terça-feira, 27 de março de 2012

Trip down memory lane

Dois textos antigos. Um sobre uma viagem, com amigos, para ver os Black Keys em Amesterdão. E outro sobre Don Draper, para celebrar o regresso de Mad Men.


Rock & roll, um fim-de-semana em Amesterdão






Tighten up
Quem viajou com amigos sabe que é sempre assim. Começa logo no aeroporto: as piadas, as alcunhas, alguém que perde o cartão de embarque, alguém que pergunta: “Não é melhor comprar um volume de cigarros?” Quatro rapazes portugueses com escala em Madrid a caminho de Amesterdão.

No ar, a milhares de pés de altitude, as bolhinhas da lata de cerveja são mais bolhinhas no carrossel do sangue. Vai ser uma boa noite. Vamos ver os Black Keys em concerto. Apetece dizer, como nos filmes: “Rock & Roll.”

Chove na pista de aterragem, uma película que abafa toda a cidade, tornando os bares mais bonitos, um aconchego de madeiras e fumo e conversas disparatadas. Um dos amigos revela o segredo para entrarmos no concerto tão entusiasmados como a banda: “Beber shots de whisky.” Fast forward alcoólico: quatro rapazes portugueses diante dos cacifos da sala de concertos, incapazes de descodificar o seu funcionamento enquanto pessoas muito altas e muito loiras, sem dificuldade, guardam os seus casacos e fecham as portas de metal. Alguém diz: “Somos um bocado incivilizados.” Mas os rapazes, mais bárbaros por causa do halo de whisky em seu redor, até conseguem meter notas na máquina que dá fichas de bebida, provocando um barulho bom de jackpot e a mesma ansiedade feliz de quem acaba de entrar na discoteca e se dirige para o bar.

Give your heart away
É por isto que acredito que a música é a arte mais física. Tenho o casaco enrolado no braço e salto como num videoclip, pratico air guitar, air drums, sinto o tecido da camisa tão colado no corpo como nas noites em que já não importam as manchas na roupa e as nódoas negras na pele. Só interessa a música, a aspereza harmoniosa da guitarra, a pulsação da bateria a comandar milhares de pessoas. Olho para os meus amigos e não é preciso dizer nada. Os seus corpos em efervescência, o suor na testa e no bigode, os lábios repetindo cigarros, lançando-se nos copos, gritando: “Thighten up your reigns, you’re runnning wild/ Running wild, it’s true”. São cavalos de corrida rasgando o fumo da sala, explosões químicas nos neurónios, apetite pela selvajaria pacífica, esticar a corda mais um bocadinho.


Toda a teoria da psicologia das multidões ganha mais crédito se houver banda sonora, ou seja, com os Black Keys a tocar não importa que os adolescentes translúcidos e sem T-shirt iniciem moches e façam o público abanar como um barco, não importa que as pessoas se toquem, suadas e bêbedas, não importa que façam figuras ridículas quando imitam os músicos no palco, não importa quase nada.

Teoria da psicologia das multidões num concerto dos Black Keys: o abandono, o momento antes da colisão, a cabeça seguindo a serpente encantada do rock, o corpo soltando-se como quem parte uma guitarra ou se atira de uma prancha ou rasga as alças do vestido e morde outra boca como se fosse fruta.
E depois acabou.

Same old thing
O resto do fim-de-semana é ocupado com esplanadas e passeios em parques e visitas a coffee shops. Passamos ao lado da casa de Anne Frank e alguém atira uma graçola: “Diz aí aos gajos na fila que ela não está, que foi de férias para a Polónia.” É assim há muitos anos. Os rapazes dizem disparates, roçam o mau gosto, repetem as mesmas piadas ad nauseam, provocam-se com os desafios que conhecem da escola primária, embora agora subam a parada: “Dou-te cinco mil euros se saltares para o canal.” Mas é na parvoíce, na liberdade de ser outra vez menino, na distância do despertador, da diplomacia social, das notícias apocalípticas, do semáforo que não abre, da miúda que não liga, é nessa distância – uma espécie de viagem no tempo – que também me sinto próximo dos gajos que são meus amigos.

Manhã, pequeno-almoço junto ao canal: “O que é que preferias, ser o velho fanhoso que estava a vender bagels naquela cave ou a prostituta gorda que vimos ontem na montra a comer esparguete?”
Same old thing.

Aeroplane blues
Quando um dos rapazes toma a liderança numa missão nublada ao coffee shop, alguém diz, gozando com a sede de poder do novo macho alpha do grupo: “One man wolfpack.” E a frase pegou. No entanto, esta não é uma alcateia de um homem só – a frase aplica-se mais a indivíduos como o Rambo, o Batman ou o John “yippee-kai-yay, mother fucker” McClane.

De regresso ao mundo dos grandes: a alcateia que nunca precisou de líder, unida mas cansada, está no aeroporto e o avião atrasou-se, os silêncios tornam-se mais longos, por vezes interrompidos por uma sessão de disparate, resquício das substâncias na corrente sanguínea, uma dormência, o regresso a casa, mais nada para dizer após um ataque de riso.

Olho para eles, répteis ressacados procurando o sol na janela do aeroporto, ouvindo música, enviando mensagens. E escrevo no caderno de notas aquilo que fica. Alguém dizer “É já aqui” e andarmos sempre mais meia hora. O jogo “Consegues lembrar-te da antepenúltima miúda gira que viste?”, que não é tão fácil como parece tendo em conta o número de miúdas giras em Amesterdão e o efeito da erva na memória de curta duração. Chaço = mulher muito feia. Espingardus = pessoas de nacionalidade francesa. O poder do whisky e as lágrimas nos olhos ao quarto shot. As luzes desfocadas na janela do táxi. E a guitarra eléctrica como um motor no lugar do coração, a loira que mandou um beijo antes de beijar o namorado, os meus amigos sem dizer nada, só a música, o estrondo, a subida da montanha russa, a certeza que o efémero também pode ser denso e que, quando acabar a viagem, alguém vai dizer:
“Para o ano há mais.”



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Don Draper




Os rapazes, desde pequenos, querem ser outra coisa. Obriguei a minha mãe a fazer-me um fato de super-homem, quis ser o meu irmão mais velho, imitei Marco van Basten no Euro 88 e houve dias que, se me chamassem Mr Sinatra, eu pagaria uma rodada. Mas com o passar do tempo, pensar ser outra coisa, fantasiar, é para alguns tão patético como ir ao pão com um pijama do Batman. É uma pena, porque a imaginação apura a existência ao mesmo tempo que nos alivia de peso, como a primeira descida de uma montanha russa. Eu, por exemplo, ando por estes dias com a certeza que quero ser Don Draper, o protagonista da série Mad Men, passada num tempo em que ainda se usavam chapéus. Não falo apenas da forma como enlaça as mulheres sem precisar de as agarrar pela cintura, das garrafas de álcool duro no escritório, de frases tão graves como os fatos que usa – “O amor foi inventado por tipos como eu para vender collants” –, frases que seduzem secretárias, artistas e clientes da agência publicitária onde é director criativo. Falo também das manhãs em que acorda com a roupa da noite anterior ou se esquece de ir buscar a filha ou tem um ataque de pânico ou aparece bêbedo numa reunião. É que já não acredito, como aos seis anos, que uma pedra verde de outro planeta seja a única fraqueza do herói. Quero ser Don Draper porque ele (a sua história) é a prova da distância entre aquilo que somos e aquilo que queremos ser, e porque depois do fracasso não desiste da fantasia: “Espero agora, serenamente, que a catástrofe da minha personalidade pareça outra vez bonita e interessante e moderna”.

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