pessoas que seguiriam a santíssima trindade do self help para a felicidade.

Maconha Sexo Melancia

Dois anos mais tarde: todas as minhas previsões foram cumpridas. Sou uma história de sucesso, o português que deu certo no sonho brasileiro. Daqui a cem anos haverão de falar de nós.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Ai Phones e outros suspiros

Em tempos escrevi um longo artigo sobre Steve Jobs para uma revista. Das coisas que aprendi, nessas leituras e vídeos e entrevistas de pesquisa, são estas que melhor consigo recordar: as suas experiências com ácidos (open your mind, son), a bandeira de pirata que mandou pôr no topo de um dos edifícios da Apple, uma frase sua, aqui mal citada, que dizia qualquer coisa como: “Sempre admirei as pessoas que, depois do sucesso, arriscam o fracasso. Pessoas como Picasso ou Bob Dylan.” Faz sentido e fica muito bem num discurso motivacional.
Não é difícil perceber o possível encanto da narrativa de Jobs, um inspirador americano, o nerd adoptado que perde no segundo acto (foi despedido da empresa que criou) e que regressa no terceiro acto como um homem diferente e capaz de fechar a epopeia criada por ele mesmo com iPods e iPhones e iPads.

Quando li uma biografia de Jobs, lembro-me do seu espanto quando viu um rato de computador pela primeira vez, antecipando o impacto que isso teria na utilização de computadores pessoais. Um rato, coisa que usamos hoje sem pensar, movendo a mão como quem conduz em piloto automático da casa para o emprego, foi em tempos causa de assombro. Com isto quero dizer que os feitos de Jobs (onde não se inclui a invenção do rato) fazem agora parte do nosso quotidiano automático e facilitado. Operamos um iPhone como passamos o cartão no torniquete do metro ou apertamos um botão num comando e uma televisão se acende para iluminar a sala. Tudo nos parece óbvio e garantido e funciona. Muito obrigado.

Mas:

Testemunhei as reacções à morte de Steve Jobs como habitante recente do Rio de Janeiro. Falou-se do assunto em mesas de botecos, os jornalistas escreveram, os cronistas também, apareceram os grouppies e os opositores da Igreja Universal do Reino de Jobs. Imagino que foi assim em muitas cidades do mundo durante um par de dias. (Já o transtorno Facebookiano da tragédia, com odes, citações e a palavra iSad, foi bem mais dramático, uma onda global de tristeza e elegias.)

O que mais me interessou, enquanto nos botecos se discutia o legado de Jobs, foi reparar nas mãos de meninas bonitas e viajadas escorrendo na face dos seus iPhones, foi perceber como as aplicações são temas de longas e profundas conversas, como mulheres e homens adultos falam igual a adolescentes diante de um videojogo. Trata-se de uma classe em expansão em muitas outras cidades. Mas aqui sinto sempre a presença dos iPhones em meu redor, nos passeios trópico-sofisticados do Leblon, na sala de espera para estrageiros do aeroporto, na praia, na pista de dança do Studio RJ, a fim de iluminar o caminho até ao banheiro, quando alguém precisa de saber um endereço ou comprar bilhetes de cinema ou descobrir qual a capital da Arménia. Há sempre um iPhone prestável.

Já não é apenas um acessório para satisfazer a status anxiety. É um modo de vida, como usar sapatos ou andar de avião. Talvez alguns dos contributos de Jobs para a humanidade não sejam tão espectaculares como a possibilidade de fazer em apenas 10 horas, e pelo céu, o caminho que custou meses a D. João VI e à sua entourage. Seja qual for a real importância de Jobs nos hábitos de parte da humanidade, olhando para as pessoas que conheço e observo nesta cidade onde escolhi viver, percebo que está entre nós: num táxi onde os ocupantes superam o aborrecimento da viagem tacteando o ecrã, quando alguém usa o aparelho para, no Twitter, ver onde há um Blitz (operação Stop) ou na mesa onde os meus amigos saltam entre a conversa, a comida e o iPhone, tal e qual crianças com problemas de atenção.

