terça-feira, 13 de agosto de 2013

Feliz Aniversário





Querida Mãe,

Começo por dizer-te que estas manhãs do inverno carioca, de tão alvas e balneares, me recordam algum tempo indefinido e remoto, manhãs em que me levavas ao pão, pela calçada branca do bairro, ou entrávamos no comboio a caminho de Lisboa para fazer algo importante, como levar um brinquedo lesionado ao Hospital dos Bonecos ou comer chocolates nos intervalos das matinés no Cinema Condes. Já sabes que me restam poucas memórias da nossa coexistência no planeta, mas de cada vez que algo nesta cidade - o cheiro das ameixas, o som da bicicleta, a areia nos pés - me atira para esse passado sem cronologia precisa, é contigo que estou. E há sempre uma sensação de tranquilidade, como se fossemos os primeiros a chegar à praia em dia de maré vazia, senhores únicos da frescura que só se encontra nas manhãs de céu limpo e na água pura.

Há uns anos, o teu filho mais velho disse-me: "Ligamos um ao outro no dia em que a mãe morreu, mas devíamos ligar no dia em que ela nasceu". E assim passámos a fazer.

Sou hoje mais velho do que alguma vez foste. Fui-me escavacando, enrijecendo, derretendo, provando a vida à dentada e mordendo a língua nas tentativas múltiplas. Preferi o Lado Luminoso da Força, mas visitei - com mais frequência do que gostaria - o Lado Malvado. E aquilo que durante muitos anos foi a tua perda e a tua ausência, essa amputação perene em mim e as suas dores fantasma, foi encolhendo, perdendo espaço para todas as memórias, reais e imaginadas, que disparam se por acaso mergulho, bem cedo, no posto 11, e sinto que estou numa praia algarvia durante as mais longas Férias Grandes, sabendo que serás, na areia, admiradora dos meus feitos e guardiã de todas as sandes mistas e pacotes de sumo que devorarei enquanto tento recuperar o fôlego e me secas o cabelo com a toalha.  

Para ser mais preciso, e honesto, posso dizer-te que, nos últimos anos, tu foste sendo mais mãe e eu menos menino órfão.

Não vale a pena mentir-te, há ainda uma revolta inusitada no meu metabolismo, uma violência contra os erros do mundo e as doenças mortais. Sou um Hulk trinca-espinhas, amansado pela inevitabilidade do efeito do tempo sobre a biologia. E pelo amor.

Continuo, no entanto, a ser o mesmo palhaço que inventava teatrinhos para te impressionar - e para impressionar toda a gente. Continuo disparatado, trapalhão, praticante assíduo do beicinho e do "O que é que eu fiz?" Continuo a ser mais alegre do que triste, rápido na bicicleta e tão pro a fazer carreirinhas nas ondas cariocas como era nas vagas da praia do Guincho.

Talvez tenhas notado, ao longo desta carta, que estou bem disposto. É que esta manhã lembrei-me do teu aniversário, pouco depois do raiar do dia e, em vez daquela tristeza do princípio dos tempos que atravessava, sem aviso, o meu olhar, e depois desaparecia por largas temporadas, esqueci a melacolia e fui correr na orla, cruzando-me com bebés, meninas bonitas e um alto astral cósmico. Mergulhei. Pedalei descalço. Comprei pão quente. Lavei os pés de areia antes de entrar em casa. Bebi chá gelado. Trouxe o cão comigo para o trabalho. Dei-lhe beijinhos na cabeça. Vi passar o Sacolão, a Kombi que anuncia fruta pelo altifalante. Subi a rua assobiando o Summertime.

Está um dia lindo.

E era isso mesmo que te queria dizer hoje, que está um dia lindo para se fazer anos, porque a verdade é que nunca conversámos, nunca tivemos, pelo menos um com o outro, o consolo e a felicidade de partilhar as pequenas, mas essencialmente boas, coisas de todos os dias, como dois adultos que entendem a dádiva de estarem vivos.

Por exemplo, e sem fazer promessas para não te entusiasmares em demasia: hoje já não me parece piegas, ou inapropriado, dar o teu nome a uma filha minha. Acho apenas que é bonito, só isso, bonito - bonito como esta manhã, a manhã do teu aniversário.

H.









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