segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Terra à vista



Depois de 10 horas de ruído transatlântico – barulho de motores, sonzinho estranho de filme de avião, cintos desapertados antes do tempo –, entro por fim no silêncio de um aeroporto antes do nascer do sol. Não há filas nem crianças aceleradas por Happy Meals nem taxistas gritando propostas para gringos recém-chegados. O céu clareia, mas pouco. O comandante do avião já avisara que o Rio estava coberto por uma peruca gorda de nuvens. O taxista confirma um boletim meteorológico que impede mergulhos na praia e, rodando a chave, dá-me música de rádio. Não toca uma canção de jeito durante todo o percurso – duetos românticos e baladas melosas –, mas o gargarejar do trânsito, tão denso ao raiar da manhã, seria bem pior para quem acabou de chegar, acentuaria a estranheza de estar noutro fuso horário, noutro hemisfério, pronto para iniciar uma vida nesta cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro.

O rádio toca enquanto a paisagem de barracos de tijolo e antenas parabólicas, em dia cinzento com possibilidades de chuva, se prolonga durante quase toda a viagem. Em muitos daqueles barracos estará tocando um rádio a pilhas, um Cd antigo, um iPod ligado a colunas de som. Eles despertam com música, tomam café com música, têm celulares que providenciam música.

Saio do táxi e um bar de sucos na Gávea, onde tomo o primeiro pequeno-almoço, oferece banda sonora. Cruzo a estrada, chego ao apartamento das amigas que me recebem, ainda estremunhadas, e logo escolhem um Cd para tocar oferecendo-me o segundo pequeno-almoço.

Nas primeiras semanas nesta cidade fui recebido por música: o concerto de Roberta Sá e o seu samba com elegância marota em palco; os Primal Scream, no Circo Voador, entre coqueiros e os arcos da Lapa e os arranha-céus espelhados do Centro. O Rio é toda esta mistura: meninas vestidas como londrinas, agarradas ao seu iPhone, moleques negros e magros a pedalar em bicicletas, transportando gelo para as barracas de praia, os Primal Scream a tocar no Circo Voador e lá fora, na confusão descamisada e transpirada da Lapa, travestis e putas e turistas e indígenas hedonistas suando com a batucada. O Rio é o encanto perpétuo de Marisa Monte e o pop cristão do padre Marcelo. O Rio é Chico Buarque e funk de palavras que incentivam à sacanagem com mulheres sem calcinhas (“as preparadas”).

Já ouvi vinis, descobri cantores, fui ler sobre compositores. Há uma banda sonora nesta nova vida. Pedalo pela cidade com a rádio tocando nos headphones. Escuto histórias sobre a escandalosa Angela Rô Rô (Oiçam “É de mais”) ou sobre o gosto de Tim Maia por senhoras prostitutas.

As ruas têm nomes de músicos, o hino do Rio é uma marcha de Carnaval – “Cidade Maravilhosa”, e até o aeroporto onde aterrei tem nome de artista: Tom Jobim.

Depois do ruído aéreo da viagem, depois do silêncio do aeroporto ainda por despertar, entrei no Rio guiado pela música, e sei que esta só poderá ser uma história de amor com banda sonora.

1 comentário:

  1. excelente. viajámos e esperamos que essa cidade, a (sua) banda sonora e essa mistura o inspirem para novos textos e partilhas. por cá continuaremos. um abraço, dg

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