segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Gato sem botas


Zé Diogo Quintela não é misantropo mas prefere estar em casa. O humorista que já foi processado por Pinto da Costa fala de futebol, de fruta e da sua carreira como atleta de luta greco-romana nos Estados Unidos. Também cita um filósofo português.






É a primeira coisa que salta à vista quando entramos no escritório da casa: a fotografia de um mangas em mangas de camisa, cabelo com popa na dianteira, pele curtida na cara, olhar de ex-pugilista, qualquer coisa entre o pintas do bairro e o vilão do filme. Zé Diogo diz: “Já viste a confiança do gajo? Às vezes fico aqui a olhar para ele.” Comprou a fotografia do campeão da bazófia a uma artista portuguesa e continua a olhar para ela com espanto: “É um sem abrigo da Praia da Rocha. O gajo tem aquele ar de sou muito bom, um grande campeão. Gosto muito.” O escritório tem livros, uma secretária, um plasma rodeado de Dvds e o computador onde acontecem as coisas mais importantes: “Queres ver a minha equipa do Fantasy League?”. Enquanto abre a página da internet comenta a compra de Raul Meireles pelo Chelsea: “Não me parece que vá calçar.” Depois apresenta o seu onze inicial (Rooney e Torres na frente de ataque) e indica no ecrã a sua posição entre os mais de dois milhões de participantes: “Cento e dezassete mil quatrocentos e treze.” Pergunto: “Quem ganha isto, no final, ganha o quê?” Zé Diogo responde: “Quem ganha isto é um Deus do futebol”.

O futebol aparece na conversa em vários momentos. Por exemplo, assim que cheguei a sua casa, quando atravessávamos um longo corredor: “Aqui faço grandes jogatanas com os putos, já partimos umas molduras na parede.” No seu escritório há uma mesa cujo tampo é o emblema do Sporting: “Era de um dos miúdos mas já não cabia no quarto e iam mandá-la fora. Disse logo que não.” O futebol já aparecera, durante o almoço, num restaurante perto da casa de Zé Diogo, antes de nos sentarmos no escritório para analisar a sua equipa na Fantasy League: “Estava cansado de escrever sobre futebol, ainda por cima o Sporting ganha pouco.” Durante alguns anos, teve uma crónica no jornal A Bola, que deixou após uma polémica com Miguel Sousa Tavares: “Eu respondi a uma crónica em que o Miguel Sousa Tavares, também na Bola, sugeria ao Pinto da Costa que me processasse. Já tinha tido prazer de ser processado pelo Pinto da Costa, por causa de um sketch dos Gato, e de ter ganho. Mas a minha crónica foi cortada pelo director do jornal e publicada sem que estivesse na íntegra. Dava a ideia que a minha resposta era tíbia.” Zé Diogo abandonou a colaboração e pôs uma queixa na ERC, que lhe deu razão.

Mais futebol ao almoço: “Tudo é normal no futebol português. É normal que um árbitro visite o Pinto da Costa dois dias antes de ir arbitrar um jogo do Porto com o Beira-Mar, em que o Porto foi beneficiado. O Secretário devia ter sido expulso aos dez minutos. Os adeptos do Porto dizem que nessa época até foram campeões europeus. O Secretário não foi campeão europeu porque o titular nessa época era o Paulo Ferreira. Nesse jogo com o Beira-Mar, o Porto jogou com os coxos, onde se incluía o Secretário, porque tinha uma meia-final da Liga dos Campeões. O Marselha fez o mesmo quando jogou a final com o Milan. Comprou o jogo para o campeonato, antes da final, porque ia jogar com os suplentes. Foi punido por isso. Mas eu não vejo os jornais desportivos a fazer estas análises. Aliás, esses jornais têm pouco de jornalismo e de desportivos. Jornalismo fazem pouco, porque se limitam a escrever sobre as agendas dos clubes e a reproduzir conferências de imprensa. E desportivos não são porque só falam de futebol. ”

Zé Diogo tem uns óculos de massa estilosos. Pergunto: “Isso é da moda.” Ele diz: “Por acaso não, foram os óculos que usei no programa que os Gatos fizeram no fim de ano, parti os meus e só tinha estes.” Depois regressamos ao futebol: “O caso Apito Dourado reflecte o que é o nosso futebol e o nosso país. É normal que o Pinto da Costa ofereça fruta, que são putas, a árbitros. É normal que dê conselhos matrimoniais ao pai de um árbitro. Claro, se eu fosse árbitro e o meu pai andasse com uma puta também queria conselhos do Pinto da Costa. Nunca acontece nada. Está tudo nas escutas mas não ficou provado em tribunal, era a palavra de um contra o outro. O facto de uma coisa não ficar provada em tribunal, não significa que não acontece. Não costumo ler filósofos nem citá-los, mas no livro do José Gil (Portugal, Hoje: O Medo de Existir), ele fala da não inscrição, as coisas não ficam marcadas na memória, em Portugal as coisas acontecem mas depois parece que se passa por cima com rolo compressor.”

É ainda durante o almoço que me fala da Carta dos Deveres da Celebridade. Há uns dias foi fotografado com a família na praia, por um paparazzo. Quando foi pai, os predadores da objectiva rondaram o hospital. “Pensei que se tens de mostrar à tua filha que por vezes é necessário bater em alguém, aquela seria uma dessas alturas.”

