segunda-feira, 19 de março de 2012

Na volta do correio










Para o meu pai


Apesar da miopia, do estigmatismo, das limitações no sector da experiência de vida, do fraco porte físico e de não saber ler nem escrever, Minhoca queria ser o Cyrano de Bérgerac da companhia e o melhor soldado que já passara por Angola.

Não lhe faltava aprumo nem paixão.

No mato ou no quartel, era o mastim de fila do alferes Magalhães, que nunca participou nas piadas sobre a miopia, a dedicação à tropa ou o sono de pedregulho do Minhoca. O alferes tentava não tomar partido nas brincadeiras da companhia. Certa vez, meteram merda na cara de Minhoca, entre o nariz e o lábio, enquanto ele dormia. Outra vez ataram-lhe o cordão de uma bota ao pénis e colocaram-na em cima do peito – queriam que a lançasse para longe, em fúria, quando acordasse. Foi o que fez e por pouco não foi circuncidado.

O alferes Magalhães era um tipo que podia servir de emissário entre um palestiniano bombista e um israelita de espingarda apontada. Tinha trato, não esnobava, não abusava da autoridade. Punha-se a ouvir. Não falava muito. Os homens respeitavam-no. Era portador de tomates anti-bala e sabia comer à mesa. Escrevia cartas quando lhe pediam, escutava relatos de namoros, bebia com os soldados sem nunca perder as estribeiras.

Minhoca não tinha namorada a quem mandar aerogramas sobre o quotidiano no mato, em troca de juras de amor e notícias das ruas da Metrópole. Não havia uma rapariga que lhe escrevesse, nenhuma prima da aldeia, mesmo que em primeiro grau, que servisse de inspiração ao romantismo de Minhoca. Havia as revistas de mulheres nuas, mas quem o visse com elas na mão, a caminho das latrinas, não percebia nele um tocador de punhetas. O seu apego àquelas mulheres tinha uma devoção de altar.

“Quando for, é para casar”, dizia Minhoca.

Numa tarde sem nada para fazer no quartel, Jagodes, que era malandro do Bairro Alto e tinha aprendido a manobrar facas na profissão de talhante, tirou as revistas das mãos de Minhoca:

“Queres amor, escreve um diário. Estas gajas são para homens de pau feito.”

O alferes Magalhães aproximou-se de Jagodes:

“Essas revistas são suas?”

“Não, senhor”.

Jagodes devolveu a Minhoca o material para adultos, voluntariamente, sem amuo. O alferes Magalhães costumava estar certo, e essa certeza dava segurança aos soldados durante o combate.

Numa noite, no mato, Minhoca pediu ao alferes que lhe desse lições sobre como conquistar uma mulher.

“Eu sou casado, não tive muitas namoradas, não sirvo para professor de sedução. Posso falar-te da vida em casal, da minha mulher e dos meus filhos.”

Daí em diante, e porque Minhoca jamais receberia cartas de amor, o alferes resolveu ler-lhe em voz alta alguns aerogramas enviados pela mulher. Saltava os parágrafos que revelavam saudades de pele e alguns desabafos encapotados contra o regime e contra a guerra, mas oferecia a Minhoca a novelização da vida do casal com memórias, pormenores sobre a logística da educação dos filhos e crónicas do carinho familiar. O alferes lia:

“A tua sobrinha Matilde perguntou, ao ver uma cegonha, se era uma galinha do céu.”

“O teu primo comprou um descapotável.”

“Fui lanchar à Brasileira e lembrei-me de ti a descer o Chiado.”

O alferes lia e Minhoca efabulava.

Quando houve problemas com a entrega dos aerogramas, e as cartas ficaram suspensas, Minhoca sofreu mais com a ausência do carinho em papel do que o próprio alferes. Comia mal, rezava muito, não queria ir de licença. Diagnosticaram-lhe paludismo. Ele garantia que era desgosto.

O alferes voltou para Lisboa durante a seca de notícias por carta, mas deu ordem que entregassem o seu correio atrasado ao Minhoca.

“Eu depois devolvo-lhe tudo quando chegar a Lisboa.”

“Não precisas. São para ti. Mas liga-me assim que chegares. Estou aqui para o que precisares. As melhoras.”

“Meu alferes, queria confessar-lhe uma coisa.”

“Conta.”

“Sou virgem.”

Semanas mais tarde, Minhoca acabou por receber as cartas destinadas ao alferes Magalhães. Superou a guerra virgem, analfabeto e sem ferimentos. Ficou em Luanda, mesmo depois da independência, apaixonado e casado com uma mulata que também era míope.

O alferes recebeu, uns anos mais tarde, uma carta escrita à máquina. Era de Minhoca.

“Meu alferes, a minha mulher encontrou os aerogramas da sua esposa e acha que fui casado em Portugal. Nada a convence do contrário. Por favor, ajude-me”.

Miguel Magalhães, ex-alferes e advogado com escritório próprio, há muito que queria revisitar Angola. Levou a mulher consigo e passaram alguns dias com o casal Minhoca. Na despedida, já resolvido o desentendimento com as cartas, a mulher de Minhoca chamou o alferes e deu-lhe os aerogramas:

“Desculpe, fui eu que os abri, ele jamais leria as suas cartas.”

Minhoca despediu-se de outra maneira, olhando para os filhos:

“Meu alferes, já não sou virgem. E sei escrever cartas. Foi ela que me ensinou.”

Minhoca continua vivo. O alferes também.

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