segunda-feira, 29 de julho de 2013

Geração Mutilada

Texto do cineasta António-Pedro Vasconcelos, para a revista Ler, sobre Enquanto Lisboa arde o Rio de Janeiro pega fogo, aqui publicado na íntegra.


Já apresentei vários romances de estreia de jovens escritores, de outros com alguma obra feita, mas também de autores mais velhos do que eu, com uma longa lista de livros para trás, como esse extraordinário “fabro” da língua que é Rentes de Carvalho.

Confesso que me sinto sempre lisonjeado (quando os livros são bons, como tem sido sempre o caso, e mesmo excelentes, como o livro que vou hoje apresentar), mas também perplexo. Pergunto-me sempre: porquê eu?

É verdade que já publiquei livros (mesmo se nenhum romance), que escrevo com frequência (não tanto como gostava) em jornais e revistas, que já fiz crítica de romances (e prefácios a livros que amo e que ajudei a publicar, como foi o caso do “São Paulo” e de “O Penitente”, ambos de Teixeira de Pascoaes, da melhor prosa que se escreveu em Portugal no século passado), mas continuo sempre a não perceber porque me dão a honra de me escolher para apresentar romances. Porquê eu?

Talvez porque sou, também eu, através dos filmes que faço, um autor que acredita na função catártica da ficção, e porque os romances que me pedem para apresentar são sempre de escritores, velhos ou novos, que continuam a acreditar também eles (contra os efeitos devastadores de uma certa “modernidade” que trabalha contra o que é desde sempre a matriz da nossa cultura ocidental), continuamos a acreditar, dizia eu, no desejo que alguns seres inquietos sentem de contar histórias e de ter alguém que as queira ouvir, na necessidade que todos temos de magia e de ilusão, na vontade secreta que temos de acreditar que o mundo pode ser como nos romances: lógico e com sentido. E porque, como disse Eliot, “Human kind can’t bear too much reality”.

Mas a apresentação deste terceiro romance do Hugo Gonçalves, “Enquanto Lisboa arde, o Rio de Janeiro pega fogo”, tem para mim um significado especial e honra-me muito que ele se tenha lembrado de mim. Vou ter que explicar porquê. Para além de ser um grande romance, e a revelação (ou a consagração, como quiserem) de um fantástico escritor, há toda uma história pessoal à volta do Hugo, com vários e curiosos episódios, que não resisto a contar.

Primeiro, o Hugo faz parte de um trio, para mim indissociável, de jovens ficcionistas (todos da idade do meu filho mais novo), que eu tive a felicidade de conhecer em circunstâncias diversas e que me é grato, como disse, evocar aqui.

O Hugo viveu em Nova Iorque no princípio do novo milénio (que, historicamente, começou no 11 de Setembro), onde, durante dois anos, conviveu com dois amigos, o João Tordo e o Tiago Santos, trabalhando todos eles em restaurantes, ao mesmo tempo que frequentavam cursos de escrita criativa. Eu não conhecia nenhum deles, a não ser o João Tordo, porque conhecia a mãe, e o devo ter visto quando era bébé. Não conhecia o Hugo, mas vim a saber mais tarde que o meu filho Diogo o conhecia (tinham jogado futebol juntos), e, finalmente, desconhecia por completo a existência do Tiago.

A verdade é que um dia em que eu andava à procura de alguém para escrever comigo o script do que viria a ser o meu filme “Call Girl”, um ex-aluno meu, apresentou-me o Tiago como sendo um talentoso e promissor argumentista. E provou-se rapidamente que era verdade. Ele deu-me a ler um script original que tinha escrito em Nova Iorque, e foi o bastante para lhe propor trabalhar comigo.

Foi o começo de uma frutuosa relação. Vou começar dentro de dias a filmar o que será o nosso terceiro filme em conjunto - um record.

