quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Carta de Natal de um emigrante para o primeiro-ministro



O meu avô emigrou. O meu pai também. Eu também. Três gerações, gente nascida em 1910, em 1944, em 1976. Três gerações que cruzaram fronteiras para dar razão ao lugar-comum: uma vida melhor. O senhor sabe a história do nosso país, esta coisa que parece inevitável, a nossa gente espalhada pelo globo, uma mistura de orgulho nacional e aflição permanente. Olhe, ainda no outro dia conheci o senhor Américo num boteco aqui do Rio de Janeiro, o seu sorriso de empregado de balcão abriu-se assim que lhe topei o sotaque e lhe estendi a mão: “Estou aqui desde 1963, mas todos os anos vou lá.”

Lá: o senhor vive nesse “lá”, nessa terra, nesse país agora atormentado, e acredito que se esforça para que “lá” seja algo mais limpo e habitável e próspero. Tenho a certeza que preferia que o senhor Américo tivesse ficado junto da família, trabalhando e pagando impostos, celebrando o Natal com frio e pinheiros em vez de 35 graus e coqueiros. Essa é a sua missão, não é? Confesso que não lhe levo a mal o conselho – emigrem -, imagino que talvez o seu desespero seja igual ao desespero dos nossos compatriotas. Mas queria dizer-lhe uma coisa – sem amargura, sem raiva, com os olhos postos na janela que dá para o Rio de Janeiro, porto de chegada onde os portugueses vêm parar, há séculos, em momentos como este. Queria dizer-lhe que nem sempre é tão fácil partir como quanto o senhor fez parecer no seu discurso.

Não vou aborrecê-lo com a vida dos emigrantes. Nem sequer lhe vou dizer que somos vítimas chorosas, entregues ao infortúnio, lançadas num pranto porque saímos do nosso país. Não, claro que não somos. Mas posso dizer-lhe que, neste Natal, pode ter muito orgulho dos emigrantes portugueses. Olho para os milhares de jovens que chegam ao Rio, com quem me cruzo na rua, com quem troco ideias e conversa fiada, e fico orgulhoso, gente engenhosa e temerária, com uma capacidade de adaptação que faria inveja ao extra terrestre do “Predador”. Gente que fuça, que busca, que está disposta a trabalhar e a viver ilegalmente num país estrangeiro – são muitos. E olhe que não lhe falo dos portugueses que viviam na miséria das bidonville em Paris. Falo de agora, de rapazes e raparigas que abandonaram o privilégio da cidadania europeia, as maravilhas do Estado Providência, o passado da fartura e dos subsídios, que imaginámos que nos garantiria um futuro na terra onde nascemos.

Nada disso interessa agora para os que estão longe. Podemos ter os dentes todos, cursos universitários, conhecimento de outras línguas mas, tal como as gerações dos nossos pais e avós, tivemos de sair. E mesmo que nenhum de nós sofra de fatalismo crónico lusitano, tivemos de sair, percebe?

Por isso, quando lhe disserem que Angola ou o Brasil são lugares fantásticos onde os portugueses levam vidas muito mais felizes que em Portugal, onde enriquecem e fazem praia todos os dias, por favor tenha cautela.

Aqui, como aí, já se sabe, temos de fazer pela vida. Não estou zangado consigo. E desculpe a intimidade, mas sou emigrante e estou longe e é
Natal. Imagino que o senhor vá passar a consoada com a família. Eu não. E muitos outros portugueses que conheço aqui também não, impossibilitados de pagar dois mil euros ou mais para apanhar um avião e comer rabanadas junto da tal tia que oferece meias.

Quero desejar-lhe um bom Natal e sublinhar o orgulho que deve ter em nós, naqueles que estão aí e nos que estão longe. Temos saudades e sabemos que, nem que seja como o senhor Américo do boteco, voltaremos pelo menos uma vez por ano. Peço-lhe, por favor, que acredite no que lhe digo: por mais excitante que seja a luz ao fundo do túnel da emigração, há aqui muitos – mesmo muitos – portugueses que trocariam o Natal tropical pelo Natal das lareiras.

1 comentário:

  1. E esta é uma carta muito simpática, caro Hugo. E quando diz "Queria dizer-lhe que nem sempre é tão fácil partir como quanto o senhor fez parecer no seu discurso.", diz tudo. E acaba por ser triste ser-se empurrado à força, pelas palavras de quem devia lutar por cada cidadão, em vez de um dia decidir que se quer ir por si próprio.

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