sexta-feira, 2 de março de 2012

Trópico do umbigo



No dia de aniversário do Rio de Janeiro (ontem), escrevi sobre como o Carnaval me ajudou a perceber melhor a cidade, o tempo carioca e até os portugueses

História e as lições do passado
Entrei no Carnaval como os primeiros portugueses entraram no Rio de Janeiro, devagar e com cerimónia, com interesse, mas pouco empenho. O Rio foi descoberto em 1502 mas apenas 53 anos mais tarde, quando os franceses já tinham montado colónia no território, os portugueses, liderados por Estácio de Sá e disparando canhões, expulsaram franceses e mataram índios tupinambás, decidindo que ali seria fundada a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Demoraram meio século mas vieram com tudo.

Também demorei. E só dei uma de Estácio no final da tarde de terça-feira de carnaval – os meus amigos já tinham ido aos melhores blocos, levavam dias de festa; eu estava relutante porque na última semana tinha enfrentado, fosse no supermercado ou num passeio pela orla, as multidões nas ruas, lixo e mais lixo no chão, gente apertada e suada, qualquer coisa entre a Queima das Fitas e o Oktoberfest, embora com 30 graus e menos roupa. A cidade emperra, ônibus, vans e táxis rolam sobrelotados ou ficam empatados no trânsito. Tentei entrar no Carnaval a fundo, mas o pré Carnaval, que começa duas semanas antes, já tinha drenado o meu entusiasmo.

Cheguei tarde, mas vou a tempo

Tal como os portugueses, que demoraram para tomar o Rio de Janeiro, demorei a perceber o encanto, a importância e o significado do Carnaval para um carioca.

O meu momento Estácio de Sá aconteceu quando a tarde tombava para a noite, no Jardim Botânico, no bloco Último Gole. Terça-feira de carnaval. Quando tudo deveria estar acabando, estava, afinal, apenas no começo. De t-shirt e calções, levava uma mascarilha de má qualidade que, confesso, estava mais para o S&M do que para o Zorro. Como vi poucas pessoas mascaradas, comentei que talvez abdicasse do disfarce ambíguo. Uma amiga, que nos dias anteriores se fantasiara de Marylin Monroe e cowgirl, disse: “Esse não é o espírito. No Carnaval vale tudo. “

E eu fiz o que ela mandou.

Coisas que aprendi com o Carnaval

Há sempre gente em todo o lado, a qualquer hora, como se numa cidade de zombies foliões que não dormem. Durante o Carnaval mais de cinco milhões de pessoas saíram para rua. A cidade arrecadou 650 milhões de dólares.

O Carnaval não são dois dias. São três semanas, com pré e pós carnaval. E uma dessas semanas é tão intensa – para miúdos e graúdos – que parece uma viagem de finalistas, umas férias com amigos, uma oportunidade para não pensar em mais nada se não em folia. Os jornais fazem manchetes e cadernos dedicados ao carnaval. É disso que se fala, é isso que interessa.

Para um português, que nos últimos tempos foi, como os seus compatriotas, recipiente de sermões sobre austeridade e contenção, todo aquele desprendimento carnavalesco me assustou – e o desemprego? e os impostos? e a mão na cabeça em arrependimento? Talvez por isso só tenha entrado no Carnaval a fundo na quarta-feira de Cinzas. E fui mais obediente à sabedoria da minha amiga – “Esse não é o espírito. No Carnaval vale tudo” – do que ao discurso oficial da parcimónia. Atirei-me para o bloco “Me beija que sou cineasta” a fim de perceber o que é isso do carnaval carioca.

Talvez seja arriscado para um estrangeiro tentar decifrar aquilo que outros levam anos vivendo. Mas como estrangeiro, habituado a carnavais de kispo e salas de aula com zorros encasacados e princesas de galochas, é assombroso perceber a importância destes dias na ordem natural das coisas cariocas.

Ninguém romantiza namoros de Inverno. É no verão que a memórias mais se impregnam na carne. E aqui o Carnaval é no verão, durante as férias grandes. De dezembro até ao carnaval a cidade é mais eléctrica, as pessoas estão mais na rua, há mais lugares onde ir e coisas que fazer. É um constante crescendo que atinge o climax com o Carnaval.

E agora, depois do êxtase, as crianças regressam à escola, há menos gente na praia, a cidade fica mais serena ao entrar no outono. Por isso, o Carnaval é a felicidade antes da obrigação, as coisas boas antes dos deveres, o excesso antes da vida regular.

Vi velhos pulando como se nos loucos anos 20, vi e senti a pulsão das massas se cantam um samba em conjunto, vi uma boa disposição geral, uma simpatia e disponibilidade, apesar dos bêbebos, das toneladas de lixo, da exasperação das filas, de acordar às oito da manhã por que passa um bloco diante do prédio tocando muito mais alto do que a aparelhagem do vizinho.

Vi actores beijando actrizes, actores beijando actores e actrizes beijando actrizes. Vi mulheres vestidas de trepadeira com botox nos lábios, vi o povo invadir a exclusividade do Leblon e a cidade tornar-se tão democrática como entupida. Vi gente tão criativa e com sentido de humor como o rapaz que, por estar dentro de um elevador, sobreviveu a uma derrocada de três prédios, em Janeiro, no Centro. Neste Carnaval, o rapaz saiu para a rua mascarado de elevador

No dia de aniversário do Rio de Janeiro, com céu azul e 39º de máxima, vi crianças no regresso à escola e desapareceram da rua, por fim, os banheiros químicos do Carnaval. Reabrem-se as agendas. Diz-se por aqui que “agora sim começa o ano”. E perante a responsabilidade desta evidência, o Carnaval faz agora muito mais o sentido.

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