quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Curva e contra curva






Uma tarde a passear pela cidade com Soraia Chaves tornou-se numa conversa nocturna com vinho e comida sobre a mesa. A actriz, que prefere viajar ou estar em casa a ver filmes, aborrece-se com jornalistas e gosta de cocktails fortes.

O nosso plano era comer um gelado no Santini, depois dar um giro por Lisboa antiga com direito a viagem de eléctrico e miradouros e talvez compras nalguma loja de roupa. Faz muito calor em Lisboa e a fila para os gelados mais populares da cidade derrama-se para a rua. Recombinamos o encontro, num sítio com ar condicionado e onde a espera seja amenizada com livros nas prateleiras. Na Fnac, pensa este jornalista, talvez haja pretextos para lançar a conversa com a actriz que mais gente leva ao cinema em Portugal e que deixa homens de pernas bambas só de olharem para um poster.

Afinal, mulheres bonitas ficam bem em livrarias.
Soraia desce as escadas rolantes e olha para o livro que o jornalista tem na mão – “Man without women”, de Ernest Hemingway – (um truque para começar a conversa com a actriz). Mas não é literatura que lhe interessa nesse momento, ainda que confesse a sua fidelidade a autores como Charles Bukowsky ou Philip Roth – acabou de ler, recentemente, o “Teatro de Sabbath”, a história de um velho artista de marionetas, manipulador de mulheres e entusiasta de sexo a abrir e fora da norma. “Gosto de escritores masculinos”.

Ernest Emingway era um entusiasta de dry martinis, chamava-lhes “silver bullets”, porque, atraentes e prateados, chegavam ao cérebro sóbrio como a velocidade de uma bala. É uma desculpa para perguntar, tendo em conta a fila para o Santini: “E se fossemos antes beber um copo?” Soraia concorda que um cocktail é mais pertinente que um gelado numa conversa entre adultos.

Na alcatifa silenciosa da livraria, há ainda tempo para falar das trivialidades da estação: “Onde vais passar férias?” Soraia responde enquanto ascende nas escadas rolantes: “Tinha pensado passar um mês na Índia, mas tenho trabalho. Vou amanhã para Berlim, passar uns dias com uma amiga que vive lá.” Tem uma saia comprida, um top, uma écharpe e uns óculos escuros, muito mais discreta que a modernidade da indumentária dos frequentadores do Chiado, que sobem e descem a rua Garrett – brincos, tatuagens, fatiotas com inspiração londrina, calçõezinhos tão curtos que parecem ter encolhido na máquina. Soraia não dá nas vistas e raros são aqueles que percebem quem ela é. Avança como se fosse comprar o jornal ou apanhar o autocarro.
Pergunto-lhe se tem truques para passar despercebida, como Robert De Niro, que aconselhou Leonardo DiCaprio a usar óculos de ver porque são a melhor forma de descaracterizar uma cara que aparece em ecrãs em todo o mundo. Ela responde: “No meu caso é a simplicidade, as pessoas têm uma ideia de mim muito produzida, por causa dos filmes, mas ando de chinelos e calças de ganga e t-shirt. Por vezes olham para mim, mas não têm a certeza se sou eu.”

Se é verdade que, como disse o realizador António Pedro Vasconcelos, que a dirigiu em “Call Girl” e “A bela e o paparazzo”, a câmara adora Soraia Chaves, fora de um plateau a actriz é muito menos personagem – sente-se pouco cómoda em entrevistas, não gosta de falar da sua vida, esconde-se um bocadinho das perguntas e das máquinas fotográficas.

