quinta-feira, 8 de março de 2012

Sobre as crónicas que não querem ser crónicas ou A pieguice do cronista


Já se sabe, até ao enjoo, que todos os cronistas, em algum momento, começam uma crónica falando da falta de assunto. Nunca o fiz e prometi que não o faria, embora as minhas resoluções nem sempre tenham a abnegação de um general dos antigos, vacilam nos joelhos diante de uma tentação como adolescentes japonesas no camarim de um ídolo pop teen. Como se diz por estes lados: “Sou facinha.” Mas não será ainda hoje que venho para aqui compadecer-me da falta de assunto.

O meu problema são as crónicas que não me apetece escrever – por preguiça, aborrecimento e procrastinação patológica –, mas que se vão empurrando contra a minha pele, seres alienígenas que germinam dentro de mim, esperando poder saltar cá para fora a fim de se mostrarem, vaidosas como são as ideias, as impressões e os bitaites, mas permitindo-me dessa forma seguir adiante com outras obsessões. E por isso há um alívio quando se emancipam, cruzando derme e epiderme, e seguem seu caminho.

Essas crónicas que não quero escrever começam do nada, um grão, um microfilme, pode ser uma frase, uma imagem, um gesto. Por exemplo: há umas semanas, numa noite desse calor que faz estalar os insectos, caí nas águas voluptuosas da piscina de uma amiga. E estar ali, no verão, rodeado de crianças que faziam bombas e garotas que falavam e davam risinhos literários nas espreguiçadeiras, estar ali, banhado no azul e no cloro, olhando as árvores, o céu, as estrelas e todas as cenas que fizeram das nossas noites de verão algo de memorável, estar ali foi motivo para que a imagem de uma piscina noctívaga se acendesse dentro de mim, desde então, como as luzes debaixo de água. Talvez porque tudo o se parece com as férias grandes, quando as férias grandes iam de uma ponta à outra do verão, nos leve a pensar em viagens épicas no dorso de bicicletas e beijos em miúdas e alguém que partia um braço a fazer qualquer coisa estúpida como saltar do muro para a piscina.

Guardei a imagem da piscina para outros escritos. Mas havia mais um bicho a crescer dentro de mim, uma criatura que nasceu da observação do comportamento dos zombies da tecnologia – amigos que cruzam um almoço passando o dedinho na telinha do iPhone, as crianças que me foram apresentadas num jantar, mas que nem levantaram as carinhas robotizadas do jogo no iPad, o adolescente que, no elevador do meu prédio, fitava qualquer coisa no seu gadget prateado com o mesmo olhar de uma vaca com quem, há alguns anos, me cruzei nas planícies verdes da Dordogne.

Consegui refrear, até agora, o crescimento desse bicho – sei que quer atingir a maioridade e ir por aí, decretando sentenças sobre o uso dos telemóveis, lamentando o impulso que nos leva a querer saber tudo a toda a hora sobre toda a gente, sobrecarregando-nos e poluindo-nos com informações tão dispensáveis como ruidosas. Turn it down a notch. Vão com calma. Tirem o dedo da telinha.

Talvez tudo o que escrevi até aqui seja tão inconsistente como a longa desculpa do aluno, que não tendo feito os deveres, tenta adiar a previsível confissão: “Não fiz.” Talvez todo este engonhar, esta ladainha de empata-crónicas, este deixa ver onde isto vai dar, tenha sido apenas vergonha de dizer que, há semanas, há outra coisa a crescer dentro de mim, outra ideia, imagem e alegria.

Quando saio de casa para correr, de manhã, entro na rua que tem árvores e casinhas e duas escolas. É tão tranquila como se no campo. E ali estão as mães, dezenas delas, esperando as escolinhas abrirem, brincando e dando colo aos seus filhos de creche, todos vestidos com t-shirts e calções vermelhos, simpáticos e espantados com o mundo inteiro: com os cachorros, os insectos, as pessoas que eles não conhecem mas a quem dizem adeus. Tudo é novo e bom.

Hoje um dos rapazes dava festinhas numa menininha e ela retribuía – as mães encantadas, eu feliz por estar ali e ser de manhã cedo e ter o mar tão perto. Pensei se me acontecera o mesmo que a Stephen King: depois do atropelamento, o escritor chorou ao ver o filme Titanic, e questionou-se se alguma coisa no quartinho das emoções, lá no andar onde mora o cérebro, não teria sido afectada com o acidente.

Mas não bati com a cabeça em nenhum lugar nem tomo medicação. E se para me livrar desta criatura adocicada que acabou de sair cá para fora, escrevendo sobre a sua felicidade matinal diante do decorrer mundano e, no entanto, tão pungente, tão cintilante e leve, da vida normal dos outros, se para evitar a pieguice de falar, no futuro, do sorriso das crianças e das manhãs de verão, tenho mesmo de sacrificar esta crónica, então seja.

Bem cedo, quando saio para correr e os termómetros ainda não alcançaram os 30 graus, passando naquela rua, vendo as mães e os seus filhos, percebo que sou muito mais piegas do que gostaria de ser. Resta-me o consolo que, para chegar a esta conclusão, não precisei de ser atropelado.

2 comentários:

  1. diria que esta é a melhor crónica deste. gosto do conceito e imagem de "e por isso há um alívio quando se emancipam, cruzando derme e epiderme, e seguem seu caminho" e acho a crónica nada "empatada" e muito bem "sacrificada". muito bom! dg

    ResponderEliminar