sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

O rapaz da Rua Capitão Rei Vilar



Umas vez andámos ao estalo, com os patins nos pés, no rigue de hóquei do colégio, e julgo que ali, aos doze anos, resolvemos definitivamente as nossas diferenças. Nunca mais nos chateámos ao ponto de partir para a ignorância. E isso não significa que estivessemos sempre de acordo. Por exemplo, num jogo de futebol, uns anos mais tarde, quando a testerona da adolescência resultava em frequentes entradas a pés juntos, tu preferiste queixar-te de um pitbullzinho da equipa adversária, dizendo, "Este gajo é maldoso." Eu preferi fazer-lhe um carrinho aos joelhos. Nem sempre estivemos acordo, já se vê. Muitas vezes, os meus ataques de nervos contrastavam com a serenidade do teu semblante, uma postura "sou-inocente-senhor" que te garantiu a alcunha de "submarino", junto dos professores, pela forma como sempre te safavas, com cara de pau impecável, das merdas em que nos metíamos.

Nunca foste um santo, mas o meu descontrolo emocional, toda a revolta com o mundo, eram mitigados pela estabilidade e amizade que pulsavam dentro de ti. Quando fomos knockauteados pela tequila nas férias de verão pré-universitárias, perdeste a noite na casa de banho da discoteca, assegurando-te de que eu, prostrado de tanto vomitar, não me afogava na retrete. Outra vez, carreguei-te em braços, depois de uma noitada, quando o teu joelho, vítima de um despiste de moto, parecia um melão pronto a verter líquido alienígena. 

Não são gestos de generosidade extraordinária, nunca te salvei a vida, nunca me deste um rim. Mas, agora que a idade adulta nos obriga todos os dias a fazer coisas e depois ainda mais coisas, e há sempre uma lista, uma agenda, uma prioridade, dou-me conta da benção que era o tempo que tínhamos em mãos, quando os amigos eram a nossa tribo, quando a disponibilidade para as aventuras era constante,  quando havia o vagar para estarmos sempre juntos. Tínhamos a cumplicidade e  o dialecto de um gangue, a nossa amizade era regida por ideais românticos de lealdade, hedonismo e gajas. Essa convivência - passávamos mais tempo com os amigos do que com a família -, esse acumular de histórias, experiências e disparates, tem agora mais valor no mercado das coisas sem preço do que um rim fresco para transplante.   

Essas são ainda a minhas memórias mais definidas. Posso lembrar-me de respostas cómicas a professores, de jogadas inteiras em campeonatos de futebol da escola, do nome do bar sinistro - Faunos -, em Cáceres, onde baratas subiam paredes e um insistente travesti marroquino afugentou a clientela . 

Hoje, se nos encontramos, revisitamos todas essas histórias, em grupo e em voz alta, para cansaço das mulheres com quem casámos. Mas connosco funciona ao contrário, em vez de aborrecimento, há um deleite a cada detalhe narrado, um regozijo com a simples referência de personagens como o Cabra, o setor Mocho, o Padre Miguel, o Pompeu dos Morgados ou o sor Filipe da Casa dos 17. E não nos importa saber já o desfecho de cada história, porque o que nos interessa é a viagem no tempo, estar ali outra vez, reproduzir essa existência tão leve como andar de moto sem capacete e dar mergulhos no Guincho, quando eram mais as certezas do que as preocupações, e nos sentíamos tão na crista da onda como um bando de cowboys.   

E agora, que estamos longe, e quando a vida passou também a tirar-nos coisas - em vez de só dar -, deixa-me dizer-te que nem só de memórias vive a nossa amizade. É mais do que isso. Está inscrito nas costuras, tatuado nas juntas, manifesta-se ainda, todos os dias, quando ando de bicicleta, faço uma piada de jeito ou levanto as sobrancelhas de diabinho prestes a passar-se com alguma coisa. Sei que muito do que somos  ficou definido nesses anos. Vejo muito dos rapazes que eramos nos homens de agora. E se nesse jogo de espelhos identifico as perenes rachas da imaturidade, também vejo o escudo para enfrentar o peso de certos dias; vejo a alegria e o desvario infantil, a necessidade de sair da ordem, da lógica, da expectativa. E podemos acreditar, ainda que por momentos, que a vida é demasiado importante para ser levada a sério.

Um abraço,

Kit Maroto

          
       

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