No fundo, resume-se a isto: sou ainda demasiado novo para lamentar a tecnologia, mas já sou velho suficiente para perceber que aquilo que foi feito para nos obedecer não deveria comandar-nos.

Novos discos a comprar

Marisa Monte: O que você quer ouvir de verdade.

Pedro Luís: Tempo de Menino.





Dois discos para ouvir de ponta a ponta.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Miúda de Ipanema

Não és deste lugar. Chegaste aqui como tantos outros muito antes de ti, uma corrente de gente do teu país que passou a vida a procurar a vida longe do lugar onde nasceu. Não és deste lugar mas gostas de sucos (por vezes ainda dizes sumo) e da forma como o sol sobrevoa o morro Dois Irmãos antes de se afogar no Atlântico. Não és deste lugar mas passas na rua como as mulheres locais – linda, morena, com um balançado só teu. Gostava que fizessem uma música sobre ti, que te cantassem a coragem, a forma como pintas as unhas em dois minutos no banco de trás de um táxi ou como o teu corpo se enlaça no meu quando chega uma frente fria e não te apetece sair da cama por causa da chuva. Mas há coisas que quero guardar para mim. Coisas que jamais caberiam numa música, num poema ou sequer num romance com milhares de páginas. Essas coisas não conto a ninguém, são minhas.

Já foste uma miúda de Cascais, da Graça e da Pena. Já passaste pelos poetas do Bairro Alto e pelos bêbedos do Cais do Sodré. Agora és uma miúda de Ipanema: a mesma menina que fazia ginástica em pequena e que talvez nunca tivesse imaginado que um dia seria inspiração para escritores em dias de chuva. És menina se compras chocolates no quiosque. És mulher em entrevistas de emprego. És menina quando pedalas junto ao mar. És mulher de corpo inteiro quando falas da tua família. És menina quando sentes saudades. És mulher quando avanças pela Visconde de Pirajá e homens e mulheres reparam que passas, que estás aqui, que cruzaste o oceano como tantos outros antes de ti.

Nunca imaginaste que irias dizer geladeira, banheiro, varal, ônibus. Nunca imaginaste que esta seria a tua cidade. Mas esta é agora a tua cidade, o teu bairro, a tua casa. Tudo isto é novo e lindo e por vezes assustador. Gostaria de compor uma música para garantir que tudo vai correr bem, que acendes a Praça General Osório se caminhas para a praia. Mas não sou músico e, nestes dias de chuva, falta-me talento para te cantar. É por isso que me vou levantar assim que passares por aqui. E se não passares, vou para casa, esqueço a música, esqueço a frente fria que faz o Rio parecer Lisboa em Dezembro. Vou para casa: esse lugar em ti onde regresso sempre. Porque aquilo que és não pode ser afectado pelo boletim meteorológico ou pela minha falta de talento para te cantar. Aquilo que és só eu sei. E essa é a minha maior dádiva.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Mulheres



Um tipo entra no Rock in Rio para ver Stevie Wonder e dá-se conta que entrou no Shopping in Rio. Eram mais de 72 marcas a piscar-nos o olho dentro do recinto/parque de diversões: a montanha-russa Chilli Beans (óculos de sol), a roda gigante Itaú (banco), os camarotes Coca-Cola (remédio para a ressaca), a Rua do Rock com mais marcas e voyeurs de montras que Oxford Street. No palco, tocava ainda Ke$ha, cujo uso de um cifrão no nome não chega para desvelar o mau gosto da sua música ao vivo – um sucedâneo de Lady Gaga, um ídolo teen com mais maquilhagem e guarda-roupa do que afinação. Ela gritava: “Let’s party Rio”, e sentia-me numa discoteca ao ar livre, em Benidorm. Ke$ha guinchou o tempo inteiro enquanto os visitantes do Shopping in Rio esperavam em filas para receber um brinde (T-shirts, óculos de sol, poltronas insufláveis) ou avançavam como peregrinos hipnotizados para as barracas de cerveja (Heineken) ou de comida (Bob’s – hambúrgueres de franchize). Rock in Rio: uma espécie de Planet Hollywood + Hard Rock Café + Disneyland. Uma espécie de delírio futurista em que seremos alimentados, vestidos e entretidos por uma mega empresa universal.