Sensivelmente pela mesma altura, recebi um email do João Tordo a pedir-me para apresentar o seu romance de estreia, “O livro dos homens sem luz”, uma proposta que me surpreendeu. Porquê eu? Respondi-lhe o que respondo a toda a gente: manda-me o livro, eu leio e, se gostar, terei todo o gosto em apresentá-lo. Será mesmo uma honra. Ao fim de umas dezenas de páginas, percebi que havia ali um grande escritor – coisa que a crítica, sempre cautelosa, só descobriu quando ele ganhou o Prémio Pessoa… Mas adiante.

Faltava-me o Hugo, de quem tinha lido um primeiro romance, “O Maior Espectáculo do Mundo”, a que se seguiu “O Coração dos Homens”, romances com um lado de premonição aterradora sobre os mecanismos do poder e do medo, uma espécie de antecipação científica, mas que me deixaram à espera do que viria a seguir.

Quando finalmente o conheci, soube que tinha andado por Madrid e que depois partiu para o Rio de Janeiro, a tentar fugir aos horizontes mesquinhos da Pátria. E, de passagem por Lisboa, onde o conheci, tive oportunidade de acompanhar uns documentários que fez para a televisão e, sobretudo, uma crónica diária no jornal I, que achei brilhantes pela vivacidade, espírito aberto e pertinência. E disse-lho, com sinceridade e admiração. Depois, perdi-lhe o rasto. Até hoje.

Eu sei que é dele e do seu fantástico romance que é suposto eu falar. Mas não resisto a contar ainda uma pequena anedota sobre este trio.

Quando pedi ao Tiago para escrever o argumento do que viria a ser “A Bela e o Paparazzo”, estava longe de imaginar que ele iria introduzir no filme um trio de amigos que viviam juntos na mesma casa do protagonista, a que ele chamou João, como o João Tordo. Foi então que lhe sugeri que os outros se chamassem Hugo, como o Hugo Gonçalves, e Tiago como ele, para levar o private joke até ao fim.

A verdade, como vêm, é que tudo me liga, portanto, a este trio de jovens ficcionistas - talvez o trio mais brilhante que Portugal produziu na sua geração, e que ganharam muito seguramente em ter ido espairecer na idade certa e aprender umas coisitas sobre a escrita de ficção na pátria dos story tellers.

Mas quando aceitei o convite a minha apresentação. Com uma nota: quando, ao fim de uns capítulos, lhe confirmei, a ele e à Maria do Rosário Pedreira, que me sentia muito honrado pelo convite, não me dei conta de que me iria meter num enorme embaraço. Primeiro, porque o livro, à medida que o ia lendo, ia ganhando consistência, ia revelando página a página um grande escritor, que não hesita em acumular histórias, intrigas, personagens e peripécias, sem nunca perder o fio à meada, como aqueles malabaristas que atiram cada vez mais tacos ao ar sem deixar cair nenhum. E eu corria, como estou a correr, o risco de ficar aquém do livro que vão ler.

Depois, porque estava a preparar um filme, o terceiro escrito pelo seu amigo Tiago Santos, e, na minha cabeça, os meus personagens estavam sempre a interferir com os dele, a querer entrar na história e várias vezes tive que parar ler para os mandar sair dali!

Garanto-vos que não é fácil ler um romance quando se está a preparar um filme. Como um romance, um filme é um trabalho obsessivo e absorvente, e eu calculo que o romancista necessite da mesma concentração que o argumentista e o cineasta - que, para fazer um bom trabalho, como eu sempre digo, tem que adormecer e acordar com os seus personagens. E eu, durante os dias que levei a ler o romance, adormecia com os personagens do Hugo, e acordava com os meus.

