segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Punk love


Lili era uma menina de faculdade com tatuagens: no gémeo esquerdo (uma trepadeira com flores vermelhas) e nas costas (uma geisha decotada com peito avantajado). Roger era malandro da praia, dizia que tocava numa banda e carburava maconha com o entusiasmo do Santo Ofício acendendo fogueiras. Lili andava de skate, os pés descalços na lixa da prancha e as havaianas nas mãos. Ele, com corpo de capa de Men’s Health, corria sem T-shirt, exibindo a definição da sua anatomia para gringas que lhe compravam roupa, peruas infiéis no terceiro casamento e menininhas deslumbradas diante do poder do sexo com homens mais velhos.

Roger não ia para novo e o seu corpo, apesar do exercício diário, dava os primeiros sinais de decadência: duas cáries, um menisco maltratado por causa das peladinhas, problemas de estômago, uma unha encravada e catarro constante resultado de cigarros, whisky nocturno e do ar condicionado sempre a mil durante todo o ano. Lili, por sua vez, e apesar dos joelhos esfolados em várias quedas de skate, tinha o poder miraculoso das jovens teen: a constante renovação das células da sua beleza. Recuperava das ressacas sem sofrimento, arriscava-se em half pipes, competia com os rapazes na velocidade.

Roger não era homem de uma mulher só. Mas quando conheceu a lisura da barriga e do púbis de Lili, a tendência dela para ler Mônicas e Cebolinhas após um orgasmo, a despreocupação com a integridade do seu corpo, começou a agarrar-se ao vigor daquela mulher com atitude de menina radical inquebrável. Uma deusa dos rolamentos.

Roger foi abandonando todos os casos temporários de cama e as mecenas femininas do seu estilo de vida. Talvez aquilo fosse amor.

Lili apareceu certa tarde com os cotovelos rasgados e um lanho no lábio. Mesmo assim atirou-se para a cama e começou a despir-se, esticando a coluna como os gatos, atiçando a fome de Roger. Ele, em vez de despir a sua sunga gigolô, foi buscar água oxigenada e algodão. Soprou nas feridas e disse: “Você tem que se cuidar.” Ela respondeu: “Não gosta de um pouquinho de dor, não?”, e beliscou-lhe os mamilos.

Roger não quis sexo nesse dia. E sempre que Lili aparecia com mazelas da sua actividade sobre rodas, ele mostrava-se mais enfermeiro que devorador. Foi enchendo o armário da casa de banho com produtos farmacêuticos, analgésicos, gaze, pomadas cicatrizantes. Pedia-lhe: “Por favor, não estrague seu corpo.” Ela respondia: “Deixa de ser bobo, o corpo é para gastar.”´

Roger resolveu que a profilaxia era melhor que os curativos e comprou-lhe um capacete. Depois joelheiras e cotoveleiras. O seu medo era tão grande que lhe ofereceu uma protecção para os dentes. Ela, depois de abrir o presente, disse: “Será que consigo fazer sexo oral com isto?”

Roger andava diferente, mais atencioso e menos cafajeste. Todo ele era cuidado e betadine e protecções almofadadas para a única mulher da sua vida – deixou de atender velhinhas aperaltadas e de usar cartões de crédito de estrangeiras para comprar relógios. Só Lili lhe importava, só Lili ocupava os seus tempos livres. Começou a espiá-la de longe: Lili e os amigos teen em descidas perigosas, Lili e suas amigas em noites de balada, Lili, que aparecia cada vez menos lá em casa, obrigando-o a intensificar as operações de vigilância.

Se ela chegava, Roger apressava-se a investigar o seu corpo, procurando feridas. Ele queria Lili intacta e perfeita, chegou a ligar para os pais dela, um telefonema anónimo alertando para os males do skate. Mas Lili continuava a deslizar no calçadão, ouvindo punk rock no seu mp3, as solas dos pés dando impulso no asfalto, a sua velocidade cheia de curvas e pele morena chamando à atenção dos homens e das mulheres por quem passava. Lili não era só de Roger. O corpo era dela e de quem ela escolhesse. Lili fazia o que bem entendia com as articulações, com a boca, com as pernas que deixaram de enlaçar a cintura de Roger.

Depois Lili foi estudar para a Europa e Roger, como tantos outros cariocas nas estatísticas de atropelamentos, atravessou a rua com o semáforo vermelho. O ônibus, como tantos outros ônibus nas estatísticas cariocas, vinha em excesso de velocidade e indiferente às pessoas que atravessam a rua. Roger foi catapultado alguns metros. Os seus ossos quebraram como galhos num dia de trovoada. As suas vértebras estilhaçaram. O seu porte de macho ficou reduzido a metade. Roger pode ser visto hoje nas ruas da zona sul do Rio de Janeiro. Tem uma crista de duas cores e move-se pela rua, sentado num skate de prancha XXL, com capacete, cotoveleiras e joelheiras, as mãos fazendo as vezes dos pés. Um paraplégico radical. Lili ficou a viver na Europa e largou o skate. Agora é relações públicas de uma marca de roupa e casou-se com um cantor lírico. Roger é conhecido como o punk aleijadinho. Todos os botecos lhe dão chopp grátis. Há quem diga que alguma coisa ainda funciona da cintura para baixo. Ele não gosta de falar disso. Mas tendo em conta a forma como olha para as pernas das mulheres, no rés-do-chão do seu skate, é provável que o ônibus assassino não tenha escangalhado todas as partes importantes do seu corpo.

Texto originalmente publicado no Sinusite Crónica

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