O Rock in Rio não deixa de ser um assombroso feito de logística, trabalho, entretenimento e money making – a economia da cidade terá recebido cerca de 350 milhões de euros. Mas o Rock in Rio, que recebeu cem mil pessoas por dia, parece querer reduzir-se ao mantra contemporâneo da felicidade imediata: coma um hambúrguer, compre uma T-shirt, use o seu telefone para fazer fotos, receba coisas grátis e veja alguma celebridade no palco, não importa qual, até pode ser Ke$ha.

Não consigo encontrar apelo, beleza ou sensualidade em Ke$ha ou no Rock in Rio. São robots da adoração colectiva, produtores chatos de $, euros, reais e dólares, são chapa 5, produto mastigado, empacotado e aprovado para todas as idades. A ideia que tudo é comprável e a uniformização das coisas e das pessoas deixa-me aborrecido. Especialmente a uniformização de algumas mulheres. O Rio, capital das mulheres bonitas – olha uma loira alta e descalça num skate, olha uma mulata a cair na água, olha a executiva tão segura nos seus saltos –, o Rio que já criou mais poetas amantes do que qualquer outra cidade, também se vai deixando levar pelas capas das revistas, os vídeos MTV, o Photoshop, a lipoaspiração e o botox. Falo da uniformização dos corpos e das expressões faciais, uma traição à génese e ao milagre deste lugar: a diversidade, a mistura, a criatividade, a possibilidade.

Depois das roliças dos quadros renascentistas, das pin-ups pós II Guerra ou das magrelas com ombros de cabide Calvin Klein, surgiram agora as mulheres Fruta – tão trabalhadas como uma melancia esculpida para efeitos decorativos num buffet de hotel. Podem ter implantes nas mamas e na bunda, podem ter botox em vez de rugas sorridentes, podem ser tão bem desenhadas como uma heroína de BD, podem até vestir-se como Ke$ha, mas arriscam-se a ter o mesmo sabor plástico do Rock in Rio, provocando a mesma sensação descartável, rápida, que não deixa marca.

É por isso que peço a todas as mulheres que acreditem que uma estria, uma mancha, um peito descaído que não se pareça com uma perfeita bola siliconizada, enfim, que muitas das coisas que vocês insistem em eliminar com uma ferocidade castigadora, não vos faz ser menos mulheres do que aquelas que injectam produtos na testa e jejuam e se levantam às cinco da manhã para fazer ioga ashtanga. Acreditem, há mais verdade e tesão numa mulher de corpo vivido do que numa mulher de corpo encomendado.


Texto originalmente publicado no blog Sinusite Crónica.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Afternoon Delight










O arco do espasmo do teu corpo
vai do Rio a Lisboa
e regressa trinta e quatro vezes
dá voltas e voltas
cose-nos as pontas
incendeia toca torce

é mais que música
é euforia desamarrada
chicote da língua e resguardo da palavra

Contratempos e acasos do mercado imobiliário carioca


Era um prédio no Rio de Janeiro mas podia estar nalguma cidade russa que nunca saiu nas notícias da televisão. Os ônibus avançavam em manada pela Avenida Nossa Senhora de Copacabana e faziam estremecer as coisas na calçada: montras de lojas com roupa barata, velhas que lhe pareceram iguais às velhas de um bairro lisboeta, pretos pedalando velozes para entregar encomendas, um pedinte, outro pedinte, um pedinte júnior, cadeiras de plástico amarelo num boteco pé sujo, a porta para as galerias onde deveria encontrar a entrada do prédio. Era estrangeiro mas já aprendera que galerias eram um shopping de outros tempos, outras décadas, lugares de luz morta e muitos espelhos nas paredes. Passou por uma loja de flores: a única coisa bonita que havia naquele túnel. As galerias eram o lugar onde os sonhos com um tumor nos testículos iam finar-se. No entanto, lado a lado, estavam duas promessas de salvação, duas igrejas evangelistas. Uma de cores azuis e outra de cores vermelhas. Benfica – Porto, pensou. TMN e Vodafone. Blackberry e iPhone.

