quarta-feira, 21 de março de 2012

Reality Van

Lá estava eu, metido numa van para fazer cinco minutos de caminho, porque o lugar onde ia ficava a meio de uma subida, e, com o calor do princípio da tarde, não estava para transpirar a T-shirt.

Lá estava eu, transpirando a T-shirt dentro de uma van sem ar condicionado, em pé porque não havia lugares sentados, prensado entre corpos porque o cobrador não parava de enfiar gente na van, mas feliz por causa da minha capacidade de adaptação. Eu era o gringo que se diluía entre os locais, o bacano que entra na onda, o observador que não se importa de participar.

Estava contente com a minha habilidade de, sem preconceitos ou frescuras, apanhar (mais uma vez) um meio de transporte que alguns dos meus amigos cariocas – por comodismo, classismo ou desinteresse antropológico – recusam utilizar nas suas deslocações pela cidade. Olhei à minha volta (a van ia para a Rocinha), e era o único branco. Depois o cobrador perguntou:

“Alguém desce na PUC?”

E como ninguém respondesse, uma das senhoras – negra como uma pantera escovada e gorda como uma tia beijoqueira – disparou:

“Se ninguém desce, vamos diretos pra Rocinha.” Todos se riram, houve um momento de cumplicidade coletiva, tal e qual como nas longas viagens de carro com amigos, e até eu, nascido e criado a milhares de quilómetros da Rocinha, me senti parte dessa comunhão na van em alta velocidade.

Mas eu não sei o que é ir e vir da maior favela do Brasil (ou viver lá), não sei o que é perder horas no trânsito (dentro de uma van, ônibus ou trem sobrelotados) ou levar os filhos à escola (dentro de uma van, ônibus ou trem sobrelotados) antes das oito da matina para, de seguida, vestir a farda e teclar numa caixa de supermercado ou tratar das crianças dos outros ou trabalhar de ascensorista num prédio do Centro.

Não houve, em mim, culpa burguesa, nem senti que tivesse de abandonar as viagens de van por não pertencer ao grupo. Mas percebi, apesar do meu genuíno interesse em misturar-me, que padecia de um orgulho indefinido, algo que resultava do simples facto de utilizar, nas minhas viagens, sem hesitações ou pruridos, os serviços de uma van.

É um prazer egoísta, é sentirmo-nos bem porque julgamos ser (em pensamento) boas pessoas – melhor do que realmente somos na prática. Lembrei-me do comediante Louis CK, que conta como, em várias viagens de avião para o Iraque e o Afeganistão, onde ia atuar para as tropas americanas, pensou em oferecer o seu lugar, em primeira classe, a algum dos militares que viajavam em económica. Nunca o fez, confessa, mas a fantasia do gesto, o desenrolar do filme na sua cabeça, o militar grato, os outros magalas dizendo uns aos outros como o Louis CK era um gajo porreiro, todo esse sonho altruísta lhe deu tanto ou mais prazer que o gesto em si – gesto que, repita-se, nunca realizou.

Foi exactamente isso que senti na van – um sentimento de bondade, “olhem como sou um cara legal”, tudo isso apenas por viajar numa carrinha que ia a caminho da favela.

Rosie Parks had it pretty worst.

Essa emoção – sentirmo-nos bem sem ter feito realmente nada de assinalável –, tão sabiamente definido e explicado por Louis CK, é um dos atributos da inteligência humana e da sua capacidade fantasista. Uns criam narrativas em que ganham a lotaria e dão (quase) tudo para instituições de caridade. Outros sonharão em salvar vidas após um acidente de avião, em adoptar duas crianças – uma africana, outra chinesa –, em fazer voluntariado num país fodido por humanos e esmagado pela Natureza. Há em nós esta capacidade para sermos os heróis da nossa própria odisseia sem mexer uma palha. É tão auto-satisfatório como a masturbação, um admirável truque da mente, substituto de psicólogos, drogas e reconhecimento de terceiros.

Há uma canção, de Ryan Adams, chamada “The fools we are as men”, foi nesse título que pensei ao saltar da van, muito antes da Rocinha, a meio de uma subida que não me apeteceu escalar por causa do calor. Os patetas que somos enquanto homens…

Senti, primeiro, uma certa vergonha. Depois veio o enternecimento com as criaturas carentes e falhadas que somos. E se, pelo menos em fantasias, julgamos ser melhores pessoas, talvez um dia o abstrato se torne material, e haverá pelo menos um soldado, num avião, a caminho de uma guerra, que poderá esticar as pernas em primeira classe.

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