quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Papai Noel deu sorte

Domingo de chuva num décimo segundo andar e, lá fora, as decorações precoces de Natal ficam distorcidas por causa da água nas janelas. Dia espesso com luzinhas a piscar nostalgia. No outro lado da rua, o Shopping da Gávea emitia o mesmo burburinho que começa a sentir-se em cidades de todo o mundo por esta altura do ano. Também aqui se inaugura uma árvore gigante com direito a festa e romaria. É no meio da Lagoa e podia ser a nave espacial do Homem de Ferro. Já reparei nos supermercados com cartazes de duendes e renas. Já estranhei o bafo quente das noites enquanto pinheiros iluminados brilham nos apartamentos cariocas. Não há aqui memórias de cheiro a pinhas, frio nos dedos quando se vai fumar um cigarro após a ceia, ruas nubladas pelo fumo das lareiras.

É domingo de chuva e, como se fosse visitada pelo fantasma do Natal passado, ela volta a contar a história do Papai Noel – já o tinha feito em Lisboa, já o fez no Rio. No início da carreira, ela trabalhava numa agência de publicidade. Um dos clientes, uma marca de lingerie, apreciava o arrojo e a polémica. Decidiu que queria fotografar um Papai Noel rodeado de gostosonas em trajes menores. Ela tinha como missão encontrar o Papai Noel mais vagabundo, desdentado, bebum, que só existe nos filmes ou em certos lugares do Brasil.

Depois de pôr anúncios nos jornais e fazer entrevistas a candidatos, encontrou o seu Papai Noel desgraçado, fodido e com má sorte genética. Trabalhava num shopping lá na Casa da Desgraça e a perspectiva de passar um dia rodeado de mulheres jovens e bonitas, meio despidas, e ainda ser pago por isso, era suficiente para dizer que sim, assinar o contrato, e aparecer no estúdio.

Tudo corria bem. O cliente gostou, a campanha estava a ser um sucesso, o Papai Noel deu sorte e tinha guita no bolso para pintar a casa, comprar uma TV ou espatifar tudo no boteco.

Antes do Natal ela começou a receber telefonemas do Papai Noel: os outdoors estavam por todo o lado, o centro comercial despediu-o por razões de conduta moral, os vizinhos não paravam de fazer piadas, as mães não queriam os filhos no colo do Papai Noel tarado. Não tinha trabalho. Disse: “Você desgraçou a minha vida.”

Os fantasmas do passado andam sempre connosco, seja na praia de Ipanema ou na casa da família portuguesa, onde o Natal é frio que dói mas podemos aquecer-nos no colo daqueles que são nossos desde nascença.

No final da tarde, já de saída, reparei no presépio da portaria do prédio. Além do burro e da vaca, um elefante com a tromba ao alto velava o Menino Jesus.

Já aceitei que agora o Natal será outra coisa. Um Papai Noel one hit wonder ou um Menino Jesus versão safari serão tão normais como as rabanadas da tia Albertina ou as crianças da família a abrir os presentes antes da hora.

Ela agora também é a minha família. Pela segunda vez consecutiva passarei a ceia de Natal em sua casa. Vou pedir-lhe que volte a contar a história do Papai Noel: é muitas vezes na repetição que encontramos o melhor dos consolos, o regresso a casa quando estamos longe.

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