quinta-feira, 5 de abril de 2012

Menino do Rio (texto publicado na GQ Portugal)


Protagonista de novela e actor obstinado, já dividiu casa com ucranianos e fez papel de árvore, leão e rebuçado. Ricardo Pereira, que vive no Rio de Janeiro, não bebeu chopp nem cachaça mas falou dos tempos de festa e dos eternos equívocos entre brasileiros e portugueses. O primeiro protagonista estrangeiro de uma novela da Globo vai ser pai pela primeira vez. E embora goste muito de cinema, talvez um dia faça uma novela colombiana.

Ricardo Pereira está no bairro carioca do Leblon, carregando utensílios de praia, boné enfiado na cabeça, incentivando a mulher e os amigos, na esplanada da cafetaria Rio-Lisboa, a moverem-se na direcção da praia. É sábado de sol e céu limpo. Passaram alguns dias desde que fizemos a entrevista, e é Ricardo quem me chama, entre a confusão de gente no passeio, com o entusiasmo de um miúdo, em dia sem escola, pronto para uma manhã de carreirinhas. É uma coincidência este encontro num estabelecimento com o nome Rio-Lisboa, onde as cadeiras têm desenhado um Cristo Redentor e uma ponte sobre o Tejo. Mas é um acaso que calha bem porque durante a entrevista Ricardo Pereira falara da ligação entre os dois países com um empolgamento de criança a caminho das ondas.

Talvez esse vigor e optimismo sejam os motores que o mantêm inquieto e de agenda cheia. Já fez 18 novelas e 20 filmes aos 32 anos. Já foi manequim em Milão e actor para crianças numa digressão por Portugal. Na manhã em que nos encontrámos pela segunda vez, disse-me, antes de partir para o mar: “Cheguei ontem de um desfile em Porto Alegre.” Também esteve todos os dias no Rock in Rio a trabalhar para uma marca. Este homem não pára – apresenta o programa “Episódio Especial”, na Sic, faz publicidade, prepara-se para ser pai.

No dia da conversa para este artigo, Ricardo foi pontual e esticou o tempo além dos 60 minutos combinados, na noite anterior, por telefone. Não podia sair para os copos com a GQ porque tinha a semana ocupada com gravações da novela “Aquele Beijo”, em que é protagonista. Sugeriu um encontro no café da livraria Argumento, no Leblon, com fotografias dos astros da bossa nova na parede e uma empregada que, lá atrás, comentou com a colega "o actor português bonitão".

Onze da manhã é uma hora demasiado sadia para se falar com outro português na cidade do Rio de Janeiro. Começámos, por isso, pelas coisas sérias: ser actor de novela não é apenas ter dentes brancos e um palmo de cara. Ricardo diz que trabalha muitas horas. E foi assim desde que aqui chegou a primeira vez, há oito anos: “Gravava 30 cenas por dia e trabalhei com um director que não deixava os actores levarem os textos para a gravação. Tinhas de saber tudo na ponta da língua.” Mas um português, com 23 anos, acabado de chegar ao Rio, só se dedicava ao labor do seu ofício? Ricardo prontifica-se a explicar que não. Porém, houve um método: “Nos dois primeiros meses, antes de gravar a novela, morei em Ipanema e vivi intensamente o Rio. Mas depois mudei-me para um condomínio sossegado, na Barra, perto dos estúdios.”

O café onde conversámos tinha uma clarabóia que iluminava tudo com a luz da primavera carioca. Havia jornais nas mesas e uma calma de meio da manhã. Ricardo foi mais rápido que a modorra matinal, falou depressa, falou das fronteiras que separam o cumprimento do dever e a curtição do prazer: “Desde muito cedo os meus pais me deram liberdade e exigiram responsabilidade. Escolhia o caminho mas lidava com as consequências. Nunca fui um aluno excelente mas nunca chumbei por faltas. Estudava quando tinha de estudar. Mas não queria passar a vida a estudar, queria divertir-me. Consegui fazer várias coisas ao mesmo tempo. Na rambóia e na paródia sempre soube sair na hora certa e se passava a hora, no dia seguinte, não me queixava.”