Caminhou para a entrada do prédio. O porteiro lia um tablóide, alguma coisa sobre a Mulher Maçã e mais umas quantas notícias de abusos e estupros. A agenda noticiosa do costume. Nem ergueu o focinho do jornal. Ele entrou no elevador, puxou a grade ferrugenta que guinchou todos os nove andares. Foi uma viagem lenta, com o espectáculo das pastilhas elásticas coladas na parede em movimento e mensagens escritas a vermelho: “Nina boqueteira racista só chupa brancos”. Abriu a porta e, entrando nos corredores brancos de sanatório antigo, pensou nalgum filme de terror que vira na infância. Encontrou o apartamento e bateu na porta. Nada. Rodou a maçaneta e entrou. No lado esquerdo encontrou um banheiro encolhido, onde sexo no duche só seria possível para um casal de contorcionistas bem ensaboados. Depois havia um espaço comum com kitchenete e sala. Uma só janela, ao fundo, tinha vidros martelados, baços como uma tarde de chuva. Ele avançou até ao meio da sala. Uma vez que não era proprietário de móveis, falta de espaço para as suas coisas não seria um problema. Abriu a janela e o estertor do trânsito trepou prédio acima, um desconcerto de escapes e buzinas e motores de camiões. Ouviu uma voz:
“Ainda bem que abriu essa janela. Como é que aguenta este fedor?”
“Que fedor?”
“Só pode estar brincando. Esse cheiro de fraldas para velhos incontinentes.”
“Você é a Letícia? Com quem falei ao telefone para ver a casa?”
“Oi? Fala devagar moço.”
“Eu estou aqui para ver o apartamento.”
“Isso já deu para perceber.”
“E devia falar com uma Letícia, você é a Letícia?”
“Claro que não. Eu lá entraria num apartamento que queria alugar dizendo que cheira a fralda usada de velho.”
“Desculpe, mas como é que a senhora sabe a que cheiram fraldas de velho? Qual é a diferença entre fraldas de velho e de bebé?”
“Você é português, né?”
“Nota-se?”
“Um pouquinho.”
“Piadinhas à parte, qual a diferença entre o cheiro de fraldas para velhos e para bebés?”
“Lá em Portugal você tem parentes mais velhos?”
“Sim.”
“Já foi nesses lugares onde os mais novos botam os mais velhos?”
“Um lar de idosos?”
“Deve ser isso aí. Não conhece o cheiro? O cheiro de fraldas de velhos que ficam vendo TV o dia todo, confundido o enredo da novela das sete com a história da novela das oito? Isso aqui é Copacabana, um gigante lar de idosos. Dizem que é o bairro mais envelhecido do Rio. Nesse apartamento viveu algum velho que esticou o pernil recentemente. Aí a família deu uma limpezazinha e botou o apê para alugar.”
“O seu sotaque é meio estranho. Você é de onde no Brasil?”
“Está-me paquerando portuga? Conversinha de flirt de boteco às dez da manhã num cemitério de velhinhos? Não vem com garfo que hoje é dia de sopa. Mas, vem cá, quero-te falar de coisas mais sérias. Vou-te dar uma dicas para procurar casa no Rio. ”
“Muito obrigado.”
“Tão educado, que bonitinho. O Ubaldo Ribeiro escreveu que os portugueses têm boas bundas, como os forcados, mas esqueceu de dizer que são muito polidos no trato.”
“Está a tentar engatar-me?”
“Oi?”
“Falávamos do mercado imobiliário do Rio.”
“Isso. Está tudo muito caro, esqueça esses bairrinhos perto da praia. Leblon só se tiver disposto a pagar duas vezes mais que o empresário do novo sucesso brasileiro ou alguma vedetinha da MPB. Ipanema esquece, tem mais americanos que a Disney. Só se você fosse viado. Talvez encontrasse um sugar daddy de Ipanema e viveria feliz entre a Farme de Amoedo e as viagens para a Europa.”
“Não sou viado. Mas também não sou homofóbico. Esses comentários são lamentáveis.”
“Está pregando moral e bons costumes, portuga?”
“Não devias ser tão amarga. Quem é que a deixou nesse estado bélico?”
“E você pensa o que, que só porque sou brasileira e você tem um sotaque eu vou dar para você? Mil anos de história e bigodinho safajeste e não sei quê? Tem juízo portuga.”
“Voltemos ao mercado imobiliário. Você está a procurar casa?”
“Faz dois meses. Do Jardim Botânico à Lapa, passando pelo Humaitá, Botafogo e Flamengo. Depois considerei Copacabana e, veja só, acabei aqui, num quarto de geriátricos com um português de bigode. Você quer tomar um chope e eu te conto tudo sobre o mercado imobiliário.”
“Claro, mas não devíamos esperar pela Letícia?”
“Eu deixo um bilhetinho. Tem papel? Aqui vai: Querida Letícia, desculpe mas eu e o português achamos que o alto preço que você pede pelo apê não esconde o cheiro de merda. Especulação faz mal ao coração. Se cuide.”
Eles saíram juntos e desceram no elevador enquanto ele assobiava a música do “Tubarão.” Nas galerias entraram numa das igrejas, ouviram as palavras do pastor. Na rua, assim que passou mais um ônibus truculento, ela disse:
“Queres mesmo ir beber um jola?”
“Não sei, afinal de contas pouco passa das dez da manhã.”
“És uma seca.”
“E tu voltaste a chegar atrasada, se a Letícia tem aparecido antes de ti eu tinha alugado aquele apartamento. Preciso de ti para negociar.”
“Não sobrevivias um dia em Marraqueche.”
“O teu sotaque zuca está a melhorar. Mas ainda vacilas nalgumas coisas.”
“Preferias que fosse brasileira?”
“Para quê ser uma coisa se podes ser duas?”
“Então vamos transar?
“E porque não, afinal, só temos um apartamento para ver ao meio dia.”

