quinta-feira, 31 de maio de 2012

Gloriosa pausa para almoço

Porque nas últimas semanas entrei na reta final do meu livro, descuidei o blog. Mas estou de volta. Fica um pedaço do meu dia carioca, uma espécie de celebração por ter terminado um romance de trezentas e tal páginas. Saravá!







quarta-feira, 30 de maio de 2012

Manifesto pró-grama e anti-relvas


 
O relvas é bicho antigo, escorpião de Alcácer Quibir, e não há herbicida que nos valha.

O relvas é neto do dantas, carrega o gene falhado das gerações bandidas.

O relvas não marca passo, anda para trás.

Não se mate o relvas, não sujemos as mãos, que para meliantes já nos basta o séquito do relvas e ainda apanhamos uma doença ruim.

Mas dispare-se uma pistola de fulminantes, pólvora sem furo de bala, porque o relvas apodrecerá por dentro, sozinho, num lar de idosos de um banqueiro amigo do relvas.

Bang Bang, assuste-se o relvas.

Uma geração que grama com o relvas é uma geração ajaezada para o velório da decência, cavalgada pela mesquinhez, vergastada pela mediocridade.

O relvas é o Mister Burns depois da explosão da central nuclear de Springfield.

O relvas é a centopeia dentro das galochas da criança que vai para a escola.

O relvas é o carro alemão de grande cilindrada, as parcerias público/privadas e as derrapagens orçamentais.

Bang bang, pregue-se um cagaço ao relvas.

O relvas não tem obra feita e mesmo que tivesse não deixaria de ser um relvas.

Por onde o relvas passa, agonizam ervas daninhas e colapsam eucaliptos.

O relvas contradiz o aforismo que garante que o poder é afrodisíaco.

O relvas faz-nos emigrar, faz-nos desesperar, faz-nos desistir.

O relvas é mau para a tosse, dá mau nome à vizinhança, estraga qualquer festa.

Bang Bang, alguém grite, quando o relvas for almoçar ao Eleven.

O relvas deixa comichões no corpo.

O relvas distrai-nos do pôr-do-sol, dos filhos, dos amigos, é tóxico porque acumula nas raízes tudo o que está mal, é uma metáfora parola para décadas de descaso, manipulação e síndrome de porteiro de discoteca.

O relvas é igual a tantos outros relvas. Nem nisso é original.

O relvas dá mau nome à relva, estraga-nos as fantasias campestres como se fosse um empreendimento construído em zona protegida.

O relvas nem se pode fumar porque não dá onda, só dores de cabeça.

Se não joga golf, o relvas devia jogar, porque lhe assentará tão bem como uma condecoração daqui a dez anos, atribuída por um presidente amigo e compincha do partido do relvas.

O relvas é um Sócrates. Um José Sócrates.

O relvas é pernicioso porque nos obriga a escrever manifestos quando podíamos estar a pisar a grama.

O relvas faz-nos preferir a grama.

O relvas prefere a grana.

Portugal, que com todas estas urtigas conseguiu a classificação de país devedor com sintomas de depressão, mas sem guita para a terapia ou comprimidos; Portugal: país exportador de almas esgaçadas, com o rabo preso na europa e o nariz a farejar o atlântico. Portugal de relva seca, cimento armado, centros comerciais recordistas e vira o disco e toca ao mesmo, oh Portugal, ficas mais pequeno, visto de longe, com esse relvas a puxar-te as rédeas, cagando tudo no caminho. Mas um dia, um dia relvas, a grama será mais importante que a grana, e descerão a tua estátua lá na praça da aldeia onde nasceste, e Portugal voltará a ser qualquer coisa mais verde, qualquer coisa com mais esperança e gente limpa.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Um casamento em Paraty, diário de uma viagem com história




Para o Jordi e Maíra


“Qual é a história?”

É isso que te oiço perguntar numa esplanada de Paraty, na noite do teu casamento.

“Qual é a história?”

Não te quis dizer logo qual era a história, além disso, a torpeza da língua cachaceira não permitia grandes eloquências. Mas a história (a minha visão da história) começa há muitos anos, longe do lugar onde conversávamos, distante de Paraty, porto fundado por portugueses em redor de 1600 e onde escolheste casar. Talvez a história pudesse até começar nessas ruas de pedras traiçoeiras e casas tão brancas que podiam estar na costa alentejana.