Sentamo-nos na esplanada do restaurante Pharmácia, com relva, vista para o Tejo, para a ponte e para o entardecer de fogo de Lisboa. Soraia pede uma imperial e explica porque, sendo ex-modelo e actriz, não tem grande desenvoltura diante de jornalistas: “Sinto-me mais desconfortável a fotografar do que quando comecei como manequim. Acho que tem a ver com o facto de me sentir mais observada. Com a exposição de “O Crime do Padre Amaro”… Na altura foi um bocado (longa pausa). Não sei, foi estranho, as pessoas saberem o meu nome, saberem quem eu sou. Inicialmente era muito genuína e sentia-me à vontade em entrevistas. Tinha uma certa inocência. Depois começaram a surgir as notícias falsas dos namoros, os rumores. Diziam que eu tinha provocado um divórcio ou que andava com o Cristiano Ronaldo, que namorava com este e com aquele, comecei a sentir-me invadida, isso tornou-me mais reservada.”

Os jornalistas da imprensa cor-de-rosa queriam colar as personagens sexy e arrojadas na pele da actriz. Inventaram-lhe casos, apareceram no aeroporto para ver quem a ia buscar, chegaram a plantar-se na porta de casa dos seus pais. E é por isso que quase não fala da família, que é grande e feminina: “Tenho quatro irmãs, sou a penúltima, e em minha casa havia sempre muitas mulheres. Cresci na Trafaria, perto da praia, andava muito de bicicleta, apanhava fruta, fui muito livre, quase como crescer no campo, não tem nada a ver com a vida citadina que tenho hoje. Ter crescido entre mulheres marcou a minha forma de ser. ”

Chega o primeiro cocktail, prova dos hábitos citadinos da actriz. O jornalista acompanha, escutando o relato de uma infância que, nas palavras de Soraia, foi “muito muito girly”: “Passava muito tempo com as minhas irmãs, fazíamos personagens, uma era a mãe, outra a filha, brincávamos às casinhas, víamos filmes e dançávamos e ouvíamos
música. Era tudo muito teatral.”

Não frequentou a faculdade mas sempre gostou de estudar: “Adorava a escola, adorava aprender”. O seu primeiro desgosto escolar – aos dez anos teve uma doença que a obrigou a ficar todo o primeiro período em casa –, acabou por resultar em boas notas. Mesmo fechada em casa, pedia a matéria e estudava. Quando foi fazer os testes, em Dezembro, apresentou-se como aluna de satisfaz muito bem. No entanto, tinha uma falha, como devem ter todas as personagens de cinema. No seu caso era a Matemática. A outra falha: ingenuidade. Escolheu, no décimo ano, a área de jornalismo, efabulando com viagens pelo mundo e reportagens em terras longínquas. Soraia não chegou sequer a perceber, na prática, que o jornalismo nem sempre é romântico.

Com 14 anos começou a trabalhar como manequim: “Nos anos 90 houve o boom das super modelos com a Claudia Schiffer e a Cindy Crawford, eram lindíssimas, havia todo aquele glamour da moda e isso influenciou a menina que eu era. Mas não sonhava ser modelo, queria apenas saber como era fazer uma sessão fotográfica, ter aquela experiência.”

Estava no 9º ano quando participou no concurso de uma revista para adolescentes. Escreveu uma carta e mandou fotografias: “Encontrei uma dessas fotos no outro dia, espero não ter enviado essa, estava de biquíni e com a gata da família ao colo, chamava-se Branquinha.” Soraia ri-se do seu relato, como se não se levasse muito a sério, capaz de fazer humor com a narrativa da sua vida diante de um jornalista.
O fotógrafo gostou da postura daquela miúda de 14 anos e sugeriu-a à agência Elite. “Eu nem sabia que havia agências de manequins”. Ganhou o concurso Elite Model Look e foi representar Portugal no estrangeiro. Viajou para Nice e teve uma revelação: “Existem muitas mulheres bonitas no mundo. Não tinha a menor hipótese de ganhar, não era convencida mas aquilo foi um reality-check, deu-me perspectiva.” O concurso, claro, foi ganho por uma holandesa alta, loira e linda.

Nas pausas dos trabalhos como modelo, Soraia voltava a comer hambuguers e gelados. Nunca quis saber muito de moda nem da linha – adora comer –, não chegou a deslumbrar-se com o universo glamouroso, trabalhava e regressava a casa para estar com os amigos que, mais que adoradores da nova estrela da Trafaria, sempre souberam brincar com a exposição da amiga. Também os pais que, durante a adolescência, a acompanharam nos trabalhos como modelo, contribuíram para que não descolasse os pés do chão e perdesse a cabeça.

