segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Miúda de Ipanema

Não és deste lugar. Chegaste aqui como tantos outros muito antes de ti, uma corrente de gente do teu país que passou a vida a procurar a vida longe do lugar onde nasceu. Não és deste lugar mas gostas de sucos (por vezes ainda dizes sumo) e da forma como o sol sobrevoa o morro Dois Irmãos antes de se afogar no Atlântico. Não és deste lugar mas passas na rua como as mulheres locais – linda, morena, com um balançado só teu. Gostava que fizessem uma música sobre ti, que te cantassem a coragem, a forma como pintas as unhas em dois minutos no banco de trás de um táxi ou como o teu corpo se enlaça no meu quando chega uma frente fria e não te apetece sair da cama por causa da chuva. Mas há coisas que quero guardar para mim. Coisas que jamais caberiam numa música, num poema ou sequer num romance com milhares de páginas. Essas coisas não conto a ninguém, são minhas.

Já foste uma miúda de Cascais, da Graça e da Pena. Já passaste pelos poetas do Bairro Alto e pelos bêbedos do Cais do Sodré. Agora és uma miúda de Ipanema: a mesma menina que fazia ginástica em pequena e que talvez nunca tivesse imaginado que um dia seria inspiração para escritores em dias de chuva. És menina se compras chocolates no quiosque. És mulher em entrevistas de emprego. És menina quando pedalas junto ao mar. És mulher de corpo inteiro quando falas da tua família. És menina quando sentes saudades. És mulher quando avanças pela Visconde de Pirajá e homens e mulheres reparam que passas, que estás aqui, que cruzaste o oceano como tantos outros antes de ti.

Nunca imaginaste que irias dizer geladeira, banheiro, varal, ônibus. Nunca imaginaste que esta seria a tua cidade. Mas esta é agora a tua cidade, o teu bairro, a tua casa. Tudo isto é novo e lindo e por vezes assustador. Gostaria de compor uma música para garantir que tudo vai correr bem, que acendes a Praça General Osório se caminhas para a praia. Mas não sou músico e, nestes dias de chuva, falta-me talento para te cantar. É por isso que me vou levantar assim que passares por aqui. E se não passares, vou para casa, esqueço a música, esqueço a frente fria que faz o Rio parecer Lisboa em Dezembro. Vou para casa: esse lugar em ti onde regresso sempre. Porque aquilo que és não pode ser afectado pelo boletim meteorológico ou pela minha falta de talento para te cantar. Aquilo que és só eu sei. E essa é a minha maior dádiva.

4 comentários:

  1. Sinto a falta das crónicas do dia-a-dia que lia no comboio e que me faziam companhia e agora resta a paisagem dos banlieues que nos deprime. Já li um dos teus livros, o fado samba e beijos com língua e tenho desesperadamente de comprar outro porque escreves o que eu gostava de escrever e os teus livros parecem que têm o meu nome na capa, é difícil explicar.
    Tenho agora de me virar para aqui, pois é mesmo bom ler esta crónica e pensar que um dia cantei a música da garota a uma miúda que ia no barco da Fuseta à ilha da Armona.
    Um abraço

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  2. como eu gostava que escrevessem sobre mim assim

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  3. excelente. entre a ficção e a real, passeia-nos e transporta-nos. um abraço, dg

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    1. Lia-te há um ano atrás, quando abria o I eram as tuas crónicas que procurava primeiro. Especialmente quando passaste a escrever do Rio, sobre o Rio.
      Tenho um amor perdido que se mudou para aí atrás de trabalho, e nenhuma imagem da cidade além daquela dada pelas telenovelas.
      "Descobrir-te" de novo no domingo passado, quando comprei a Visão e reparei que o artigo de capa fora escrito por ti. Vai daí o Google ajudou a encontrar o blogue. Gostei muito do texto, como de costume. A menina de Ipanema daqui por acaso não será uma das protagonistas da tua reportagem da Visão?!
      Boa sorte carioca!

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