Mais tarde, com os pés em cima da mesa do escritório, descalça o sapato e a meia: “Fui à pedicura.” Pergunto por que é importante que um homem cuide dos pés. Zé Diogo explica: “Porque é uma ferramenta, temos de cuidar dela, dá para jogar futebol, correr e dar pontapés no rabo de um paparazzo.” Em tempos, um jornalista disse-lhe que as celebridades têm deveres. Zé Diogo respondeu: “Claro, os deveres das celebridades, consagrados na Carta dos Deveres da Celebridade que foi publicada no mesmo ano que a Carta dos Direitos da Criança.” Pergunto: “Também fazes manicura?” Zé Diogo responde: “Não, isso é uma mariquice.”

Quando fala dos jogos de futebol no corredor, da fotografia do pintas da Praia da Rocha ou da graça que tem acender um isqueiro para incendiar um traque, Zé Diogo tem postura de traquinas silencioso, o submarino da turma que apronta sem ser apanhado. Ele descreve a sua versão infantil assim: “Era um geek, sempre usei óculos e tinha uma pala no olho (por causa do estrabismo)”. Mas quando fazia composições preocupava-se em fazer os outros rir. E a família? “Tinha umas tias que me punham a fazer aquele jogo das diferenças no jornal. Nisso eu era muito bom.”

O último ano de liceu passou-o no Wisconsin, uma cidadezinha chamada Madison, com neve, liceu de filme de adolescentes e uma família de acolhimento: “Havia os jocks, os populares, os nerds. Eu era o estrangeiro. Também havia uma islandesa andrógina, um boliviano que era horrível e uma dominicana muito boa. Fiz luta greco-romano. Mas os gajos eram enormes. Perdi todos os combates” Pergunto: “E usaste aqueles maiots justinhos?” Zé Diogo responde: “Já não há fotografias disso.” Em Madison devorou séries televisivas como Seinfeld e Friends. Pensou que devia ser giro fazer aquilo. Mas antes de se tornar humorista houve o desinteresse com um curso de comunicação social: “Tinha professores que ditavam as sebentas nas aulas.” Descontente com o sistema educativo foi trabalhar para o protocolo da EXPO 98: “Levava o presidente da
Índia ou o ministro da agricultura belga a ver o Oceanário.”

Mandou uns textos para as Produções Fictícias. Como não lhe ligaram de volta, insistiu e foi recebido pelo fundador, Nuno Artur Silva, que lhe propôs, como teste, escrever dois sketchs para algum dos programas criados ali – Contra Informação, Herman, Maria Rueff, Conversa da Treta. Escolheu os dois últimos. Fez um workshop nas PF e acabou por ser convidado, juntamente com o Tiago Dores, para fazer parte da equipa que escreveu o Programa da Maria: “Lembro-me do excitamento de ver o primeiro episódio em casa e depois perceber que tinham mudado uma data de coisas. Era um rookie, claro que tinham de mudar.” Percebeu que podia fazer vida daquilo, os pais apoiaram-no e acabou por conhecer os restantes Gatos. Depois veio o blog, a participação no programa Perfeito Anormal, o programa Gato Fedorento na Sic Radical, o jogo do vai e vem entre a Sic e a RTP, e a entrada na política diária, durante a campanha para as legislativas de 2009, com o Esmiúça os Sufrágios. Ultimamente, as campanhas da Meo.

E agora?

“Agora escrevo a crónica do Público, os guiões, com os outros Gato, do Fora da Box e faço anúncios para essa grande empresa que é a Meo. Tens Meo? Não te convence a campanha?” Conto-lhe a opinião de Bill Hicks, comediante americano, sobre os humoristas que fazem publicidade: “É como beber um cocktail com um cagalhão lá dentro.” Zé Diogo ri-se e diz: “Isso é muito estúpido.” Esforço-me para explicar que Hicks, um espírito contrário, por vezes raivoso e pregador, que morreu de cancro, queria dizer que os comediantes perdem autenticidade e liberdade se são pagos por um empresa para promovê-la. “Isso não faz sentido. Há empresas que não me pagam e sobre as quais também não faço humor. O limite é aquele que me imponho. Mas olha, se calhar eu já bebi um cagalhão, na noite, quando saía e bebia tudo o que me davam.”

Não há planos para novos programas de televisão. Os Gato Fedorento não se querem repetir: “Não fizemos mais um Esmiúça os Sufrágios, nas últimas eleições, porque não havia nada de novo a dizer, já tínhamos entrevistado toda a gente, os temas andam sempre à volta do mesmo. Tens de terminar as coisas antes que o público pense que estás a repetir-te. Não valia a pena.” Diz que votou neste governo e espera não se ter enganado. Não mostra grande entusiasmo: “Não estou desalentado mas não tenho grandes ilusões com o estado do país. Custa-me ver amigos a ir para fora, tenho amigos na Polónia, em Londres, em Madrid, nos Estados Unidos, no Brasil.” Mesmo em tempo de crise, virou homem de negócios e investiu no negócio de um primo: “Pão que não engorda. Não, estou a brincar. É a Padaria Portuguesa. Pastelaria com boa relação qualidade preço e um ambiente cuidado.” Zé Diogo gosta de estar em casa: “Não sou misantropo mas sou um bocadinho anti-social.” Tem uma filha de seis meses: “Sou um stay at home dad”. O pai que fica em casa com a filha (e uma empregada), que dá passeios com ela pelas redondezas, que tem uma fralda ao ombro e um biberão.
Quando falamos das fotografias para o artigo, Zé Diogo pega na sua câmara e começa a auto-retratar-se. No email que me mandou mais tarde, com as fotografias, escreveu: “Podes pôr que o vaidoso humorista cedeu algumas das milhares de fotografias que fazem parte do seu espólio de auto-retratos. Zé Diogo só se fotografa a si próprio.”

Texto publicado na revista GQ de Outubro.

Sem comentários:

Enviar um comentário