(Não deixo de pensar como a brancura do casario contrasta com o sofrimento de todos os que passaram ali, desembarcados após meses de viagem desde África (lanhos vermelhos de sangue e ossos forçando a pele), antes de terem um dono e um destino escravo. Nunca mais regressariam a casa. Estavam fodidos de cabo a rabo. Também não deixei de pensar, quando vi as crianças índias de hoje, comendo aquilo que os turistas dispensam nas esplanadas, como são belas as suas peles pintadas contra a alvura da cal, e como são pobres (logo eles, que há séculos sabiam viver da terra e do mar), como os seus genes fazem parte de uma lista muito antiga de fodidos – no Brasil colonial e pós colonial, é tão longa essa lista de fodidos. Há tanta beleza e tanto descaso. Tudo aqui é emocionalmente excessivo.)

Paraty, como tu próprio comentaste naquela noite, é um porto (e ponto) importante na história que quero contar. Mas comecemos, como avisei, bem longe, na Polónia, porque este relato, meu irmão, não é jornalístico ou cronológico. É o relato de alguém que, como tu, pergunta com frequência, ao longo da viagem: “Qual é a história?”

Dizia eu: Polónia, Segunda Guerra Mundial e um escritor, judeu, tímido, que contactava com o mundo a partir de cartas. Bruno Schulz foi levado para o gueto, mas caiu nas graças de um oficial nazi e chegou a pintar as paredes dos quartos dos filhos do seu protetor. Há uma versão comumente aceite sobre a morte de Schulz, embora existam dúvidas sobre o real desenrolar dos eventos. Supostamente, o benfeitor de Schulz teria fuzilado um judeu, que, tal como o escritor, também tinha um guardião nazi. Certa tarde, Schulz ia na rua e, sem aviso prévio, levou um tiro na cabeça. O assassino foi procurar o protetor do morto para lhe dizer: “Tu mataste o meu judeu, agora eu matei o teu.”

Soube tudo isto num ônibus para Paraty, numa sexta-feira de trânsito selvagem e Rodoviária em alvoroço, gente saindo à pressa do Rio de Janeiro, pessoas amachucadas pela semana de trabalho e pelas sovas que, todos os dias, levam nos transportes da cidade: a espera, o bufar dos escapes, a condução letal dos motoristas de ônibus, vans e táxis.

Sabia que a viagem ia ser longa, e mesmo que o modelo do ônibus fosse uma inspiração – chamava-se Marco Polo –, não suspeitava ainda qual seria a história. Nas minhas orelhas, os headphones sussurravam uma voz feminina. Nicole Krauss, escritora americana, falava, num podcast, de Bruno Schulz, dizendo que nunca ninguém esquece o dia em que descobre aquela prosa tão peculiar e fantasista, por vezes filigranada como os brincos de uma minhota. Preparava-me, através da voz de Nicole, para estrear-me na ficção do escritor malogrado. Ela preparava-se para ler um dos seus contos. Pensei se, daqui a vinte anos, quando encarasse o nome “Bruno Schulz”, seria capaz de recordar onde tinha ouvido as suas palavras pela primeira vez – cortando a escuridão do mato que ladeava a estrada, a caminho do teu casamento, num lugar onde nunca estivera antes, antevendo já que, em algum momento durante o fim-de-semana, perguntaria “Qual é a história?”.

O leitor de mp3 estava atafulhado com podcasts para me entreter, mas também para me abstrair do perigo lá fora. Várias vezes fechei os olhos para não perceber como o motorista se aproximava do abismo, fazendo curvas apertadas a alta velocidade. Entretanto, Nicole Krauss falava-me ainda sobre o conto de Schultz, Father’s last escape, comentando o universo obsessivo do escritor: a constante referência à doença prolongada e à morte do pai. Nesse texto, o pai de Schulz, morre vezes sem conta. O escritor ressuscita-o, diz que ele reencarna nas expressões faciais do papel de parede ou que se transforma num caranguejo e aparece durante as refeições da família, sapateando as tenazes no chão da casa. Pressenti, entre uma e outra morte, o conforto da vida familiar e a esperança. Mas, uma e outra vez, é a dor da morte repetida que enche de sangue as palavras de Schulz.

