quinta-feira, 12 de julho de 2012

Diário de um ficcionista: A FLIP relatada no tempo que demora a ouvir Haitian Fight Song



Sais da editora com o sol do meio dia enganando o inverno e passas pela Lagoa para te lembrares, antes da partida, de tudo o que esta cidade já te deu. Na casa do teu companheiro de viagem falas de séries de TV, futebol e livros. Seguem por Copacabana de carro, depois Botafogo, Flamengo, a baía e os morros, as palmeiras imperiais da Paissandu, mais uma recordação do esplendor do Rio agora que vais sair da cidade, já com uma terceira passageira no carro, pela estrada Rio-Santos a caminho de Paraty.

Passas pelo porto e os teus amigos ensinam-te coisas sobre a cidade, explicam-te a geografia, são ternos e atenciosos, desativam o cliché que diz que os cariocas abrem os braços num abraço mas nunca o fecham. Só por isso, já terias ganho algo nesta viagem. Mas há mais: param para comer um sanduíche de linguiça (uma merda), passam por Albanoel, um parque de diversões, agora abandonado, com papais noel gigantes com bocarras de onde saem escorregas. Pensas se as linguiças teriam LSD mas é verdade, os teus amigos explicam que um tal Albano Reis, benemérito de Quintino, quis presentear a população com o seu delírio natalício. Um pouco mais adiante, outra espantosa obra de Albano Reis: uma cidade do faroeste americano. Também abandonada. Mas ao veres roupa estendida e quando te informam que pessoas vivem ali, pensas que o propósito altruísta de Albano escreveu direito por linhas tortas. Nesse parque de diversões abandonado, vivem famílias que, sem casa, encontraram ali uma morada com teto.

No carro, depois da risota, todos se calam durante algum tempo e Raul Seixas canta na rádio. Olhas a magnificência do verde lá fora, as enseadas e as ilhas, mas também vês as cidades de beira de estrada, uma linha contínua de edifícios, barracões, armazéns, infinitas igrejas evangélicas. Uma diz: "Hoje, 18h00, Show de Fé." Pensas se, caso vivesses ali, também encontrarias conforto na pinga de um boteco beira-de-estrada e no sermão do pastor. Talvez seja essa noção de perspetiva que dão todas as viagens mas, ao veres onde moram os fodidos do Brasil, prometes que te queixarás menos e estarás mais agradecido.

Estamos próximos e outra vez a conversa, essa excitação de chegar ao lugar de destino: Paraty, Feira Literária, aka, FLIP.

Anoitece. Após a sessão inaugural da FLIP Luis Fernando Veríssimo entrou num restaurante, não sem antes deixar passar uma senhora adiante de si, o que só prova que os homens cavalheiros e com sentido de humor ainda não desapareceram totalmente do estado do Rio de Janeiro. Inicia-se o ritual da cachaça assim que cai a noite. Será assim daí em diante, dizem os veteranos da feira, justificando o ritual da pinga com a ocasião especial e com o facto ser um produto típico da região.

Sobre a cachaça, és logo advertido na primeira rodada por quem sabe: gostinho bom, fogo manso, euforia na segunda, descontrolo daí em diante, tenha cuidado, beba muita água antes de dormir, dor de cabeça provável.

Não confirmas nem desmentes. Mas a marchinha carnavalesca "Cachaça não é água não" anda contigo como uma banda sonora.


Nos dias seguintes vês Zuenir, Cercas, Dulce Cardoso, Franzen, Alexandra Lucas Coelho - a mais elegante dos moderadores -, e palhaços que dizem poemas, hippies que cantam rock, garçons que deixam o que estão a fazer e correm e gritam insanemente pela praça quando o Corinthians vence a Libertadores; uma editora portuguesa com coragem de navegador, três editoras inglesas tão fanáticas do The Wire como tu, Luiz Biajoni, autor cheio de graça, que escreveu a trilogia "sexo anal, boceta e boquete" e um infindável caleidoscópio de cores, frases, personagens e diálogos, cenas que dariam um conto, ideias que empolgam, como se vivesses vários dias em modo de ficção. 

Vês um homem tocar piano na tua pousada enquanto escreves uma crónica. Pensas que farás anos em breve e ficas melancólico. Pensas em Lisboa mas logo Paraty te suga e pensas que o teu próximo romance se passará ali. A viagem está agora mais que ganha. Mas os dias correm e conheces um gato meigo que vem a ti como um cão, conheces mais pessoas que ouves, com quem aprendes, outras a quem queres contar o que fazes, o que te levou ali, a graça de trabalhar numa editora e escrever livros, a bendição de estar numa cidade como Paraty, a oportunidade de ver que, tal como tu, há muito mais gente que ainda se emociona com estas coisas.

No segundo dia chega Jordi, o teu brother mais recente, é como se tivesses crescido com ele. Deslizam pela cidade apesar das pedras pé-de-moleque, vão a todas, conversam como se não houvesse amanhã, trocam histórias, atiram-se para a piscina, sabem o que querem, são dois portugueses em Paraty. Embora tenham ofícios diferentes (ele é fotógrafo), Jordi diz-te: "Isto que nós fazemos não é bem um trabalho..." e faz um gesto com os braços. Não diz mais nada, mas naquele movimento é isto que lês: "Fazemos isto com o corpo todo, a toda a hora, é bué intenso."

É, é sempre bué intenso.

Talvez tenhas cedido ao misticismo de Paraty e acredites agora que certos lugares, com certas pessoas, nos mudam para sempre. Mas há mesmo coisas que te importam, coisas de que precisas: os teus amigos, o teu labor, uma viagem, uma ideia para um livro. Vieste de Paraty com tudo isso.

O bilhete de volta do ônibus só custou 55 reais.   


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