segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

A que cheiram as alfarrobas?




Querido avô,


Desculpa se hoje não estou contigo. Desculpa se, mesmo que supere o trânsito carioca e force a minha entrada num avião com destino a Lisboa, jamais chegarei a tempo de estar outra vez diante de ti, tão pequeno como quando me lançavas ao alto, tão menino que te via como colosso das histórias de aventuras - as tuas mãos de homem trabalhador pegando-me como se eu estivesse no Espaço, os teus olhos tão azuis como os dos heróis dos filmes, o after-shave na tua cara escanhoada garantindo-me que era assim que deveriam cheirar os homens duros.

Hoje sou outra vez menino, caminhando pela rua abaixo como quando me contaram que a tua filha - a minha mãe - tinha morrido, um mágoa sem pudor, de creche, indiferente aos preceitos da gente grande que diz Os meus pêsames ou Ele já estava doente há muito tempo.

(Estou longe, sinto saudades, tenta entender a pieguice.)

Sou outra vez menino porque, há uns anos, tínhamos invertido os papéis assim que comecei a acompanhar-te nas consultas ao hospital de Santa Maria - um baque doloroso e súbito na minha vida, como um acidente de carro no dia de aniversário, uma implacável evidência: ao estar contigo num hospital, durante meses, um vez por semana, senti-me adulto pela primeira vez. Há anos que eu pagava impostos, contas, multas. Há anos que usava contraceptivos, que votava em branco e até escrevia livros. Mas nunca, como nas salas de espera do hospital, percebi a inexorável marcha das coisas da gente grande: era eu quem tinha de cuidar de ti naquele momento.

Como poderia voltar a ser menino, depois de estar a teu lado, vendo como tremia a caneta prestes a assinar o termo de responsabilidade para que te cortassem a perna abaixo do joelho? Como ser o menino que esperava das tuas mãos as fatias de melancia nas férias grandes, se o teu sorriso nervoso no hospital contaminou tudo com o teu medo e o meu medo?

Foi preciso acalmar-te para que a tua caligrafia fizesse sentido no papel. E segurei-te no pulso e quis ser tão forte como eras sempre que chegavas a casa e me atiravas ao ar.

Um dia, fui fumar um cigarro no parque de estacionamento do hospital e vi um homem sozinho, desmoronando-se de choro dentro de um carro. Um choro ancestral, de bicho, um choro de revolta e de derrota, um choro que eu desconhecia mas que, após tantas visitas ao hospital, me pareceu mais uma evidência incontornável dessa idade adulta que eu passara a conhecer. Uma dia, pensei, também eu vou ter de chorar assim.

Depois disso visitei-te em vários hospitais, uma vezes eras internado de urgência, outras tinhas um cirurgia marcada. Eu tentava encontrar sempre um contraponto para a tristeza do fim das visitas nas viagens de carro que fazia com o teu outro neto homem, e nas piadas que contávamos, usando um vocabulário só nosso, encontrando refúgio no lado mais feliz da memória de dois irmãos.

Certa madrugada, entraste comigo no Santa Maria para seres preparado para uma cirurgia bem cedo. Mas ficámos todo o dia em espera. Aproveitei para perguntar-te coisas que não sabia do teu passado, fiquei a saber-te mais homem e menos avô, percebi a dureza, os fracassos, as perdas tão irreparáveis - dois filhos mortos por doença - que fizeram com que a luta (ainda mais após uma perna amputada) começasse a parecer-te definitivamente injusta.

Como iria o homem gigante, que diziam ser parecido com John Wayne, viver com uma prótese? Como iria abandonar a alegria do seu assobio, escada acima, quando chegava para almoçar com os netos, pela sobrevivência de um sofá, diante de programas de TV?

Se eu tinha chegado à idade adulta, tu atravessavas esse meridiano a partir do qual são mais as coisas que se perdem do que aquelas que se ganham.

No final desse dia longo, já de noite, ainda sem sabermos quando irias a operar, após horas de silêncio, de merendas, das tuas queixas por causa das dores e de um desfilar de gente doente, debilidades humanas e alguma ternura, o meu irmão chegou, por fim, e substituiu-me naquele banco de hospital.

Por vezes a dor é uma dormência, numa rua fria, sem nenhum destino. Saí do Santa Maria e apetecia-me cair dentro de uma barrica de whisky, entrar no primeiro comboio para lado nenhum ou simplesmente teletransportar-me para o tempo em que tu assobiavas fados ao subir a escada, em que conduzias camionetas e me deixavas ir lá atrás, na caixa aberta, esse tempo em que adoptavas cães rafeiros e me levavas a apanhar alfarrobas, de tal forma que ainda hoje posso cheirar a serra algarvia a milhares de quilómetros de distância.

Foste operado poucas horas depois. Passaram já sete anos.

Esta manhã o teu outro neto homem ligou.

O avô morreu.