Depois de uma temporada na África do Sul, onde trabalhou como manequim, resolveu regressar a Portugal com a certeza que queria ser actriz: “Já o sabia há muito tempo mas tinha que fazer alguma coisa para isso.” Paul Auster diz que as boas histórias só aparecem a quem sabe contá-las. Parece que esse foi o caso de Soraia. Um dia depois de regressar da África do Sul, recebeu uma chamada para fazer uma audição para “O Crime do Padre Amaro.” O filme mais visto de sempre em Portugal deve muito desse sucesso ao magnetismo sexual da actriz e, com tantos voyeurs encapotados e adoradores reprimidos da nudez feminina na audiência, tornou-se num fenómeno de bilheteira.
Para esse filme, Soraia trabalhou com o realizador João Canijo, durante dois meses, antes de começar a filmar: “O João Canijo não esteve ligado ao filme, mas foi contratado para me ajudar a perceber o ofício de actriz, chegámos a trabalhar textos de Fassbinder e Shakespeare. A nudez para mim é fácil, o difícil é abordar o texto com verdade. Isso sim é que me interessava.”

O público, já se sabe, prefere gajas nuas. E as revistas sabem disso. Quando começou a perseguição mediática, Soraia mandou-se para Nova Iorque. Esteve lá três meses, estudou representação, não fez amigos, ia ao teatro e a concertos sozinha. Escrevia muito em caderninhos, nos cafés, ninguém a reconhecia. Depois chegou-lhe o guião de “Call Girl”, sobre uma prostituta de luxo e a corrupção em Portugal. E ela regressou a Lisboa.

“Não tiveste receio de repetir um papel muito sexual?”

“Claro que não, eu queria fazer aquela personagem, que era fortíssima. Não queria simplesmente ser uma actriz medíocre, queria fazer o melhor. Por isso sempre investi na minha formação. O meu objectivo não é aparecer nas revistas mas tentar ser o melhor que consiga.”

Foi para Madrid em 2008 onde esteve três anos, a estudar na escola de Juan Corazza, o mesmo que treinou Javier Bardem. Com os espanhóis diz ter aprendido outra forma de estar, mais aberta e livre: “Foi bom para mim porque sou muito reservada e fechada, ajudou-me a tirar algumas das minhas capas de protecção. O anonimato também foi bom.”
Os seus amigos vão chegando ao restaurante, o tempo da entrevista esgota-se, os pratos e as garrafas de vinho aterram na mesa. Não houve tempo para compras em lojas de mulher – Soraia não é adepta das tardes de shopping – nem para passeios turísticos por Lisboa. Com a noite acaba a conversa. Iniciam-se os copos. Soraia gosta mais de estar à mesa com comida e amigos do que diante de um jornalista que faz perguntas. E não acredita que haja um sex symbol que seja em Portugal – nem mesmo ela. Aliás, essa conversa, de tão batida, aborrece-a. Também não faz questão de falar dos seus filmes e actores preferidos: “Não sei, nunca sou capaz de fazer essas listas. Gosto de Gena Rowlands, dos papéis que fez com o John Cassavetes. E do Daniel Day-Lewis.” O jornalista percebe que estes temas perdem para o convívio da actriz com os amigos, o vinho e os pratos na mesa. Mas o jornalista insiste, olhando para os homens das obras que desmontam andaimes ali ao lado: “E as pessoas, os homens, metem-se muito contigo?”

“Não, nem por isso.”

Há uns meses o jornalista estava no mesmo bar que Soraia, com amigos comuns, e viu como um homem se aproximou sorrateiramente, tentando encostar-se a ela, sem dizer nada, sem cojones para falar-lhe frente-a-frente. Conto-lhe esse episódio. Ela responde: “Isso, acredita, acontece a todas as mulheres. Nós já estamos habituadas.”


Texto publicado na GQ de Agosto

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