quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Casa



“Vê se vês terras de Espanha
areias de Portugal
olhar ceguinho de choro.”


para Gonçalo Salgado


Não lhe chamemos visão que, de místico, isto não tem nada. Digamos antes que, na ribanceira do sono, me apareceu a memória de algum lugar onde já estive sem saber ao certo qual. Era uma rua de pedra, uma rua cor de terra como só há em Espanha, com luzes acesas nas casas, nos bares, nos corações da gente callejera que oferece cigarros e bebe e conversa até altas horas. Um desses lugares onde parávamos nas viagens pelo sul da Europa, comendo franguinhos assados numa pensão para poder beber cervejas em discotecas da moda. Por exemplo, o fiasco de um final de ano em Cáceres, com baratas a subir as paredes de um bar – Faunos – que rapidamente se revelou um prostíbulo da subcave do bas-fond, o que levou um dos nossos amigos a disparar porta fora receando as investidas de uma marroquina que, até hoje, suspeitamos chamar-se Muhammad ou mesmo José Luís. E aquela estação de comboios onde se comiam churros a desoras, o portuga da malandragem que nos serviu de guia e que, soube-o anos mais tarde, montou um negócio de sites porno. E a erva de produção caseira, transportada numa lata de Herbalife, quando eu ainda não fumava – soubesse o que sei hoje e esses dias em Cáceres teriam sido muito mais doces, mais de fumo e risota imparável.

Esta semana falámos, por email, e quando tu devias ir deitar os teus filhos e eu devia estar a cozinhar os bifes de frango, estávamos antes a trocar emails disparatados exactamente como quem troca piadinhas na aula de Biologia da Dina – numa dessas aulas, com a barriga em desarranjo, fui duas vezes à casa de banho para, no regresso, ouvir o coro: “Cagão, cagão”. Tenho a certeza que também gritaste. Eu teria feito o mesmo.

Nesses emails falámos de trabalho mas logo te puseste a dizer que tinhas um treinador igual para cada um dos nossos amigos – e até foste buscar o Marinho Peres ao fundo do baú.

O que ter quero dizer é isto: esqueci-me, durante muitos anos, o que era uma casa. Sabes que andei por aí, de cidade em cidade, de pessoa em pessoa, dizendo que a minha vida cabia em duas malas de viagem, um slogan de t-shirt que achava tão dogmático como acessório para conversas de engate. Talvez seja da idade, talvez seja o segundo acto disto que andamos para aqui a fazer, talvez tenha sido o inferno de alugar um apartamento no Rio, quatro meses e cinco casas depois, um nomadismo que me traumatizou, fui enganado, enrolado, fiquei especado, perdi, preyboy.

Mas exactamente no dia do teu aniversário, entro por fim na casa onde viverei, espero, por uma longa temporada. É um dia importante para mim, o céu amanheceu tão azul que uma nuvem se dissolveria caso arriscasse aparecer no horizonte. Uma daquelas manhãs em que sabemos que tudo rolará impecavelmente, manhãs com o mesmo aroma das manhãs de praia quando éramos crianças e a maré baixa era campo de futebol, cenário de guerra de areia, território de piscinas. Numa manhã destas sabe bem ter uma casa, ser parte de um bairro, falar com o vizinho quando vamos ao pão, como aconteceu há umas horas, assim que pus o pé na rua e me lembrei que era o teu aniversário.

Nessa viagem matinal pensei em ti e soube, já o sei há algum tempo, que ter uma casa me fazia falta. E não falo apenas do apartamento na Gávea que, espero, visitarás e onde repetiremos as mesmas histórias de sempre – os estaladões do professor de francês Sales Gomes, o capotanço de tequila algures no Algarve, as desventuras do Guilherme Pancadas, do Fernando Jabum, do senhor Herculano que tomava conta dos balneários e transpirava bagaço.

Não falo apenas do meu apartamento. Falo de todas essas coisas, das conversas sobre o Marinho Peres às cenas de pancadaria com forcados de Santarém, mas também aquilo que, ao longo dos anos, por orgulho macho ou apenas porque sim, não foi preciso dizer.

É nas tais ruas de Espanha que cruzámos vezes sem conta de copo na mão e a esperança de algo extraordinário, no pelado do Vale de Santa Rita onde as tuas qualidades de central incluíam golos em cantos e pontapés de canela, nos reencontros em que a parvoíce é o veículo de comunicação mais usado, nas recordações do senhor António da mercearia, que conduzia de cabeça à banda, do senhor Henrique, que nos treinou com a famosa táctica do fole, do setôr Bagaço, que mandou a turma inteira para a rua, é em tudo isso que também se encontra agora alicerçada a minha casa.

Talvez tenha sido necessário ter viajado milhares de quilómetros, durante anos, para perceber a importância de um porto de abrigo. Tu já o sabias muito antes de mim.

Parabéns, com cadeiras pelo ar e gajos pendurados nos candeeiros.

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