Era um texto bonito e um texto triste, mas era sobre a morte, e ainda que eu fosse a caminho de um casamento (um começo, não um fim), não consegui esquecer o que o José Eduardo Agualusa escreveu sobre ti num dos seus livros:

“Jordi Burch perdeu o pai aos 16 e a mãe aos vinte. Perdeu ainda o mais velho dos dois irmãos. Este somatório de tragédias podia ter feito dele um sujeito cínico, inclinado às sombras, propenso à solidão. Pelo contrário, fortaleceu-o:
— O pior que me podia acontecer, já aconteceu. Agora tenho o direito a ser feliz.”

Confrontado com a obsessão de Schulz, com o constante revisitar da morte do pai, tirei os headphones e pus-me a olhar pela janela. Não sabia de cor toda passagem do livro de Agualusa (tive de procurá-la em casa), mas não esquecera as tuas palavras: “O pior que me podia acontecer, já aconteceu. Agora tenho o direito a ser feliz.” E foi a pensar no nessas palavras, que afastei a impressão desconfortável causada pelas palavras de Schulz.

(“Agora tenho o direito de ser feliz”)

Tu, tal como Schulz, pareces pôr tudo o que tens e o que amas naquilo que fazes, mas, ao contrário de Schulz, e apesar de já teres fotografado miséria, morte e desespero, há em ti, e na forma entusiástica como enfrentas cada história, uma enorme libertação, muito mais do que um peso a carregar ou a revisitação do sofrimento. Tu procuras a luz, a mesma luz de que precisas para fotografar as tuas histórias.

Essa certeza aliviou-me e senti menos receio de um despiste na estrada para Paraty. Tens o direito de ser feliz, como tu próprio disseste. Não era um motorista de ônibus, doido varrido dos carretos, que iria estragar o fim-de-semana com uma tragédia.

“Português entre as vítimas de um despiste de ônibus” não seria a manchete desta história.

Quando a viagem é longa (quase seis horas) e o ar condicionado cria uma atmosfera de shopping dentro do ônibus, há sempre um alívio quando pisamos terra firme e, por fim, a humidade, entranhada de maresia e mato, se pespega na pele como melaço, percorre o nariz, os brônquios e os pulmões, enchendo tudo de possibilidades e esplendor tropical.

Nessa minha primeira noite em Paraty. ficámos até tarde na praça da Matriz, bebericando cachaça e falando desarticuladamente. Demos um abraço. Casavas no dia seguinte. No regresso a casa, as ruas brancas, com janelas coloridas, pareciam-me todas iguais. Dei voltas e voltas. Pensei que ali os bêbedos forasteiros jamais encontrariam suas camas temporárias. Precisei de ajuda para chegar ao destino, ainda que tenha passado várias vezes diante da estalagem sem me dar conta. Tudo piorou quando perguntei a que horas era a cerimónia.

“Dez da manhã”, respondeu alguém cruelmente.

Dormi como uma pedra que se joga num poço. Nem sequer aqueles que engolem indutores de sono se apagam tão completamente. Sonhei com uma ideia para um conto de terror, onde vários amigos se perdiam em Paraty, após uma noite de festa. Não era uma boa ideia. Muito menos seria essa a história.

De manhã, abrindo as janelas e vendo, pela primeira vez, a vila iluminada pelo céu da costa, percebi que não havia mesmo espaço para narrativas sombrias ou personagens desgraçados. Eram nove da manhã e as nuvens, se as havia, teriam absorvido toda a escuridão do Lado Negro da Força. Tudo era luminosidade trespassando corpos, casas e oceanos. Até os saguins que visitaram a mesa do café da manhã, no pátio da estalagem, sabiam disso. O dia era de festa.

O barco que saiu do porto transportava convidados do Rio Grande do Norte, do Ceará, de Pernambuco – uma senhora explicou-me com afinco que o bolo de rolo era património palpável pernambucano. Havia paulistas e cariocas; portugueses e angolanos emigrados no Brasil. Havia portugueses que viajaram de Lisboa e que, em pouco tempo, se sentiram em casa. Havia alemães que, certo e seguro, apanhariam um escaldão durante o passeio de barco. Havia escritores, jornalistas, vários contadores de histórias e um sem fim de fotógrafos. Havia tantos sotaques e maneiras diferentes de dizer as coisas, uma miscigenação que apregoas mas também protagonizas, porque além de português e catalão, o tio da noiva garantiu que eras já brasileiro e nordestino.