Ainda no liceu, e através da mãe, que trabalhava com fotografia, Ricardo foi fotografado por Luís Magone – o mesmo que fotografou Soraia Chaves pela primeira vez – e acabou, com 15 anos, na agência Elite Model: “Numa semana e meia estava a desfilar em Milão sem ter ideia de nada. Os meus pais confiavam em mim, era um miúdo organizado e desenrascado, não me perdia. No apartamento onde fiquei conheci logo uns brasileiros, ficámos amigos até hoje. Um dia estávamos em Paris, na festa de inauguração de uma loja Armani, com fatos emprestados por estilistas, e quando fui cumprimentar o próprio do Giorgio Armani entornei um copo por cima dele e de mim. Não me lembro como consegui tirar a nódoa do fato antes de o devolver.”

Nos anos como modelo viajou, conheceu gente, dividiu casa com americanos, suíços, canadianos, italianos e até um ucraniano musculado, que fazia capas da Men’s Health, e que o acordava com o cheiro a fritos logo de madrugada – o apartamento era pequeno e Ricardo dormia junto da kitchenette.

O trabalho como modelo levou-o também aos anúncios televisivos. Já fez mais de 100 filmes publicitários, alguns para grandes marcas nacionais: “Percebi que me chamavam também por causa do acting, porque conseguia passar bem a mensagem e procurei fazer vários cursos de interpretação.” Depois, durante três anos, decidiu rodar o país com a companhia de teatro infantil “Magia e Fantasia”: “A reacção dos miúdos é imediata, para bem e para mal, sem filtros.” Teve hipótese de interpretar dezenas de personagens diferentes: “Fui árvore, urso, montanha, rebuçado, jóia, leão… Acho que o meu grande papel foi como árvore.”

Daí passou para o Teatro Nacional D. Maria II, no elenco da grande produção “A Real Caçada ao Sol”, de Peter Shaffer, dirigida por Carlos Avillez e onde Ricardo trabalhou com actores do teatro clássico, como Ruy de Carvalho: “Receberam-me muito bem, e olha que eu vinha da moda.” Num abrir e fechar de olhos estava na televisão a fazer séries para jovens adultos, telenovelas, séries cómicas com António Feio e Vítor Norte. Em 2002 tentou o papel de emigrante português numa novela da Globo mas o trabalho foi para o seu amigo Nuno Lopes. Dois anos mais tarde a televisão brasileira chamou-o para fazer “Como uma onda”: “Não tinha noção, era mais uma experiência. Não sabia que nunca antes um estrangeiro tinha sido protagonista de uma novela da Globo, a quarta maior televisão do mundo.”

E é assim tão diferente fazer novelas em Portugal e no Brasil? “A novela das sete da tarde é vista por 60 milhões de pessoas, a das oito por 80 milhões e a das nove da noite por 100 milhões. O retorno da publicidade é muito maior e ainda vendem as novelas para dezenas de países. O investimento é maior cá porque o mercado também é maior cá.”

Novela no Brasil é mais que números e dinheiro e estrelas. Está tão entranhada na rotina como arroz com feijão ou música a tocar no rádio ou o ar condicionado no máximo a bombar constipações no interior dos táxis e dos centros comerciais. Novela não é apenas coisa de classe C ou produto menor. No sábado em que Ricardo saiu da Rio-Lisboa para a praia, o ilustre colunista do jornal Globo, Arnaldo Bloch, usava a nobre e última página do Segundo Caderno, para falar de Carolina Dieckmann (protagonista da actual novela das nove, “Fina Estampa”). O que Bloch escreveu nesse dia foi comentado na praia e nas mesas de almoço (a sério, foi mesmo). Dizia ele: “Até o início do milênio, ela (Carolina Dieckmann) era meio cheinha e tinha uma cara de gente boa emblemática, mesmo quando o papel era sensual (…) Um dia passei por uma banca de jornal e vi, na capa de uma revista feminina, outra Carolina: estupendamente mais magra, as bochechas com aqueles buracos que viraram moda, um sorriso pálido que nada tinha do carisma ao qual eu me apegara.”

