quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Contratempos e acasos do mercado imobiliário carioca


Era um prédio no Rio de Janeiro mas podia estar nalguma cidade russa que nunca saiu nas notícias da televisão. Os ônibus avançavam em manada pela Avenida Nossa Senhora de Copacabana e faziam estremecer as coisas na calçada: montras de lojas com roupa barata, velhas que lhe pareceram iguais às velhas de um bairro lisboeta, pretos pedalando velozes para entregar encomendas, um pedinte, outro pedinte, um pedinte júnior, cadeiras de plástico amarelo num boteco pé sujo, a porta para as galerias onde deveria encontrar a entrada do prédio. Era estrangeiro mas já aprendera que galerias eram um shopping de outros tempos, outras décadas, lugares de luz morta e muitos espelhos nas paredes. Passou por uma loja de flores: a única coisa bonita que havia naquele túnel. As galerias eram o lugar onde os sonhos com um tumor nos testículos iam finar-se. No entanto, lado a lado, estavam duas promessas de salvação, duas igrejas evangelistas. Uma de cores azuis e outra de cores vermelhas. Benfica – Porto, pensou. TMN e Vodafone. Blackberry e iPhone.

Caminhou para a entrada do prédio. O porteiro lia um tablóide, alguma coisa sobre a Mulher Maçã e mais umas quantas notícias de abusos e estupros. A agenda noticiosa do costume. Nem ergueu o focinho do jornal. Ele entrou no elevador, puxou a grade ferrugenta que guinchou todos os nove andares. Foi uma viagem lenta, com o espectáculo das pastilhas elásticas coladas na parede em movimento e mensagens escritas a vermelho: “Nina boqueteira racista só chupa brancos”. Abriu a porta e, entrando nos corredores brancos de sanatório antigo, pensou nalgum filme de terror que vira na infância. Encontrou o apartamento e bateu na porta. Nada. Rodou a maçaneta e entrou. No lado esquerdo encontrou um banheiro encolhido, onde sexo no duche só seria possível para um casal de contorcionistas bem ensaboados. Depois havia um espaço comum com kitchenete e sala. Uma só janela, ao fundo, tinha vidros martelados, baços como uma tarde de chuva. Ele avançou até ao meio da sala. Uma vez que não era proprietário de móveis, falta de espaço para as suas coisas não seria um problema. Abriu a janela e o estertor do trânsito trepou prédio acima, um desconcerto de escapes e buzinas e motores de camiões. Ouviu uma voz:
“Ainda bem que abriu essa janela. Como é que aguenta este fedor?”
“Que fedor?”
“Só pode estar brincando. Esse cheiro de fraldas para velhos incontinentes.”
“Você é a Letícia? Com quem falei ao telefone para ver a casa?”
“Oi? Fala devagar moço.”
“Eu estou aqui para ver o apartamento.”
“Isso já deu para perceber.”
“E devia falar com uma Letícia, você é a Letícia?”
“Claro que não. Eu lá entraria num apartamento que queria alugar dizendo que cheira a fralda usada de velho.”
“Desculpe, mas como é que a senhora sabe a que cheiram fraldas de velho? Qual é a diferença entre fraldas de velho e de bebé?”
“Você é português, né?”
“Nota-se?”
“Um pouquinho.”
“Piadinhas à parte, qual a diferença entre o cheiro de fraldas para velhos e para bebés?”
“Lá em Portugal você tem parentes mais velhos?”
“Sim.”
“Já foi nesses lugares onde os mais novos botam os mais velhos?”
“Um lar de idosos?”
“Deve ser isso aí. Não conhece o cheiro? O cheiro de fraldas de velhos que ficam vendo TV o dia todo, confundido o enredo da novela das sete com a história da novela das oito? Isso aqui é Copacabana, um gigante lar de idosos. Dizem que é o bairro mais envelhecido do Rio. Nesse apartamento viveu algum velho que esticou o pernil recentemente. Aí a família deu uma limpezazinha e botou o apê para alugar.”
“O seu sotaque é meio estranho. Você é de onde no Brasil?”
“Está-me paquerando portuga? Conversinha de flirt de boteco às dez da manhã num cemitério de velhinhos? Não vem com garfo que hoje é dia de sopa. Mas, vem cá, quero-te falar de coisas mais sérias. Vou-te dar uma dicas para procurar casa no Rio. ”
“Muito obrigado.”
“Tão educado, que bonitinho. O Ubaldo Ribeiro escreveu que os portugueses têm boas bundas, como os forcados, mas esqueceu de dizer que são muito polidos no trato.”
“Está a tentar engatar-me?”
“Oi?”
“Falávamos do mercado imobiliário do Rio.”
“Isso. Está tudo muito caro, esqueça esses bairrinhos perto da praia. Leblon só se tiver disposto a pagar duas vezes mais que o empresário do novo sucesso brasileiro ou alguma vedetinha da MPB. Ipanema esquece, tem mais americanos que a Disney. Só se você fosse viado. Talvez encontrasse um sugar daddy de Ipanema e viveria feliz entre a Farme de Amoedo e as viagens para a Europa.”
“Não sou viado. Mas também não sou homofóbico. Esses comentários são lamentáveis.”
“Está pregando moral e bons costumes, portuga?”
“Não devias ser tão amarga. Quem é que a deixou nesse estado bélico?”
“E você pensa o que, que só porque sou brasileira e você tem um sotaque eu vou dar para você? Mil anos de história e bigodinho safajeste e não sei quê? Tem juízo portuga.”
“Voltemos ao mercado imobiliário. Você está a procurar casa?”
“Faz dois meses. Do Jardim Botânico à Lapa, passando pelo Humaitá, Botafogo e Flamengo. Depois considerei Copacabana e, veja só, acabei aqui, num quarto de geriátricos com um português de bigode. Você quer tomar um chope e eu te conto tudo sobre o mercado imobiliário.”
“Claro, mas não devíamos esperar pela Letícia?”
“Eu deixo um bilhetinho. Tem papel? Aqui vai: Querida Letícia, desculpe mas eu e o português achamos que o alto preço que você pede pelo apê não esconde o cheiro de merda. Especulação faz mal ao coração. Se cuide.”
Eles saíram juntos e desceram no elevador enquanto ele assobiava a música do “Tubarão.” Nas galerias entraram numa das igrejas, ouviram as palavras do pastor. Na rua, assim que passou mais um ônibus truculento, ela disse:
“Queres mesmo ir beber um jola?”
“Não sei, afinal de contas pouco passa das dez da manhã.”
“És uma seca.”
“E tu voltaste a chegar atrasada, se a Letícia tem aparecido antes de ti eu tinha alugado aquele apartamento. Preciso de ti para negociar.”
“Não sobrevivias um dia em Marraqueche.”
“O teu sotaque zuca está a melhorar. Mas ainda vacilas nalgumas coisas.”
“Preferias que fosse brasileira?”
“Para quê ser uma coisa se podes ser duas?”
“Então vamos transar?
“E porque não, afinal, só temos um apartamento para ver ao meio dia.”

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