E depois há Maíra, a tua mulher. A primeira vez que a vi, numa livraria carioca, dei-me conta, de imediato, do seu sorriso que se estende pelo corpo inteiro. Maíra sorri inteiramente.

Não sei até que ponto, num casal, as coisas em comum são decisivas para o triunfo do amor. Mas Maíra tem, como tu, esse sorriso que é também abraço, um sorriso que começa e acaba com luz – e não falo da alvura impecável dos vossos dentes. Falo da mesma luz que crias e recrias a fim de contar mais uma história. Maíra: a metáfora mais sublime desta viagem transatlântica, a mulher onde, como disse o próprio pai, “se encontra o poder do Brasil, a mistura de três raças”, a maravilha da bagunça genética, acrescento eu agora.

No dia em que deverias receber, Jordi, soubeste dar. Estamos mal habituados contigo. E da tua generosidade, garanto-te, fica algo muito mais marcante e memorável que a prosa de Schulz. Quando, daqui a vinte anos, tropeçar no nome do escritor judeu, saberei onde estava ao escutar as suas palavras pela primeira vez. Mas será a viagem a Paraty, o teu casamento, muito mais que a singularidade do estilo de Schulz, que me farão recordar esses dias. Não o pesar da finitude, mas a alegria da descoberta.

No barco, realizada a cerimónia, os teus convidados saltaram para o mar como moleques em primeiro dia de férias. Com ilhas tropicais ao fundo e balanço marítimo, a composição dos elementos parecia tão magnífica como certos quadros dos mestres: crianças brincando na proa, mulheres enroladas em cangas como princesas egípcias, gente nadando para a praia deserta, o torpor da boa vida, a densidade de tudo o que é efémero afirmando-se no gosto das caipirinhas, nas especiarias da moqueca, nos beijos na boca depois de um mergulho.

Enfrentas o lixo do mundo no teu ofício mas procuras sempre o brilho mais límpido da história, aquilo que acrescenta, não aquilo que subtrai. Talvez por isso sejas uma criatura anacrónica nesta era de apodrecimento jornalístico. Não te vejo, no entanto, amargado, desistente, contaminado pelo facilitismo. Sabes, tão bem como eu, que aqueles que encontram aquilo que amam e fazem disso a sua vida, são privilegiados. Há quem transforme essa dádiva em arrogância. Para ti, é uma graça, e por isso o dia do casamento foi tão fiel a tudo aquilo que tens feito. Um dia bonito, num lugar magnético, com centenas e centenas de histórias para contar entre as pessoas que ali estavam. O angolano que, num sotaque tão fragante de mangueiras e vogais abertas, nos alertou: “Comes uma coisa que gostas e dizes ‘Soube-me bem. Aqui no Brasil ninguém percebe.” A portuguesa que, em noite de lua cheia, confessou que a sua primeira palavra não foi ‘mãe’, ‘pai’ e muito menos ‘escanifobético’, mas sim ‘lua’. O repórter brasileiro que, com a mestria de um Truman Capote tropical (e bem mais viril) me manteve preso na lâmina do seu relato, contando-me sobre a investigação de um homicídio que saiu nas notícias.

Se, como afirma um escritor americano que tanto gosta de Portugal, as boas histórias só aparecem a quem sabe contá-las, tu és a prova mais concreta dessa verdade. Eu regressei de Paraty, do teu casamento, ainda mais rendido ao milagre redentor da beleza, esperançoso nos avanços da humanidade, capaz de escrever uma triologia de romances e cinco odes triunfais. Cheguei ao Rio atropelado por cinco horas de ônibus e em estado de ressaca acumulada. Mas cheguei carregado de histórias.

Qual é, então, a história, Jordi?

É tão simples, a sério, tantos quilómetros viajados para te dizer somente isto: é uma história de amor. Mas isso, meu irmão, tu sabias desde o princípio.