E eu no Rio, eu a olhar por uma janela, a ver árvores estranhas, garotos de escola, um silêncio desconhecido, de filme interrompido por falha mecânica, até que do outro lado

Mano?

E eu.

Sim.

E, no entanto, lá fora não era lá fora, o Rio não era meu, a Gávea era-me alienígena, alguma coisa crashou na máquina que faz o espaço e o tempo.

Desci rua abaixo, a passo largo, querendo escrever-te porque não posso estar aí. Os óculos escuros eram de homem adulto. Os olhos eram outra vez de menino.

Até sempre, avô António

Hugo




sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

O rapaz da Rua Capitão Rei Vilar



Umas vez andámos ao estalo, com os patins nos pés, no rigue de hóquei do colégio, e julgo que ali, aos doze anos, resolvemos definitivamente as nossas diferenças. Nunca mais nos chateámos ao ponto de partir para a ignorância. E isso não significa que estivessemos sempre de acordo. Por exemplo, num jogo de futebol, uns anos mais tarde, quando a testerona da adolescência resultava em frequentes entradas a pés juntos, tu preferiste queixar-te de um pitbullzinho da equipa adversária, dizendo, "Este gajo é maldoso." Eu preferi fazer-lhe um carrinho aos joelhos. Nem sempre estivemos acordo, já se vê. Muitas vezes, os meus ataques de nervos contrastavam com a serenidade do teu semblante, uma postura "sou-inocente-senhor" que te garantiu a alcunha de "submarino", junto dos professores, pela forma como sempre te safavas, com cara de pau impecável, das merdas em que nos metíamos.

Nunca foste um santo, mas o meu descontrolo emocional, toda a revolta com o mundo, eram mitigados pela estabilidade e amizade que pulsavam dentro de ti. Quando fomos knockauteados pela tequila nas férias de verão pré-universitárias, perdeste a noite na casa de banho da discoteca, assegurando-te de que eu, prostrado de tanto vomitar, não me afogava na retrete. Outra vez, carreguei-te em braços, depois de uma noitada, quando o teu joelho, vítima de um despiste de moto, parecia um melão pronto a verter líquido alienígena. 

Não são gestos de generosidade extraordinária, nunca te salvei a vida, nunca me deste um rim. Mas, agora que a idade adulta nos obriga todos os dias a fazer coisas e depois ainda mais coisas, e há sempre uma lista, uma agenda, uma prioridade, dou-me conta da benção que era o tempo que tínhamos em mãos, quando os amigos eram a nossa tribo, quando a disponibilidade para as aventuras era constante,  quando havia o vagar para estarmos sempre juntos. Tínhamos a cumplicidade e  o dialecto de um gangue, a nossa amizade era regida por ideais românticos de lealdade, hedonismo e gajas. Essa convivência - passávamos mais tempo com os amigos do que com a família -, esse acumular de histórias, experiências e disparates, tem agora mais valor no mercado das coisas sem preço do que um rim fresco para transplante.   

Essas são ainda a minhas memórias mais definidas. Posso lembrar-me de respostas cómicas a professores, de jogadas inteiras em campeonatos de futebol da escola, do nome do bar sinistro - Faunos -, em Cáceres, onde baratas subiam paredes e um insistente travesti marroquino afugentou a clientela . 

Hoje, se nos encontramos, revisitamos todas essas histórias, em grupo e em voz alta, para cansaço das mulheres com quem casámos. Mas connosco funciona ao contrário, em vez de aborrecimento, há um deleite a cada detalhe narrado, um regozijo com a simples referência de personagens como o Cabra, o setor Mocho, o Padre Miguel, o Pompeu dos Morgados ou o sor Filipe da Casa dos 17. E não nos importa saber já o desfecho de cada história, porque o que nos interessa é a viagem no tempo, estar ali outra vez, reproduzir essa existência tão leve como andar de moto sem capacete e dar mergulhos no Guincho, quando eram mais as certezas do que as preocupações, e nos sentíamos tão na crista da onda como um bando de cowboys.   

E agora, que estamos longe, e quando a vida passou também a tirar-nos coisas - em vez de só dar -, deixa-me dizer-te que nem só de memórias vive a nossa amizade. É mais do que isso. Está inscrito nas costuras, tatuado nas juntas, manifesta-se ainda, todos os dias, quando ando de bicicleta, faço uma piada de jeito ou levanto as sobrancelhas de diabinho prestes a passar-se com alguma coisa. Sei que muito do que somos  ficou definido nesses anos. Vejo muito dos rapazes que eramos nos homens de agora. E se nesse jogo de espelhos identifico as perenes rachas da imaturidade, também vejo o escudo para enfrentar o peso de certos dias; vejo a alegria e o desvario infantil, a necessidade de sair da ordem, da lógica, da expectativa. E podemos acreditar, ainda que por momentos, que a vida é demasiado importante para ser levada a sério.

Um abraço,

Kit Maroto