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Punk love


Lili era uma menina de faculdade com tatuagens: no gémeo esquerdo (uma trepadeira com flores vermelhas) e nas costas (uma geisha decotada com peito avantajado). Roger era malandro da praia, dizia que tocava numa banda e carburava maconha com o entusiasmo do Santo Ofício acendendo fogueiras. Lili andava de skate, os pés descalços na lixa da prancha e as havaianas nas mãos. Ele, com corpo de capa de Men’s Health, corria sem T-shirt, exibindo a definição da sua anatomia para gringas que lhe compravam roupa, peruas infiéis no terceiro casamento e menininhas deslumbradas diante do poder do sexo com homens mais velhos.

Roger não ia para novo e o seu corpo, apesar do exercício diário, dava os primeiros sinais de decadência: duas cáries, um menisco maltratado por causa das peladinhas, problemas de estômago, uma unha encravada e catarro constante resultado de cigarros, whisky nocturno e do ar condicionado sempre a mil durante todo o ano. Lili, por sua vez, e apesar dos joelhos esfolados em várias quedas de skate, tinha o poder miraculoso das jovens teen: a constante renovação das células da sua beleza. Recuperava das ressacas sem sofrimento, arriscava-se em half pipes, competia com os rapazes na velocidade.

Roger não era homem de uma mulher só. Mas quando conheceu a lisura da barriga e do púbis de Lili, a tendência dela para ler Mônicas e Cebolinhas após um orgasmo, a despreocupação com a integridade do seu corpo, começou a agarrar-se ao vigor daquela mulher com atitude de menina radical inquebrável. Uma deusa dos rolamentos.

Roger foi abandonando todos os casos temporários de cama e as mecenas femininas do seu estilo de vida. Talvez aquilo fosse amor.

Lili apareceu certa tarde com os cotovelos rasgados e um lanho no lábio. Mesmo assim atirou-se para a cama e começou a despir-se, esticando a coluna como os gatos, atiçando a fome de Roger. Ele, em vez de despir a sua sunga gigolô, foi buscar água oxigenada e algodão. Soprou nas feridas e disse: “Você tem que se cuidar.” Ela respondeu: “Não gosta de um pouquinho de dor, não?”, e beliscou-lhe os mamilos.