Mas falemos então do livro, depois desta longa divagação. O que primeiro nos surpreende é a maturidade narrativa de um autor de 37 anos, uma prosa por vezes tão torrencial como a lama que, no fim do livro,  invade o morro e leva tudo à sua frente na enxurrada, uma sabedoria precoce, feita de experiência e imaginação, uma capacidade de criar personagens sempre enriquecidos com uma biografia, a lição aprendida com os mestres do Canon ocidental, de que fala Bloom, e que nos ensina que a arte de contar histórias é a arte de criar sempre novas peripécias, que põem à prova os personagens, uma tradição herdada da narração oral e do folhetim, que se foi apurando de Homero a Dickens; e, enfim, essa capacidade de nos envolver, que é marca dos grandes escritores, de nos fazer acreditar na história que o autor nos está a contar e de nos pôr do lado do seu protagonista: um jovem português acossado, que foge de Portugal para escapar à perseguição impiedosa de um gangster vingativo, e que vai encontrar no Rio de Janeiro um inimigo mais feroz que o obriga a fugir, a refugiar-se, a viver novamente acossado. E que acaba por ser recambiado para Portugal, depois de perder uma orelha, como Van Gogh.

A história é tão verídica na sua extravagância que, mal acabei de a ler, a primeira coisa que fiz foi verificar se o Hugo continuava com os dois apêndices de cada lado da cara.

E este insólito e inesperado acidente que ocorre no declinar da história, ajudou-me a perceber de que nos fala o livro. “Enquanto Lisboa arde, o Rio de Janeiro pega fogo” fala-nos de uma mutilação. Ou de várias mutilações, que concorrem, em sentido real ou figurado, para nos dar o sentimento de uma geração mutilada – a dele - a quem cortaram as asas.

De facto, o protagonista perde a mãe muito cedo (primeira e brutal mutilação, de que o autor nos fala ao longo de todo o livro), é obrigado a fugir da Pátria – outra perda, outra mutilação – por despreocupação e gentileza, esses pecados fatais da juventude de que falava Rimbaud; no Brasil é envolvido numa história de vingança, e vítima de uma feroz perseguição que o priva da sua liberdade (outra mutilação), vê partir para Portugal a sua paixão – Margot – (querem pior mutilação para um jovem do que a perda do primeiro grande amor?), perde a bicicleta que, para ele, significava a liberdade, perde o livro em que trabalhou durante anos e o que outro que estava a escrever; é preso, perde a liberdade de ficar no Brasil, perde o dinheiro que tinha deixado em Portugal. E, por isso, quando perde a orelha, num desabamento de terras que parece um dilúvio bíblico, parece-nos que, de todas, essa é a menos dolorosa das mutilações.

Mas a pior mutilação, a que percorre todo o livro, é a perda de horizontes, um mundo onde só o presente conta, onde o passado parece um pesadelo absurdo de esperanças e medos sem futuro, e onde nada conta para além da sobrevivência e do prazer.

No meio desse vazio existencial, o protagonista agarra-se a três coisas - três bóias com que espera salvar-se: Margot, a escrita de um romance e uma bicicleta. Ou seja, o essencial: o amor, a ficção e a liberdade.
O que o impede de soçobrar é que ele recomeça a cada mutilação, como as cobras que mudam de pele. Com uma mestria rara, o Hugo diz-nos, nas últimas 18 linhas do livro, que tudo pode sempre recomeçar. Que tudo se pode recuperar sobre outra forma, que o importante é aprender a ser céptico sem ser amargo, a ser lúcido sem ser cínico, a relativizar os julgamentos morais sobre os outros sem ser complacente com a História, a manter-se disponível para a novidade e para a aventura.

No final, devolvido a Portugal e a Lisboa (uma Lisboa, como ele diz, romantizada pela saudade), uma Lisboa que ele ama com a mesma intensidade com que ama o Rio de Janeiro, com as suas fantásticas contradições (leia-se o brilhante capítulo RJ-LX), no final, dizia eu, em poucas linhas (18, mais exactamente), derrotado, mutilado, céptico (“neste momento a verdade não faz parte dos meus planos”), sem projecto e sem destino, o protagonista, num ápice (são 18 linhas, repito!) abre-se novamente à possibilidade do amor e da escrita.

Só lhe falta encontrar uma nova bicicleta. Mas eu diria que das três perdas (um livro, uma paixão e uma bicicleta), a última é, talvez, a mais fácil de voltar a encontrar.


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