Em tempos escrevi um longo artigo sobre Steve Jobs para uma revista. Das coisas que aprendi, nessas leituras e vídeos e entrevistas de pesquisa, são estas que melhor consigo recordar: as suas experiências com ácidos (open your mind, son), a bandeira de pirata que mandou pôr no topo de um dos edifícios da Apple, uma frase sua, aqui mal citada, que dizia qualquer coisa como: “Sempre admirei as pessoas que, depois do sucesso, arriscam o fracasso. Pessoas como Picasso ou Bob Dylan.” Faz sentido e fica muito bem num discurso motivacional.
Não é difícil perceber o possível encanto da narrativa de Jobs, um inspirador americano, o nerd adoptado que perde no segundo acto (foi despedido da empresa que criou) e que regressa no terceiro acto como um homem diferente e capaz de fechar a epopeia criada por ele mesmo com iPods e iPhones e iPads.
Quando li uma biografia de Jobs, lembro-me do seu espanto quando viu um rato de computador pela primeira vez, antecipando o impacto que isso teria na utilização de computadores pessoais. Um rato, coisa que usamos hoje sem pensar, movendo a mão como quem conduz em piloto automático da casa para o emprego, foi em tempos causa de assombro. Com isto quero dizer que os feitos de Jobs (onde não se inclui a invenção do rato) fazem agora parte do nosso quotidiano automático e facilitado. Operamos um iPhone como passamos o cartão no torniquete do metro ou apertamos um botão num comando e uma televisão se acende para iluminar a sala. Tudo nos parece óbvio e garantido e funciona. Muito obrigado.
Mas:
Testemunhei as reacções à morte de Steve Jobs como habitante recente do Rio de Janeiro. Falou-se do assunto em mesas de botecos, os jornalistas escreveram, os cronistas também, apareceram os grouppies e os opositores da Igreja Universal do Reino de Jobs. Imagino que foi assim em muitas cidades do mundo durante um par de dias. (Já o transtorno Facebookiano da tragédia, com odes, citações e a palavra iSad, foi bem mais dramático, uma onda global de tristeza e elegias.)
O que mais me interessou, enquanto nos botecos se discutia o legado de Jobs, foi reparar nas mãos de meninas bonitas e viajadas escorrendo na face dos seus iPhones, foi perceber como as aplicações são temas de longas e profundas conversas, como mulheres e homens adultos falam igual a adolescentes diante de um videojogo. Trata-se de uma classe em expansão em muitas outras cidades. Mas aqui sinto sempre a presença dos iPhones em meu redor, nos passeios trópico-sofisticados do Leblon, na sala de espera para estrageiros do aeroporto, na praia, na pista de dança do Studio RJ, a fim de iluminar o caminho até ao banheiro, quando alguém precisa de saber um endereço ou comprar bilhetes de cinema ou descobrir qual a capital da Arménia. Há sempre um iPhone prestável.
Já não é apenas um acessório para satisfazer a status anxiety. É um modo de vida, como usar sapatos ou andar de avião. Talvez alguns dos contributos de Jobs para a humanidade não sejam tão espectaculares como a possibilidade de fazer em apenas 10 horas, e pelo céu, o caminho que custou meses a D. João VI e à sua entourage. Seja qual for a real importância de Jobs nos hábitos de parte da humanidade, olhando para as pessoas que conheço e observo nesta cidade onde escolhi viver, percebo que está entre nós: num táxi onde os ocupantes superam o aborrecimento da viagem tacteando o ecrã, quando alguém usa o aparelho para, no Twitter, ver onde há um Blitz (operação Stop) ou na mesa onde os meus amigos saltam entre a conversa, a comida e o iPhone, tal e qual crianças com problemas de atenção.
No fundo, resume-se a isto: sou ainda demasiado novo para lamentar a tecnologia, mas já sou velho suficiente para perceber que aquilo que foi feito para nos obedecer não deveria comandar-nos.
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