Os colunistas de jornal falam de novelas, ainda que para falar da beleza fabricada das “globais” (assim são chamadas as starletes da Globo), e os restantes brasileiros acompanham os enredos meses a fio. Na hora da novela, a televisão do boteco não desilude os clientes/telespectadores. Esta pode ser a era das séries, mas a novela brasileira ainda consegue arrebatar um país.

No Rio, diz Ricardo, as pessoas estão habituadas a ver os actores na rua, mas no resto do Brasil a adoração é mais intensa. Numa rua junto da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio, um prédio está coberto com a cara gigante de Ricardo impressa na tela de um anúncio. Trata-se da promoção da novela “Aquele Beijo”, do autor Miguel Falabella, que estreou no início de Outubro. Quando Ricardo se despediu de mim, depois da entrevista, a empregada apressou-se a perguntar: “O português não vai voltar mais não?”

Com o passar do tempo – oito anos no Rio, os dois últimos como actor exclusivo da Globo – o português deixou de fazer apenas papéis de portuga emigrado e, com ajuda de uma terapeuta da fala, passou a protagonizar brasileiros de sotaque açucarado: “No outro dia até me disseram, pensando que eu era brasileiro: Você fazia muito bem o sotaque de português.” No entanto, durante a conversa, Ricardo não larga um brasileirismo. Os dois sotaques estão separados na sua cabeça. É um português que gosta muito do Rio: “Aqui o sangue fervilha mais.” Mas garante que continuará a trabalhar em Portugal. É um português encantado pela possibilidade de dar um mergulho nas praias cariocas antes de arrancar para as gravações diárias: “Aqui a pedra chora e eles riem. A vida corre mal, mas (começa a cantar) a vida vai melhorar, a vida vai melhorar.”

Dois clichés comuns entre os brasileiros: os portugueses são baixos e as portuguesas têm bigode. Com a chegada de tantos portugueses no último ano, gente formada e com pouca pelosidade facial, os lugares comuns perdem força: “Eu cheguei aqui e comecei logo a contrariar os clichés pelo simples facto que tenho 1,83 m.” Nunca, como agora, garante Ricardo, houve tanto intercâmbio entre os dois países. Os brasileiros visitam mais Portugal e as coisas portuguesas vão chegando aos poucos – o sucesso literário de valter hugo mãe, a actuação louvada dos Buraka Som Sistema, as salas esgotadas para ver António Zambujo, os jovens portugueses que não páram de chegar ao Rio e a São Paulo.

Com o entusiasmo com que falou durante uma hora e meia, confessou que estava a tentar meter umas músicas portuguesas na banda sonora da novela: “Estou sempre a mostrar e a divulgar as nossas coisas.” Aconselha-me a não dizer “pexina” (piscina) porque ninguém vai entender. E sugere, para evitar uma gargalhada brasileira, que se evite a palavra autoclismo (eles dizem “descarga”). Ricardo estava atrasado e ainda tinha de percorrer uns 50 quilómetros até aos estúdios da Globo. Claro que quer fazer mais cinema e teatro, diz, acrescentando que adorou aprender com Raul Ruiz, no filme premiado “Mistérios de Lisboa”. Mas também confessa que não se importava de experimentar as novelas da Colômbia: “Estive lá agora, em Cartagena, 20 dias, para gravar o início desta novela, e fazem telenovelas 24 horas por dia, uma das estações chama-se Caracol”, diz, rindo-se. “Fizeram-me um convite. A minha mulher é aventureira, gosta de viajar, quem sabe.”

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