Roger não quis sexo nesse dia. E sempre que Lili aparecia com mazelas da sua actividade sobre rodas, ele mostrava-se mais enfermeiro que devorador. Foi enchendo o armário da casa de banho com produtos farmacêuticos, analgésicos, gaze, pomadas cicatrizantes. Pedia-lhe: “Por favor, não estrague seu corpo.” Ela respondia: “Deixa de ser bobo, o corpo é para gastar.”´

Roger resolveu que a profilaxia era melhor que os curativos e comprou-lhe um capacete. Depois joelheiras e cotoveleiras. O seu medo era tão grande que lhe ofereceu uma protecção para os dentes. Ela, depois de abrir o presente, disse: “Será que consigo fazer sexo oral com isto?”

Roger andava diferente, mais atencioso e menos cafajeste. Todo ele era cuidado e betadine e protecções almofadadas para a única mulher da sua vida – deixou de atender velhinhas aperaltadas e de usar cartões de crédito de estrangeiras para comprar relógios. Só Lili lhe importava, só Lili ocupava os seus tempos livres. Começou a espiá-la de longe: Lili e os amigos teen em descidas perigosas, Lili e suas amigas em noites de balada, Lili, que aparecia cada vez menos lá em casa, obrigando-o a intensificar as operações de vigilância.

Se ela chegava, Roger apressava-se a investigar o seu corpo, procurando feridas. Ele queria Lili intacta e perfeita, chegou a ligar para os pais dela, um telefonema anónimo alertando para os males do skate. Mas Lili continuava a deslizar no calçadão, ouvindo punk rock no seu mp3, as solas dos pés dando impulso no asfalto, a sua velocidade cheia de curvas e pele morena chamando à atenção dos homens e das mulheres por quem passava. Lili não era só de Roger. O corpo era dela e de quem ela escolhesse. Lili fazia o que bem entendia com as articulações, com a boca, com as pernas que deixaram de enlaçar a cintura de Roger.

Depois Lili foi estudar para a Europa e Roger, como tantos outros cariocas nas estatísticas de atropelamentos, atravessou a rua com o semáforo vermelho. O ônibus, como tantos outros ônibus nas estatísticas cariocas, vinha em excesso de velocidade e indiferente às pessoas que atravessam a rua. Roger foi catapultado alguns metros. Os seus ossos quebraram como galhos num dia de trovoada. As suas vértebras estilhaçaram. O seu porte de macho ficou reduzido a metade. Roger pode ser visto hoje nas ruas da zona sul do Rio de Janeiro. Tem uma crista de duas cores e move-se pela rua, sentado num skate de prancha XXL, com capacete, cotoveleiras e joelheiras, as mãos fazendo as vezes dos pés. Um paraplégico radical. Lili ficou a viver na Europa e largou o skate. Agora é relações públicas de uma marca de roupa e casou-se com um cantor lírico. Roger é conhecido como o punk aleijadinho. Todos os botecos lhe dão chopp grátis. Há quem diga que alguma coisa ainda funciona da cintura para baixo. Ele não gosta de falar disso. Mas tendo em conta a forma como olha para as pernas das mulheres, no rés-do-chão do seu skate, é provável que o ônibus assassino não tenha escangalhado todas as partes importantes do seu corpo.

Texto originalmente publicado no Sinusite Crónica

Switch on Portugal



Fotografia tirada em Santa Teresa, Rio de Janeiro.

