sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Trezentos e sessenta e dois dias






“Not that I want to be a god or a hero. Just to change into a tree, grow for ages, not hurt anyone.” -Czeslaw Milosz





Miúda da Gávea,

Nunca imaginaste que as manhãs pudessem ser tão limpas e importantes, com tanta luz a elevar o teu corpo quando pedalas na orla e a maresia é uma viagem no tempo: outra vez a Praia Grande e o fôlego da Serra de Sintra, miúdos a gritar na areia molhada da maré baixa, os teus pais tão novos como és agora, a tua irmã precisando de ajuda para ir ao banho.

Nunca imaginaste que os dias começassem assim que o sol aparece sobre a pedra do Arpoador, logo tu, bicho de metabolismo nocturno, exemplo máximo da prática do verbo inglês to linger: na cama, no sono, nos dez minutos após o despertador.

Linger on, miúda da Gávea.

Desde que o barco zarpou de Lisboa, já foste miúda de Ipanema, garota do Alton Leblon, tiveste um pé (uma perna, a curva do pescoço) no BG. Chegaste, por fim, a porto seguro, numa rua com o nome do verdadeiro santo padroeiro de Lisboa.

Por mais voltas que dês, há este fio de vai e vem, duas cidades, os aurículos cá e os ventrículos lá, a pulsação dessintonizada. É, para ti, uma inquietação nova. Mas deixa-me dizer que faz parte da bagagem de quem dá o salto. Deixa-me dizer que é bom andar para trás e para a frente nesse fio e que os regressos a Lisboa serão sempre tão assombrosos como os regressos à infância que fazes todas as manhãs assim que entras na maresia. No regresso, não receberás apenas a beleza e o amor de um lugar que será sempre teu - terás também o jogo de espelhos, a perspectiva do viajante, vais chegar diferente e mudada a um lugar que imaginas igual - embora nunca esteja. E isso também conta.

Ainda que tenhas demorado dez horas de avião para chegar ao Rio de Janeiro, a verdade é que só meses depois, tantos como a viagem da corte em 1808, pareces chegar a porto seguro - demasiadas casas, agruras burocráticas, azares do acaso carioca. Estás cansada da viagem, mas não apareces de cabelo rapado, como as aristocratas que, depois de uma praga de piolhos a bordo, tiveram de recorrer a navalhas, surgindo ao povo do Rio com turbantes. Dizem que chegaram maltrapilhas e sujas, mas eu vi-te chegar ao aeroporto do Galeão, e garanto que se as mulheres portuguesas usam turbante, hoje ou há duzentos anos, será sempre por questões de estilo. Ficam-te bem as fitas na cabeça e esses óculos escuros. Come and star in my movie.

Dez horas de avião, alguns meses depois, estás por fim na tua nova casa. Na tua nova cidade. Na tua nova vida.

Muitos anos antes de saber que viverias no Rio ou que estaria a escrever-te neste momento, um escritor português que te conhece bem, abria o romance de estreia com uma frase: "Acendam-se as luzes para o mundo começar."

Estava, sem saber, a referir-se exactamente a este dia.

Linger on as long as you like, miúda da Gávea.

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