Domingo de chuva num décimo segundo andar e, lá fora, as decorações precoces de Natal ficam distorcidas por causa da água nas janelas. Dia espesso com luzinhas a piscar nostalgia. No outro lado da rua, o Shopping da Gávea emitia o mesmo burburinho que começa a sentir-se em cidades de todo o mundo por esta altura do ano. Também aqui se inaugura uma árvore gigante com direito a festa e romaria. É no meio da Lagoa e podia ser a nave espacial do Homem de Ferro. Já reparei nos supermercados com cartazes de duendes e renas. Já estranhei o bafo quente das noites enquanto pinheiros iluminados brilham nos apartamentos cariocas. Não há aqui memórias de cheiro a pinhas, frio nos dedos quando se vai fumar um cigarro após a ceia, ruas nubladas pelo fumo das lareiras.
É domingo de chuva e, como se fosse visitada pelo fantasma do Natal passado, ela volta a contar a história do Papai Noel – já o tinha feito em Lisboa, já o fez no Rio. No início da carreira, ela trabalhava numa agência de publicidade. Um dos clientes, uma marca de lingerie, apreciava o arrojo e a polémica. Decidiu que queria fotografar um Papai Noel rodeado de gostosonas em trajes menores. Ela tinha como missão encontrar o Papai Noel mais vagabundo, desdentado, bebum, que só existe nos filmes ou em certos lugares do Brasil.
Depois de pôr anúncios nos jornais e fazer entrevistas a candidatos, encontrou o seu Papai Noel desgraçado, fodido e com má sorte genética. Trabalhava num shopping lá na Casa da Desgraça e a perspectiva de passar um dia rodeado de mulheres jovens e bonitas, meio despidas, e ainda ser pago por isso, era suficiente para dizer que sim, assinar o contrato, e aparecer no estúdio.
Tudo corria bem. O cliente gostou, a campanha estava a ser um sucesso, o Papai Noel deu sorte e tinha guita no bolso para pintar a casa, comprar uma TV ou espatifar tudo no boteco.
Antes do Natal ela começou a receber telefonemas do Papai Noel: os outdoors estavam por todo o lado, o centro comercial despediu-o por razões de conduta moral, os vizinhos não paravam de fazer piadas, as mães não queriam os filhos no colo do Papai Noel tarado. Não tinha trabalho. Disse: “Você desgraçou a minha vida.”
Os fantasmas do passado andam sempre connosco, seja na praia de Ipanema ou na casa da família portuguesa, onde o Natal é frio que dói mas podemos aquecer-nos no colo daqueles que são nossos desde nascença.
No final da tarde, já de saída, reparei no presépio da portaria do prédio. Além do burro e da vaca, um elefante com a tromba ao alto velava o Menino Jesus.
Já aceitei que agora o Natal será outra coisa. Um Papai Noel one hit wonder ou um Menino Jesus versão safari serão tão normais como as rabanadas da tia Albertina ou as crianças da família a abrir os presentes antes da hora.
Ela agora também é a minha família. Pela segunda vez consecutiva passarei a ceia de Natal em sua casa. Vou pedir-lhe que volte a contar a história do Papai Noel: é muitas vezes na repetição que encontramos o melhor dos consolos, o regresso a casa quando estamos longe.
Sem comentários:
Enviar um comentário