A van dispara pela Avenida Atlântica como se eu ainda estivesse numa dessas noites adolescentes em que um dos meus amigos, bêbedo e viril, puxava o travão de mão numa curva de terra. Tantos anos depois, pensei que já me tivesse escapado das corridas, da testosterona dos machos jovens ao volante e da euforia de pau feito quando se ultrapassa outro carro.
Dou-me conta que é a primeira vez que sou o único passageiro de uma van. Não há mais passageiros. O cobrador sacaneia e provoca o cobrador de outra van quando paramos num semáforo. Trocam insultos, mas é tudo sangue bom, uma forma de comunicar, tal e qual eu e os meus irmãos que temos de pregar um calduço depois de um beijo ou, pelo menos, destacar algum defeito físico - "Então cabeçudo",Tudo bem pencas" - antes de um abraço.
As duas vans arrancam lado a lado como se numa prova oficial, com direito a semáforo verde e mais de cinco quilómetros de avenida pela frente. Os cobradores portam-se como de costume: metade do corpo fora da janela, a cabeça perscutando clientes na calçada, cães de caça com pregões batidos: "Copacabana, Leme, Rio do Sul, tem vaga sentado."
Penso no que será a vida daquele miúdo que me cobrou a passagem e agora tem o tronco do lado de fora, avançando a grande velocidade. Penso quantas horas trabalhará por dia, quantos cobradores desatentos não retiraram a cabeça a tempo e foram decapitados por uma placa de trânsito ou esmagados contra um ônibus. Penso como será suportar todos os dias as horas de ponta quando as vans sobrelotadas agonizam nas filas de trânsito, com gente em pé, dobrada como corcundas, encontrando algum consolo nos celulares.
O motorista grita, o cobrador grita, são garotos em modo diversão, parece que estamos a cavalo e vamos matar cowboys, a velocidade aumenta e dou-me conta da minha obsessão com o perigo do trânsito no Rio de Janeiro. No livro que acabei de escrever há vários acidentes de carro. Também há o medo constante dos atropelamentos, que são aliás a principal causa de morte no trânsito no estado do Rio.
Falo muito disso, indigno-me com os alarves que estacionam os seus jipes na ciclovia (quem precisa de um veículo todo o terreno na cidade?). Discuto com os condutores que não páram para os peões (aqui pedestres) atravessarem a rua, passo-me da ginja quando um táxista tenta mandar uma bicicleta para a valeta, alerto para a boçalidade dos motoristas de ônibus que permanentemente andam em excesso de velocidade e que não fazem caso dos vermelhos - há uns meses vi uma família inteira, que se prestava a atravessar a rua, ficar a meio segundo da extinção coletiva por linchamento de ônibus.
Por outro lado, há algo infantil ou de bicho primário que por vezes assoma no meu peito quando subo o Vidigal no dorso de um mototáxi ou avanço numa van numa estrada com poucos carros, como a Avenida Atlântica a meio da manhã, algo que recupera a emoção da velocidade sem o medo ou o tino aconselháveis, apenas despreendimento e vamos adiante.
Penso em tudo isto enquanto a praia de Copa e o Pão de Açúcar se movimentam na janela a alta velocidade. Fixo-me nesta obsessão e na contradição que me provoca, penso por que motivo aparece e reaparece naquilo que escrevo. Talvez tenha sido o acidente de um amigo (que ainda está numa cama) durante a adolescência, ou o atropelamento (o meu primeiro funeral) de uma colega quando estavamos na faculdade. Talvez tenham sido aqueles contos do Rubem Fonseca - Passeio Noturno -, em que a mesma personagem sai para atropelar amantes e desconhecidos na noite carioca. Talvez seja o contacto diário com a selvajaria que é o trânsito nesta cidade. Mas no meio de todas estas reflexões faltou-me a decisão para agir. Dizer tão somente: "Pode ir mais devagar" ou "Eu saio aqui." Não o fiz, e ainda me pus a recordar a cena da adaptação de David Fincher do romance de Stiege Larson, The girl with the dragon tattoo, uma cena que não consta do livro e na qual o vilão a convida o herói para tomar um copo em sua casa . O herói suspeita que aquele homem que o convida é o mau da fita e, no entanto, em vez de ir embora, aceita o tal whisky. Mais tarde, já nas mãos do captor, o herói ainda tem de ouvir um sermão sobre a estupidez humana, qualquer coisa como: a vergonha ou o desconforto de dizer "não" resultam em coisas tão ruins e desagradáveis como a morte por homicídio.
Mesmo recordando a lição do filme não fui capaz de pedir ao motorista que reduzisse a velocidade.
Deixei-me ir conhecendo todos os riscos.
Como são estranhos os seres humanas e as suas regras de convivência.
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