Bicicletário carioca


Os pneus rodam pelo calçadão e a música nos auscultadores transforma o passeio num videoclip. Tudo isto podia ser um lugar-comum musicado, um anúncio dos Jogos Olímpicos, com meninas correndo, pedalando e patinando junto ao mar, uma melodia de beleza em movimento e os efeitos especiais da poeira da maresia, dos morros como pano de fundo, da humidade escorrendo das árvores. Começou a primavera a sul do trópico do umbigo do planeta, há gente no areal a meio da manhã, uma água de coco custa quatro reais (‘tá cara pra cacete esta cidade), os painéis publicitários anunciam 24 graus, esta galera anda bem-disposta, de peito feito, salários altos (inflação também) em contra ciclo anímico com a Europa. E isso acentua a sensação de videoclip, uma vez que acabei de chegar ao Rio de Janeiro depois de cruzar, nos últimos anos, a espessura e o ruído da crise portuguesa nos telejornais e nas manifestações e nas conversas de pastelaria. Um dia estou numa cidade que amo – Lisboa –, inquieto como os meus compatriotas, e no dia seguinte estou numa cidade que desejo – Rio – a pedalar numa bicicleta emprestada, MPB sintonizada nos headphones, aproveitando a incredulidade do momento.



Voltar a andar de bicicleta todos os dias, como nas tardes das férias grandes, longas de luz e de eventos heróicos, permitiu-me viver num lugar afastado da crise, recuperando uma liberdade apenas conseguida durantes aqueles três meses de verão, sem escola ou TPC, quando uma bicicleta nos bastava para ir a todo o lado. Nessas aventuras em duas rodas só interessava o entusiasmo das descidas arriscadas, a exploração de novos caminhos, o pneu traseiro derrapando sobre a terra. É assim que me sinto nestes primeiros dias no Rio de Janeiro.
Não esqueço o lugar de onde venho – aliás, sempre que alguém não compreende o que digo e questiona “oi?”, recordo-me que sou português de fonética fodida e vogais fechadas. Não esqueço o que se passa em Portugal. Mas não ser contaminado pela electricidade mediática, não debater o Alberto João Jardim num jantar ou comentar o estilo oratório do ministro das Finanças, é tão bom como andar de bicicleta num videoclip.

Saio da praia e entro nas ruas, aproveitando a largura dos passeios para fazer trajectórias de videojogo ao ritmo da música, desviando-me das pessoas, ignorando semáforos vermelhos, escolhendo uma corcunda da calçada para executar um pequeno salto. Por vezes tenho onde ir, outras vezes avanço nas ruas da cidade, vou mais longe, perco-me na Lagoa, vejo clubes de remo e os prédios da fartura carioca, festas em coberturas e crianças com babás trajadas de branco; atravesso a nuvem de maconha criada pelos fumetas precoces do Posto 9, vou por aí até que seja hora de incendiar a tocha da paz na pedra do Arpoador enquanto o sol desce atrás do morro.
Porque acabo de chegar, ainda não tenho as coisas pegadas a mim, parece que deslizo por tudo com olhos de investigador dos bichos humanos. Daí a sensação de videoclip, mesmo quando vejo pedintes sem pernas ou me contam que os mendigos são afastados da rua com choques eléctricos ou quando o porteiro insiste em abrir-me a porta da garagem, se saio de bicicleta, ainda que lhe tenha dito que não era preciso abandonar a sua secretária, que posso muito bem fazer aquilo sozinho – há aqui um servilismo constante, a clara divisão das classes, a herança da corte portuguesa e da escravatura. Uns servem, outros são servidos. (Muitas vezes chamam-me doutor. Prefiro quando a garçonete da cafetaria Rio-Lisboa diz: “Bom dia, meu anjo? Que vai ser, meu amor?”)

