quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Nêguinha literária





Ela decidiu ser escritora porque não sabia fazer mais nada e porque achou que seria uma carreira com benefícios – sem hora para acordar, sem hora para dormir, libertinagem em forma de pesquisa, viagens interiores, férias em cidades distantes, muitos groupies com livros para autografar, gente que despiria a roupa sob seu comando.

Mas ela só tinha escrito uns poemas e uns contos, coisa pouca, escritora bissexta e sacerdotisa da procrastinação. Publicou poemas na revista da faculdade, escreveu uma frase num muro de Santa Teresa, chupou o pau de um escritor que nunca lhe escreveu nada, nem um puto soneto ou um bilhete com o número de telefone.

Sexo para atingir a ascensão literária é uma merda, pensou ela, quando saiu do apartamento de um vate com prémios ganhos e traduções múltiplas. Antes tivesse fodido para receber um carro ou um vestido, pensou. Antes se deslumbrasse por alguém que pagasse as contas da luz e da internet mais o condomínio e jantares e um passeio que não acabasse sempre na cama, com ela recebendo a virilidade vaidosa de poetas, romancistas, letristas e editores.

Queria um senhor que tomasse conta de mim, pensou ela. Que se foda o feminismo e a literatura cocktail molotov. Eu quero colo e botox nas rugas na testa. Eu quero a geladeira cheia e uma casa na Ilha Grande.

Levava anos a escrever e nada. Os benefícios eram agora mais pragas que bênçãos. O seu fígado compadecia-se em certas manhãs, acordar tarde já lhe tinha custado alguns empregos, e nunca ninguém aparecera no seu quarto de hotel, durante um festival literário, pronto para adorá-la e para, mesmo antes de gozar, gritar bem alto: “A sua escrita mudou a minha vida.”

Putaquepariu para esses velhos da academia, comernocu romancistas preyboys, vãosefoder poetisas das colectâneas e roteiristas de merda nenhuma.

Ela decidiu que ia arranjar um emprego, um namorado com mastercard, visa e american express. Ia dar para ele todo a noite antes de deitar, ia dar ordens para a empregada, ia dar passeios enquanto as babás tomavam conta dos pequenos, ia dar o que fosse preciso para receber o que lhe fazia mais falta.

Literatura é coisa de veado e de putinha, pensou ela.

Literatura é coisa de teen gótica e de egomaníacos eloquentes, pensou ela.

Desde esse dia nunca mais frequentou saraus, recitais, lançamentos, entregas de prémios e camas com velhos romancistas – um deles disse-lhe que não tomava viagra porque a atenção dos jornais e das fãs, durante os dias do festival literário de Parati, garantiam dureza e desempenho de manhã à noite.

Literatura é coisa de velho tarado, pensou ela.

Literatura é coisa de mulher que fica para tia e não se masturba, pensou.

Havia uma milhão de razões para ela não ser feliz escrevendo.

Podem vê-la agora em bares de hotel e restaurantes sugeridos por uma qualquer revista, bebendo e jantando com homens de camisa social, relógio e perfume comprado no free shop. Podem vê-la também no calçadão, coberta de roupa e de protector solar para não ficar com a pele morena dos pobres. Nêguinha quer ar condicionado e vidros fumados e a ordem e o progresso que este país promete. Nêguinha já não é nêguinha. É princesa. Nêguinha ficou tão branquelas na alma como uma tarde de shopping no Leblon com valet parking e vinho argentino na esplanada de um bar.

Nêguinha já era. Agora tem de falar princesa. E princesas, como se sabe, não precisam de literatura para serem adoradas.

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