quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Mudar de vida


Para os meus sobrinhos, Manuel e Francisco, que me levaram ao Zoo de Lisboa. Espero que cresçam num Portugal melhor que este

1
Ele quis ser primeiro-ministro durante muitos anos, mas a meio da legislatura já tinha olheiras de turno da noite e a cabeça afectada por dentro e por fora: a calvície acelerada, os cabelos brancos que, em vez de charme, anunciavam fadiga, sinapses que produziam sound bites, discursos de inauguração num quartel de bombeiros, em conferências de imprensa, em comícios de domingo. Ele quis ser primeiro-ministro, mas não aguentou a falta de horas de sono, as viagens de avião, a presença dos seguranças, o telemóvel em efervescência permanente.

Não tinha filhos nem mulher. Não teria tempo para eles e jamais conseguiria força para mudar fraldas, ajudar com a Matemática, sintonizar o relógio do leitor de DVD, namorar no sofá no intervalo de um filme. Havia demasiada gente a pedir a sua atenção para que quisesse uma família.
De manhã encontrava-se com embaixadores, almoçava com autarcas, participava na condecoração de atletas ao lanche, passava o pôr-do-sol com os assessores, no gabinete, preparando uma entrevista. Era maquilhado, desmaquilhado, não desligava o telemóvel durante o sono.


2
Durante a visita à maior fábrica de enchidos do país, os jornalistas perguntaram-lhe sobre uma revolução que acontecia longe no mapa e ele repetiu o que outros líderes mundiais tinham dito nas notícias – uma mensagem produzida automaticamente, soando como a voz gravada que anuncia as estações de comboio. Lamentou a perda de vidas de inocentes e desejou a chegada da democracia, por fim, àquele território já tão fustigado. Entrou no carro e não se lembrava do nome do país em questão. Não sentia empatia pelos familiares dos mortos nem desprezo pelo ditador. Estava exausto e não conseguia sentir nada. Assustou-se. Durante o resto da viagem, ficou com uma perna dormente, depois um braço, os dedos deixaram de tocar os estofos. Fazia frio por causa do ar condicionado e a alta velocidade da comitiva oficial deixou-o tão enjoado como na noite em que ganhou as eleições na universidade e bebeu vários litros de vinho. Há anos que não bebia, não fumava, há anos que não esquecia as horas para falar e beber e comer com os amigos.

Entraram na cidade e o primeiro-ministro pediu ao motorista para parar o carro. Dispensou os seguranças, desligou o telemóvel, deixou para trás a gravata e o casaco, despenteou-se um pouco, ordenou que ninguém o seguisse. Caminhou debaixo do sol, sentindo na pele o vigor das temperaturas altas. Entrou no primeiro lugar bonito que encontrou.


3
Há anos que não ia ao Jardim Zoológico. Ficou a olhar os tigres durante quase uma hora, apreciando como se espreguiçavam e abriam a boca sem cerimónias e se empoleiravam nos vidros como se quisessem brincar com as crianças. Ele gostava de ter a vida dos tigres.

Não se deu conta das famílias gordas, equipadas de câmaras de filmar nos telemóveis, que o gravavam, sentado e com as mãos nos bolsos, nem se incomodou com os guinchos dos miúdos mal comportados. Quando os tigres pareciam dormir, avançou zoo adentro, passando pela aldeia dos macacos onde os habitantes se catavam mutuamente, um nepotismo símio, uma promiscuidade que lhe parecia familiar. Um dos edifícios da aldeia dizia “Hotel da Barafunda” e de repente, olhando para aqueles macacos, pensou quão parecido era o código genético dos macacos com o código genético dos humanos.

Invejou a placidez dos gorilas, deu folhas a girafas com línguas malabaristas, enterneceu-se com lémures, crias de leopardo e hipopótamos bebés. Junto do fosso dos leões pensou no que faria se uma criança caísse lá dentro. Estava outra vez com delírios de grandeza, os mesmos que o impediram de reconhecer que não tinha cabedal para ser primeiro-ministro. Esse não era o seu destino. Esqueceu o salvamento das crianças em apuros e foi ver o espectáculo dos golfinhos.

Ela era tratadora, muito bonita, aguentava mais de um minuto debaixo de água e dava beijos no focinho dos golfinhos. Os animais empurravam-na para o fundo da piscina e depois catapultavam-na para a superfície – um salto gigante acima da água que pôs o primeiro-ministro a bater palmas e a dizer “uau” como as crianças de infantário em visita de estudo na plateia.

Ele tinha cometido um erro e soube-o, com toda a certeza, diante do esplendoroso salto daquela mulher: não seria capaz de mudar o país nem de solucionar todos os anseios do seu povo. Não estava feito para aquilo. Sentia-se cansado, desiludido e encardido. Talvez o país lhe perdoasse se ele fosse para um alto cargo internacional, mas não entenderia que deixasse o poder assim, sem avisar, um desistente apaixonado por uma mulher que tratava de mamíferos aquáticos, uma mulher que ainda nem sequer conhecia. Os aliados no partido iriam desertá-lo, os inimigos dariam entrevistas para falar da irresponsabilidade do primeiro-ministro. Mas alguma coisa tinha de ser feita para não perpetuar o erro. Ele gostava muito de vê-la saltar acima da água.

Nessa noite, depois de informar o país da sua decisão, procurou informações sobre golfinhos na internet. No dia seguinte voltou ao zoo. Não sairia dali enquanto não soubesse o nome da tratadora. Caso fosse necessário mergulharia no tanque a meio do espectáculo. Já tinha feito coisas bem mais ridículas por causas menos importantes.

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