Porque ando de bicicleta todos os dias, porque é o meu principal meio de transporte no Rio, passo por tudo com olhos curiosos, confiando que a velocidade a que viajo me permite ir conhecendo esta cidade. Tudo é ainda cartão postal e alegria de estreante e imagens melhoradas pelo Photoshop das noites de cachaça e chopp. Chegará o dia em que, espero, escreverei sobre o Rio de Janeiro com a mesma segurança e empenho com que escrevi sobre Lisboa. Que falarei da Praça Tiradentes com tanto conhecimento de causa como quando falo do Rossio. Por enquanto, limito-te a viver e a escrever como se montado numa bicicleta, protagonista de um videoclip. Sei que o céu aqui é diferente, que passarei a usar a palavra “malemolência”, que a cerveja está sempre gelada, que há muitos portugueses no Rio, que uso mais o gerúndio, que há muitas mulheres com capacidade para alterar a temperatura de uma sala de espera, que fui recebido com atenção, ternura e uma bicicleta emprestada. Tudo isto é um videoclip com final feliz porque sofro de jet lag existencial e porque, de facto, estou feliz. Haverá dias em que me zangue com o Rio, haverá dias em que voltarei a escrever com fúria ou saudades sobre Portugal. Haverá dias em que ouvirei discos de Amália e em que não me apeteça pegar na bicicleta. Mas isso, pelo menos por agora, não me interessa nada – tal como não me interessa o Alberto João Jardim ou o reality show da TVI. Porque a maior evidência, desde que aqui cheguei, apareceu-me (como é óbvio) através da música e enquanto pedalava: “É melhor ser alegre que ser triste, a alegria é a melhor coisa que existe.”

Texto originalmente publicado no Sinusite Crónica

Terra à vista



Depois de 10 horas de ruído transatlântico – barulho de motores, sonzinho estranho de filme de avião, cintos desapertados antes do tempo –, entro por fim no silêncio de um aeroporto antes do nascer do sol. Não há filas nem crianças aceleradas por Happy Meals nem taxistas gritando propostas para gringos recém-chegados. O céu clareia, mas pouco. O comandante do avião já avisara que o Rio estava coberto por uma peruca gorda de nuvens. O taxista confirma um boletim meteorológico que impede mergulhos na praia e, rodando a chave, dá-me música de rádio. Não toca uma canção de jeito durante todo o percurso – duetos românticos e baladas melosas –, mas o gargarejar do trânsito, tão denso ao raiar da manhã, seria bem pior para quem acabou de chegar, acentuaria a estranheza de estar noutro fuso horário, noutro hemisfério, pronto para iniciar uma vida nesta cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro.

O rádio toca enquanto a paisagem de barracos de tijolo e antenas parabólicas, em dia cinzento com possibilidades de chuva, se prolonga durante quase toda a viagem. Em muitos daqueles barracos estará tocando um rádio a pilhas, um Cd antigo, um iPod ligado a colunas de som. Eles despertam com música, tomam café com música, têm celulares que providenciam música.

Saio do táxi e um bar de sucos na Gávea, onde tomo o primeiro pequeno-almoço, oferece banda sonora. Cruzo a estrada, chego ao apartamento das amigas que me recebem, ainda estremunhadas, e logo escolhem um Cd para tocar oferecendo-me o segundo pequeno-almoço.

Nas primeiras semanas nesta cidade fui recebido por música: o concerto de Roberta Sá e o seu samba com elegância marota em palco; os Primal Scream, no Circo Voador, entre coqueiros e os arcos da Lapa e os arranha-céus espelhados do Centro. O Rio é toda esta mistura: meninas vestidas como londrinas, agarradas ao seu iPhone, moleques negros e magros a pedalar em bicicletas, transportando gelo para as barracas de praia, os Primal Scream a tocar no Circo Voador e lá fora, na confusão descamisada e transpirada da Lapa, travestis e putas e turistas e indígenas hedonistas suando com a batucada. O Rio é o encanto perpétuo de Marisa Monte e o pop cristão do padre Marcelo. O Rio é Chico Buarque e funk de palavras que incentivam à sacanagem com mulheres sem calcinhas (“as preparadas”).

Já ouvi vinis, descobri cantores, fui ler sobre compositores. Há uma banda sonora nesta nova vida. Pedalo pela cidade com a rádio tocando nos headphones. Escuto histórias sobre a escandalosa Angela Rô Rô (Oiçam “É de mais”) ou sobre o gosto de Tim Maia por senhoras prostitutas.

As ruas têm nomes de músicos, o hino do Rio é uma marcha de Carnaval – “Cidade Maravilhosa”, e até o aeroporto onde aterrei tem nome de artista: Tom Jobim.

Depois do ruído aéreo da viagem, depois do silêncio do aeroporto ainda por despertar, entrei no Rio guiado pela música, e sei que esta só poderá ser uma história de amor com banda sonora.