quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Preto, branco e poucos cinzentos



Há cerca de um ano subi a favela do Cantagalo e dei por mim fora de pé, num planeta distante, tão perdido e sem referências que, ingenuamente ou porque não sabia o que dizer, perguntei ao antigo armeiro dos traficantes se o seu ofício de arranjar e limpar armas de bandidos era uma actividade perigosa. Ele olhou para mim como se eu fosse uma criança atrasada mental incapaz de entender o seu mundo e disse: “Moço, eu trabalhava para traficantes e era procurado pela polícia.” O meu interlocutor, de cognome ACME, é hoje um artista plástico que descobriu Jesus, casou, teve filhos e se livrou do vício do crack e de ser fuzilado por um dos maus da fita – contou-me como um traficante não quis acreditar que uma das armas mais caras, que lhe entregara para limpar, já estava escangalhada quando chegou ao seu barraco/oficina. ACME explicou-me ainda que foi preciso sorte e perseverança para convencer o chefe dos bandidos a tirar o dedo do gatilho, convencendo-o de que não era responsável pelo defeito do fuzil. Safou-se mas não foi a única vez que teve uma arma apontada.

Quando visitei o Cantagalo, experimentei cheiros inéditos e um calor opressivo, que escorria das paredes de tijolo como suor numa cela solitária. Tudo era tão novo como estranho e desconfortável e fascinante. Muitas vezes fiquei calado, sem que a minha expressão facial soubesse reagir a histórias como: “Se um moleque rouba roupa do varal leva um tiro na mão dos traficantes.”

Comigo (e com a amiga que me acompanhou nesta viagem) seguiu durante algum tempo um bêbedo que me avisava da merda de cachorro no chão e que me disse: “Isso aqui é ruim de mais, mas isso aqui é bom de mais.” Há pouco tempo, um amigo português, que também vive no Rio, contou-me o que dizia Tom Jobim: “Viver em Nova Iorque é bom, mas é uma merda. Viver no Rio é uma merda, mas é muito bom.”

E este fim-de-semana, lendo um artigo sobre a falta de civismo no trânsito numa rua do chique bairro do Leblon – carros em terceira fila, atropelamentos, flanelinhas (arrumadores) – um taxista entrevistado dizia: “Todos têm razão e ninguém tem razão.”

É o maior lugar-comum sobre o Brasil mas é a verdade: os contrastes aqui são tão intensos como o calor num dia de verão com a humidade a bater no vermelho. Um dia passo-me da cabeça com a burocracia medieval e no outro dia espanto-me com a qualidade de alguns serviços. Um dia oiço na rádio que o estado do Mato Grosso anda a ceifar a floresta sem pejo ou consciência e, no mesmo dia, leio que o estado do Rio de Janeiro vai plantar milhões de árvores até 2016. Uma dia vejo um grupo de crianças miseráveis e meio nuas a pedir na calçada e no mesmo dia estou numa festa com gente que fala francês e que bebe gin Hendrick’s com pepino.

Há aqui uma constante sensação de choque e deslumbramento. De manhã espanto-me com a notícia que na última década foram desviados 720 mil milhões de reais de dinheiro público e de tarde espanto-me com o trabalho comunitário na favela do Cantagalo – workshops de música, a construção de um museu, a solidariedade entre os habitantes desse espaço onde me senti um extraterrestre.

Uma das tendências inevitáveis de quem vive no estrangeiro é comparar o lugar onde está com o lugar de onde veio – fiz isso quando vivi em Nova Iorque ou em Madrid. Faz parte da condição humana. Já ouvi aqui portugueses a queixar-se do Brasil e brasileiros a queixar-se de Portugal. Disse a um amigo que tinha sido mal tratado numa repartição pública e ele, carioca, disse-me que fora enxovalhado no aeroporto da Portela. É muito fácil ceder a esse impulso de comparação, mas começo a perceber que é um exercício ingrato e desgastante.

Um amigo português que vive em Madrid há quase dez anos, mas que está a pensar mudar a sua empresa para São Paulo, disse-me em tempos: “Não é importante ser o mais forte mas o que melhor se adapta.” É isso que tento fazer aqui. Se assim não for, mais vale a pena fazer as malas e voltar para casa dos papás onde tudo é confortável e conhecido.

Ninguém disse que ia ser fácil. Ninguém disse que ia ser apenas sol e meninas bonitas na praia e caipirinhas de tangerina a meio da tarde.

Hoje, um deputado responsável pela investigação das milícias (polícias mafiosos que controlam os serviços ilegais de fornecimento de luz, tv cabo e protecção em algumas favelas), está a caminho da Europa, com a família, a convite da Amnistia Internacional, porque corre risco de vida. Hoje, ouvi a nova música de Marisa Monte e vi cajus frescos numa feira e li um poema de Drummond de Andrade e beijei uma mulher bonita.

Ninguém disse que ia ser fácil, mas já me disseram que, no final, vai valer a pena. E essa é a eterna e a maior esperança do Brasil.

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